27 de dezembro de 2020

Ariadne, a outra


 



Ariadne levou quarenta minutos para chegar em casa aquela noite. Estava sem paciência depois da última reunião com o Comitê de Insurreição. Expelia a fumaça do cigarro em bufadas. Caminhou um quarteirão inteiro do lado mais movimentado, parou diante do primeiro restaurante que encontrou e fingiu olhar o cartaz da calçada. Analisou os preços, dissimulou escolher. Não tinha fome. Fazia-o apenas para, vez ou outra, olhar para trás em direção à esquina do último quarteirão que cruzara, atenta a sujeitos meio sonsos ou a carros suspeitos.

Nada.

Faria isso pelas quadras seguintes. Decidiu que compraria alguma coisa, qualquer coisa, para quando a fome viesse na madrugada. Aproveitou a oportunidade, novamente, para averiguar o perímetro. Nada. Então rumou para casa, onde a vizinhança era menos comercial e mais soturna.

Cruzou o muro, fechou o portão. Ficou encolhida no escuro do pátio por algum tempo, alerta aos ruídos da rua. Nenhum carro. Nenhum passo. Nada de novo. Era um prédio de apartamentos amontoados, com roupas penduradas em janelas ou em cordas pelos corredores e gente pulando e arrastando móveis para a fúria dos moradores nos andares de baixo. Ela subiu pelas escadas até o quarto e último andar. O elevador estava quebrado, se é que um dia chegou a funcionar. Quando entrou, deparou-se com uma pilha descomunal de louças do dia anterior junto com as sobras do café da manhã. Ótimo. Na infância, quando morava com as irmãs e o irmão, o tio e a tia, o pai e a mãe, suas irmãs e ela lavavam uma quantidade imensurável de louças, sempre dando sossego aos lordes provedores que nada faziam e disso tanto se beneficiavam. Era tarefa injusta, mas assim eram certas injustiças: imortais e duráveis.

Agora, no entanto, não havia mais louças de outras pessoas nem injustiças parecidas dentro daquela casa. Os tios haviam partido da pior forma por causa das crenças de seus pais, sequer sabia aonde o irmão zanzava pelo mundo, enquanto as irmãs estavam, perdidas, em quaisquer das valas que Belém andava tão sedenta em te jogar.  

Pôs a comida sobre a mesa e retirou as roupas da rua. Vestiu apenas um short velho e rasgado. Começou a lavar as louças. Era um ato terapêutico, pelo menos com as suas próprias louças em sua própria morada, o resto seria exceção. Clareava a mente a cada esponjada, a cada xícara limpa e a cada talher minuciosamente esfregado. O tempo fluía como se não existisse: horas transformavam-se em minutos e minutos eram liberdade. Planejava o que faria a seguir, confabulava sobre os parágrafos que tão logo escreveria – fossem aqueles que o mundo veria, fossem aqueles que o mundo nem deveria ousar em saber que existiam, por ora.

Ideias novas surgiram. Abismos foram clareados e as lacunas nebulosas que ligariam o início ao fim se dissiparam, revelando campos abertos de pensamentos e de argumentos que mais flertavam com uma prosa poética pacífica, polida em sua elegância, do que necessariamente com as reverberações de quem lá fora e há muitos anos Ariadne vinha sendo.

Esses momentos de pré-preparo à escrita traziam a outra mulher, a outra Ariadne de quem ela gostava mais. Por vezes essa outra era direta e objetiva, por vezes perambulava longos caminhos para escrever o que deveria ser escrito, contrariando uma série de mestres que disseram o contrário, taxando-a de displicente ou de sem talento. E que Eliot e que Barthes, pelo menos naqueles momentos, fossem à merda. E também todos os outros que comungavam com esse tal Eu Universal que precisa se abster de tudo para alcançar a verdade alheia no peito de pessoas terceiras.

Os versos de Pessoa diziam que o poeta é fingidor nato e isso esteve em partes correto, porque àquilo que Pessoa quis se referir, referiu-se muito bem. Anos atrás, entretanto, quando o país ainda se preparava para o salto democrático rumo à não-democracia, e nas palavras de uma escritora paulistana que Ariadne lia no ímpeto do final de sua adolescência, o verso de Pessoa foi por ela enveredado em outra direção. Dissera tão sabiamente que de maneira alguma o escritor ou o poeta eram fingidores ou mentirosos, pois para criarem o que nas linhas é sentido, explorado e extraviado, é necessária uma sinceridade imensa; pois para criarem o sentimento, seja ele qual fosse, e atravessá-lo nos olhos do leitor ou do mero espectador para então repousar dentro dele uma chama vívida e latente, é preciso ser mais que mentira. É preciso ser verdade

Mas alguns daqueles mestres do Eu Universal estavam todos mortos, em determinados aspectos eram mentes calcificadas por uma técnica obsoleta e pouco maleável, ditando regras quando construíram uma falsa utopia de que a escrita era um mar de não-regras. Estavam todos mortos. Alguns eram senão ossos reverberando nos ouvidos dos que ainda se lembravam, daqueles que os guardaram às sete chaves. Eram senão ossos de respeito, embora vez ou outra alguns deles tenham proferido asneiras ou sido homens monstruosos – quanto a esses, Ariadne reconhecia os méritos, mas não fazia questão de perpetuá-los. Alguns ecos ecoavam em outras cavernas, não na dela.

Terminada a louça, Ariadne deu-se por satisfeita. Tinha a pia limpa e a cabeça preenchida. Tomou banho e deixou que a água lavasse os longos cabelos. Sentia falta de tê-los curtos, mas dada sua posição de visibilidade, e por motivos maiores, precisava se camuflar na lamacenta abadia que Belém se tornara.

Sentou-se diante da mesinha na sala de estar. Ligou o computador, leu as mesmas notícias diárias através dos dois únicos jornais vigentes no país – o maior deles era a fusão de duas grandes emissoras dos tempos antigos. Leu sobre elogios. Leu sobre a crescente na economia. Leu sobre o progressivo e exitoso extermínio da homossexualidade na infância e adolescência com métodos clínicos comprovados. Leu sobre a completa inexistência de violência urbana e rural – principalmente a segunda. Leu sobre o atual chefe de estado que continuava adoentado e mantido por aparelhos em casa, dando ao filho mais velho, dos quatro, a linha sucessória de poder do país. Era ele quem estava sentado nos últimos meses fazendo não muito diferente do que o pai fizera nos últimos doze anos.

Ela fechou todas essas notícias. Anos e anos atrás, numa época já extinta de sua vida, leu uma historinha que era mais ou menos assim: na época do fascismo italiano, um sujeito ia todos os dias à banca de revista, olhava o obituário e depois colocava o jornal de volta, sem comprá-lo. Fazia isso com regularidade antes de ir ao trabalho. Certo dia, o dono da banca de revista perguntou ao homem por que ele parava ali, todos os dias, abria o obituário e partia, sem comprar o jornal. Então o sujeito respondeu que a morte sobre a qual queria ler ainda não estava ali.

Ariadne queria lembrar onde lera aquela história. Provavelmente, seja onde ou por quem fora contada, decerto parou em uma fogueira pública, como a primeira que fizeram na Visconde de Souza Franco, quando páginas e páginas do que diziam terem sido “décadas de doutrina, de falsa História contada e de Literatura transgressiva” foram queimadas. Ou talvez o seu contador tenha mergulhado nas valas desconhecidas de Belém, como fizeram a seus tios e a suas irmãs.

A notícia que Ariadne esperava não estava ali e muito dificilmente estaria do modo como ansiava. Por isso ignorou o desgosto, abriu uma página em branco na tela e começou a escrever. Era o momento da outra mulher, a outra Ariadne, vir à tona.

Gostava da outra mulher porque ela era aquilo que Ariadne desejava ser: melhor e maior. Certa vez, escutara um antigo namoradinho cantarolar distraidamente desculpa, mas me perdi no meio do caminho, devem ser os problemas emocionais. Ariadne gostava mais dessa música do que do namoradinho, um sujeito qualquer que se perdeu no fuzuê dos anos e que deveria estar por aí hoje, recolhido, acovardado ou indigente, como as irmãs. Não que essa outra mulher não estivesse também embebida de problemas emocionais, e a verdade (olhem ela aí) é que ela era cheia deles, mas sabia lidar, pois tinha classe.

Essa outra mulher era a Ariadne que surgia nas páginas, uma evolução de sua versão anterior, de sua versão em carne e osso. Essa outra Ariadne sabia administrar o ódio. Quando possuída por ele, não cuspia, não esbravejava, não era inundada pela raiva de um mundo cão que bate e mata, que abusa e esfola, um mundo masculino, por essência. Sabia fazer piadas, sabia se enfiar em situações constrangedoras e absurdas, sempre saindo risonha, resignada, embora o mundo-cão-masculino a tenha destruído e desmoralizado incontáveis vezes. Apesar dos problemas emocionais, essa outra mulher era melhor, mais contida, mais irônica e piadista, porém sumariamente altruísta. Algum velho desses já mortos e de temas calcificados para ela, porém não para o mundo, e que até a divertia nos silêncios da madrugada, havia escrito que “(...) rir de si mesmo é sinal de grandeza, ou pelo menos (e ela acreditava mais nisto) de que se pode alimentar a esperança de que venha a ser algo mais que um simples e pretensioso cagalhão intelectual. o mundo anda repleto de cagalhões intelectuais pretensiosos (...)”.

Em contrapartida, a mulher de cá, a Ariadne longe da escrita, andava perdida. Perdida e violenta, tal qual cantarolou o antigo namoradinho. Cansou-se do pacifismo, perdeu a esperança. Enxergava o mundo não apenas como um mar de predadores insanos, mas um onde todos eles eram senhores: afoitos pela razão e pelo poder, guiados por imaginárias verdades que matam, esfolam e deturpam – todos os dias um pouquinho de cada vez, de novo e de novo.

A Ariadne de cá andava mais falastrona nas reuniões do Comitê de Insurreição. No trabalho, dividindo o escritório com aqueles almofadinhas que criam em Deus e na Pátria Amada, estava prestes a explodir e a entregar seus verdadeiros ideais que insurgiam, eufóricos, ao lado das comparsas e dos comparsas de resistência. Ocultamente, no âmbito secreto de sua subversiva vida, era uma tagarela cheia de convicções, com arranhados na garganta de tanto praguejar aos oficiais nas ruas e aos Deuses no Poder, à Sagrada Família do Chefe de Estado.

A mulher de cá era fervorosa em seu sentir – na dor e na indignação, na vontade e no estúpido sonho de que o mundo fosse menos cruel para com aquelas e aqueles que diariamente apanhavam ou, miseráveis, desapareciam. A mulher de cá soava extremista, porque era. Estava cansada de deuses silenciosos e de uma nunca chegada Justiça – a dama mentirosa, a meretriz que se deixava envolver por homens de braçadeiras e de botas, que escapava e se deitava com os homens de uniforme. Onde havia lido aquilo? Nem mais importava, eram palavras agora transformadas em cinzas, incendiadas nas maiores e mais privilegiadas avenidas do país.

A Ariadne de cá era insegura.  Antes de dormir, longe do manuseio da .40 ou das secretas afrontas de fins de semana, possuía sonhos imbecis e contestáveis. Libertar a nação e expurgá-la do atual fanatismo era tarefa árdua – limpar carvão com lenço umedecido. Sentia ódio em demasia somente por aqueles que o usavam como arma, pois aprendera que amor e diálogo e gritos pacíficos em avenidas lotadas não soldavam escudos de proteção, apenas utopias infantis e mortes injustas – assim vieram as injustas mortes e assim morreram as infantis utopias.

Não acreditava em figurões poderosos prestes a salvarem a todos com seus milagres ou com seu retorno. Não acreditava nos homens que os copiavam, tampouco nos homens que arrombavam suas entrelinhas para escreverem eles próprios seus achismos acerca da Palavra. Seus pais acreditavam. Em nome de levianas divindades entregaram os de seu próprio sangue. A exaustão de lutar em vão contra as crenças desvairadas daqueles que nisso acreditavam a suprimia na claustrofobia de uma lata gigante, um tubarão em um fosso. A Ariadne de cá não se orgulhava do que havia se tornado. Tornou-se por obrigação. Era mover-se ou omitir-se. E omissão era uma forma acovardada de apoio.

A Ariadne de cá estava exausta de julgar-se violenta e por ser tão intolerante frente às intolerâncias. Exausta não porque deixaria de bater, exausta, apenas, pela inevitável vontade de fazê-lo – a resposta mais genuína. O ódio queimava as veias e esquentava a respiração. A taquicardia vinha se tornando frequente desde que atravessara os trinta. E os pensamentos avermelhados de aroma metálico assombravam seus sonhos. Ora era ela quem estava neles, ora eram as irmãs e os tios; ora era quem deveriam ser, e somente nesses casos oníricos é que se sentia como o sujeito que checava todos os dias o jornal, com a diferença de que nesses sonhos ele encontrava o obituário desejado. Almejava uma noite de sono tranquila, uma só, sem os anseios de pisões na porta nem os horrores de sua carne esfolada e dilacerada no asfalto ou coisa pior. Bem preferível a morte que a coisa pior.

Acendeu um cigarro. Junto com longos suspiros vieram longas palavras, parágrafos fluidos e ceifas de páginas. Graças a raras concessões permitidas pelo Estado, que geralmente existiam para atender aos caprichos de pequenas corjas e caprichos elitistas, existia o Hedium, plataforma digital onde os usuários escreviam e publicavam textos. Os devidos filtros eram impostos pela ABIN, frequentemente monitorados e sumariamente restritos a uma longa lista com centenas de palavras proibidas em todo o país, as quais estampavam-se pelos murais e paredes e quadros nas escolas. Alguns teimosos e corajosos insistiam em abordar tais temas ou vocábulos malditos. Havia minúsculos grupos no site compostos por sujeitos promissores que alcançavam o êxito no feito: artistas natos que nas esquinas e nos becos suscitavam um novo movimento marginal e revolucionário artístico. Valiam-se de palavras bem articuladas que flertavam com o latim vulgar, deveras rebuscadas no português arcaico dum Gregório de Matos ou num regionalismo expressivo e periférico dum Mário de Andrade que confundiam a atual cultura sulista implementada como lei, a ponto de causarem, todas essas, nódulos nos parcos cérebros dos asnos-fiscais da ABIN, tão incapazes de interpretá-las quando as encontravam.

Deliciava-se com isso. Finalmente entendia e testemunhava na prática vários daqueles novos Cálices de novos Buarques passarem despercebidos. No mais, pelo Hedium havia o público fervoroso de jovens que amavam a Pátria Amada e teciam longas abobrinhas elogiosas, paradisíacas, sobre o esplendor de suas vidas – a ignorância, comprovadamente, era um modo de vida abençoado. Outra parte do público adorava aquelas balelas sentimentais que empilhavam o site. Alguns eram temas tão medíocres e negligenciados que os bobões da ABIN por eles passavam direto. Palavras sobre dor, depressão e o porquê ela não volta pra mim? Já outros eram refinados, uma nata da qual Ariadne adorava consumir. Desconfiava, em certos casos, sobre o real posicionamento político daqueles autores, embora fossem inteligentes ou resignados demais para ali transparecerem em palavras. Eram bons pensadores e ótimos questionadores dos trágicos e interiores encalços humanos, a ponto de ser quase impossível imaginá-los erguendo as mãos direitas em saudação à atual bandeira nacional – um “B” branco e gigante dentro do globo azul sem estrelas sobre os fundos amarelo e verde.

Na plataforma do Hedium, ela assinava seus textos como Antero. Palavras escritas por homens eram levadas mais a sério, sobretudo naqueles tempos – a possibilidade contrária te levaria a um quarto escuro, a uma cela ou à famosa vala belenense. Geralmente, se é que liam ou sabiam fazê-lo, os fiscais da ABIN adoravam consumir determinados conteúdos de Ariadne, vulgo Antero. Sentavam-se na frente de seus computadores e masturbavam-se feito animais, mesmo não compreendendo mais da metade daqueles léxicos.

O que homens adoravam naquele tipo específico de literatura era a fuga do tema: enxergavam o sexo como mera desculpa masturbatória ao invés do teor filosófico por trás dele. Quando a temática era abordada por autores masculinos, ela despertava em outros homens uma ruptura com a realidade: imaginavam-se sabedores natos das filosofias da conquista, enxergavam-se como Dons Juans e julgavam que o mundo funcionava conforme as regras daquelas linhas – o que, de um jeito ou de outro, todos os homens acabam por fazer funcionar. Outro importante detalhe é que quando tais temas eram escritos por outros homens, serviam quase como um manual do macho aprendiz: os leitores agiam daquele jeito e acreditavam, tanto quanto acreditavam na Pátria Amada, que assim as engrenagens cósmicas girariam ao seu redor. Sentiam-se heróis e protagonistas de uma novela feita para eles e por causa deles. No fim, também invariavelmente, enxergavam os autores de tais linhas como sacerdotes, respeitavam-nos, pois era um camarada que também portava um pau entre as pernas, assim como eles. Só que muito, muito mais sabido.

Já o tema escrito não por camaradas, mas por mulheres, mesmo nos tempos de antigamente, não era visto com respeito, admiração ou inspiração – afinal, se lessem corretamente o que elas escreviam ou diziam, então saberiam onde e como encontrar aquilo que nem sabiam que residia a uma língua ou a um suave tato de distância, aquele estranho órgão que, ao contrário do que acreditavam, não era uma proparoxítona. Ao invés disso, o tema se manifestava como uma grande e magnífica brecha para algo mais, para o ela tá querendo. Através de mulheres o sexo não era lido sob o filtro da arte nem da filosofia moderna corpórea nem da simples poesia. Era lido apenas como um convite, um cartaz público para um parque recreativo gratuito, sem respeito, sem valores. Meramente diversão.

Fosse naqueles tempos extintos ou nestes atuais, o tema evoluíra em questionamentos, em ângulos e em profundidade, falava mais a respeito daquelas minas interiores inexploradas de quem os escrevia (Ariadne ou Antero) do que de fato a respeito de carne, suor, muco, gozos e berros. Contudo, a leitura a respeito deles, vinda de homens que tão pouco sabiam ler linhas, versos ou vidas, permanecia a mesma.

A outra mulher, a outra Ariadne, não escrevia para os asnos dos fiscais, muito menos aos que como eles não saíam das superfícies textuais. Um lamento penoso que Antero fosse lido por insapiências tão rebuscadas. Isso porque, vez ou outra – muito vez ou outra! – é que ele abordava a epifania dos atos carnais em seus escritos. Ao fazê-lo, geralmente baseava-se em frames perdidos ou em frames inventados do que um dia foram os frames de uma antiga amante que há anos fora roubada para as trincheiras. Recordava-se e escrevia e fantasiava e inventava e delirava com ela sobre distantes e apoteóticas noites de uma vida passada. Foi na época extinta, quando tudo ainda era permitido, pelo menos do ponto de vista cívico – beijos, abraços, sorrisos e laços; na época em que não batiam em sua porta para puxá-la pelos cabelos e darem um fim à depravação de sua existência.

Mas isso não era mencionado, é claro. O que explicitamente Antero escrevia tratava-se de amores partidos, fisicamente distantes, enrolados nos braços do desgosto ou de outros homens – o público adorava essas leituras. Era aí que Ariadne insurgia, a outra Ariadne, aquela mais segura de si e a mais aceitável. A Ariadne que Ariadne queria ser. Não um Antero – que se fodesse o fato de assinar como homem. O que procurava através da escrita não era transmutar-se no animal sádico e violento que eram todos eles, mas uma iluminação própria, uma jornada pessoal e diária onde o Estado, aquele Estado, não existia. Não queria tornar-se o que tanto enojava. Não queria tornar-se o que em essência era a Pátria Amada: um rebuliço de cólera indiscriminada, irracional, inviolada.

Por isso tecia.

A resposta do público era enérgica. Recebia elogios em comentários e lia várias daquelas jovens garotas clamando por mais textos ou pelo anseio de conhecerem Antero, O Grande Antero. Ariadne se divertia. Quando não escrevia para o Hedium, tecia alguns memorandos para o Comitê de Insurreição, que por acaso também não eram assinados como Ariadne – não havia pseudônimos por questões lógicas de segurança e por questões de unidade. Ela não era um indivíduo autônomo, era a hemácia de um corpo libertário, tísico e cansado, mas libertário. Todavia, o teor das palavras em tais textos pertencia a Ariadne de cá, não à outra mulher. E da Ariadne de cá ela estava exausta, pelo menos aquela noite.

Alimentava prosas poéticas com e para o público que a lia e verdadeiramente a admirava, que sabia o que significava o espetáculo tragicômico da espécie humana exposto e não vilipendiado em suas linhas. Respondiam-na, pediam mais – talvez a única distração e apreciação que possuíssem na única vida da qual conheciam ou eram permitidos ter. Isso a fazia lembrar de um velho amigo dos tempos antigos. Um sujeito que adorava os mesmos heróis literários que ela, embora fosse mais velho e mais experiente na profissão do tecer. Ariadne, à época, adorava lê-lo. O sujeito peregrinava por caminhos semelhantes aos de seu Antero. Utilizava filosofias fajutas e hedônicas, às vezes carnais, às vezes urbanas, quando necessárias. Também o latejar da melancolia poética, da desesperança suave, calorenta, úmida e cinzenta de uma Belém de outras épocas – uma que tanto desejava ter saboreado. Na maioria das vezes eram linhas de escárnio cruel, necessárias e imperdoáveis para com as personas que as mereciam. E de igual modo que escrevera o velho que a fazia gargalhar em certas madrugadas, esse antigo amigo também sabia rir de si mesmo, sabia apontar o revólver para o espelho e crivar-se de palavras, fossem elas expiatórias e penitentes, fossem elas cômicas.       

Mas o Hedium não existia à época. Apesar de adorá-lo, o pobre coitado nunca foi bem visto ou reconhecido. Dele talvez rissem em demasia, talvez não o levassem a sério, talvez tenha tecido verdades assertivas demais a respeito daqueles que poderiam levá-lo ao destino das regalias. Não foi um mártir, tampouco um intelectual cagalhão e pretensioso. Só não teve muita voz ou espaço. Não foi notado como o Antero de Ariadne. Não era lá requisitado, não era lá muito lido. Tecia em plataformas talvez obsoletas, desprezadas e desprezíveis. Ou talvez Ariadne o admirasse em excesso e não passasse de um peste falastrão, uma aranha fiadeira cheia de erros. Não possuía paciência ou dotes para revisões nem olho para pífias concordâncias verbais desleixadas que escapavam e deixava ali mesmo, pois não ganhava pelo que escrevia, não era convocado para ganhar nem levado a sério para tamanho absurdo.

– E se alguém reclamar das concordâncias tortas, pois que se ofereça a corrigi-las – disse ele em uma noite silenciosa, com um falso sorriso falho em esconder a decepção que nutria por si mesmo. – Eu vou ser muito, muito grato. – E concluiu com uma tristeza maior ainda, típica daqueles sujeitos com um pingo de talento que sabem o futuro de esquecimento que os aguarda: – Bicudar é fácil, Ariadne. Fazer igual ou dar uma forcinha que é o bicho.

Tornou-se mais um falador obsoleto, mais um sujeito eufórico, tal qual a Ariadne de cá que ela detestava ser. Um sujeito embebido pelas indignações certas, furioso pelos ódios cuspidos por tantos salvadores e Messias. Com o tempo, o sujeito não suportou a transição de um mundo onde suas palavras eram livres para um mundo onde se tornaram um crime. Ariadne soube de alguns de seus últimos feitos – histórias magnânimas, cômicas e trágicas de doerem a barriga e de apertarem o peito e de cutucarem feridas. Ele escreveu e escreveu e foi punido por isso. Nunca o encontraram por aí, mais um a mergulhar nas valas indigentes de Belém.

Ariadne apagou um cigarro. Sentiu a barriga roncar de fome. Deu uma pausa à sua escrita e comeu o conteúdo frio que comprara horas mais cedo na rua. Mastigou e alternou com um copo d’água. Palitou os dentes com a unha do mindinho. Acendeu outro cigarro.

Antero, a outra, finalizou três escritos diferentes após devaneios e supressões de raiva. Um deles sobre a antiga amante de épocas distantes sem mencioná-la como pessoa, mas como um sentimento – um texto leve;

mais qualquer um que tocasse os leitores, a respeito de nostalgias não politizadas que não incomodassem o status quo um texto leve;

outro sobre os pormenores de um vulto que partia para outras terras, permeado pela sutileza da pele e pelo perfume roçado em narinas apaixonadas, de dunas afrodisíacas com curvas singelas e deveras normais, em suma um ultrarromantismo piegas –  um texto muito, muito levemente pesado.

O que significaria um delírio punhetesco aos devidos asnos.

Ela bocejou e olhou no relógio. As horas voaram e metade da madrugada desaparecera. Em algumas horas a alvorada nasceria. Corrigiria os textos na noite seguinte, que ficassem para depois. Para certo tipo de gente, tudo terminaria em punheta, de qualquer maneira. E que se fodesse o verdadeiro centro poético da coisa, ninguém ligava mais para isso, certo? O que não significava que Antero, ou a Ariadne de quem Ariadne mais gostava de ser, deixaria de escrever.

Alguns atos eram mais do que políticos ou obrigatórios. Frutíferos ou fadados ao fracasso, eram essenciais. Como é, que é mesmo, havia escrito aquela escritora paulistana da qual Ariadne tanto admirava?

Ah.

Da prateleira ela retirou o segundo volume do “História Atual Brasileira – Pátria Amada, Brasil” que a nova Constituição de 22 os obrigava a terem em casa. Em um dos capítulos ela encontrou três pedaços velhos de papel dobrado. A cada vinte páginas, eles se repetiam. Guardava-os onde nunca procurariam. Asnos.

Abriu um deles:

 

[...]

- você continua escrevendo?

- Claro.

 

(essa pergunta sempre me ofendia.

como pode alguém pensar que eu não estou escrevendo? por acaso não fica evidente? o quanto a escrita é tudo o que tenho)

[...]

 

Assim Ariadne, a Ariadne de cá, recordou-se de suas outras obrigações. Aquelas que talvez estivessem fadadas ao fracasso, mas que não a permitiam desistir. Desistir não era uma escolha, mesmo que a linha de sucessão no Estado passasse de pai para filho, de irmão para irmão e de irmão para outro. A Ariadne de cá estaria fadada à existência perpétua, bem como a outra Ariadne.

Ela fechou o Hedium. Pôs de volta o pedaço de papel no mais completo e sincero livro de História Brasileira já escrito. Guardou-o na prateleira. Deu um até logo à outra Ariadne, a de quem gostaria sempre de ser, para dar lugar a Ariadne de cá.

Na frente das páginas, era a outra mulher, a outra Ariadne: a secreta voz que aflorava e se nutria, que germinava e sabia brotar; que alimentava e se deglutia, que garoava e precipitava molhar.

Nas reuniões do Comitê, era a Ariadne de cá: a mulher que gritava e se insurgia, que apontava e sabia atirar; que conclamava e se enfurecia, que praguejava e queria ceifar.

Abriu outra página em branco sobre a qual não assinaria como Ariadne nem como Antero. Escreveria um chamado, o verdadeiro manifesto, uma convocação para todos os Comitês de Insurreição do Estado do Pará, quiçá do país.

Ela acendeu um cigarro e acenderia também uma faísca.

E então escreveu.

 

 

 

13 de setembro de 2020

Só pra ti


 


And I will open my heart

And I will, oh, only for you

 

(Only for you – Heartless Bastards)

 

 

Os olhos de Catarina são canção que encontram o insosso Marcel aos domingos e às terças. Eles fazem parte de uma playlist particular, espremidos entre dezenas de outras canções. Todas de mínima importância, não passam de meras antecipações para a sua chegada ou de melodias posteriores à sua vinda.

Sem que possa repetir ou retroceder para esses olhos-canção ou colocar a playlist em modo aleatório, o sujeito está fadado a esperá-la acabar, a fim de aguardar o momento em que os olhos-canção de Catarina tocarão novamente. A ordem em que eles tocam seus ouvidos, tocam seus lábios e tocam sua vida é determinada somente por forças maiores que ele: a cabal maestria de sádicos deuses ou de um impronunciável outro nome, de outro. Sem que possa acelerar as banais canções que deixam os olhos-canção de Catarina num entremeio tão aguardado, a melodia que Marcel tanto anseia – leia-se o ansiar com o mais grotesco dos advérbios de modo para desesperado – toca somente nesta precisa ordem: aos domingos e às terças.

Catarina assim se aproxima. Concede a ele rastros e minúcias antecipadas, concede a ele angústias posteriores. No entremeio das terças e dos domingos são dias piores: longos e arrastados, braços compridos que se estendem por horas e por dias e pelas pequenas efemeridades de que é feita a insossa vida de Marcel. A mão, ao fim do percurso, são os domingos. As pontas dos dedos seriam as terças, separadas por uma distância bem menor e bem menos desesperada que lhe são as segundas-feiras. Nessas pontas de dedos ele sente o aroma do trabalho, do suor do dia-a-dia e das longas vinte e quatro horas que dela esteve afastado, das longas vinte e quatro horas que foi obrigado a dela estar recluso, escondido e proibido.

Catarina assim se aproxima. São imensos os olhos dela. De fato, nem grandes são, tornam-se gigantes nestas linhas por conta do abissal castanho-escuro de que são feitos. Bailam finalmente ao enlace do pobre sujeito. Enlaçam-no. Enlaçam-no com dedos, braços e fatos inéditos: porque o insosso Marcel não se sente assim, enlaçado, desde uma ou mais de uma década. Ele não escutava olhos-canções desse tipo há quase uma vida. Quem ele foi antes de Catarina? Quanto tempo pôde sobreviver a olhos-banais, a nomes-banais, a cheiros-banais ou a olhos-esquecíveis de uma noite ou duas? Quantas outras canções que não eram canções, só ecos, passaram por ali antes que ele escutasse os olhos-canção de Catarina e que nele não repousaram como repousam os olhos-canção de Catarina neste domingo?

Ela assim se aproxima. Tira as roupas, abre um sorriso, corre para o banho. Tagarela sobre seus dias, sobre sua rotina, sobre seus saltos enérgicos nas questões que ele não esteve verdadeiramente saltando nas últimas décadas. Acolhe-o com seus achismos, com seus punhos cerrados ante um mundo frouxo. Ele a prepara a refeição principal da noite: ovo frito temperado, arroz, farinha e um imenso copo gelado d’água. É tudo o que eu amo, ela diz ao sentar-se na mesa. Em seguida, sussurra que sentiu a falta dele.

Catarina assim janta. O melhor prato do mundo para um domingo à noite, acrescenta com aquele sorriso tímido que ainda não se cansou de ser tímido, como se não se conhecessem há todo este tempo de playlists iniciadas e findadas. Mastiga como um animal esfomeado, tagarela por mais uma infinidade de minutos e cobra que o insosso Marcel diga-lhe alguma coisa, que não fique ali calado feito um panaca-idiota. Panaca-idiota, assim ela diz, tu pareces um panaca-idiota desse jeito todo caladão.

Catarina assim sorri. Larga os pratos na pia – detalhes: irão lavá-los depois. Os olhos-canção dela continuam tocando a letra secreta que ambos decoraram de cor. Atravessam corredores, sobem as escadas, sobem níveis e sobem ombros. Despem-se no domingo à noite. Ignoram os versos tristes e também todas as prosas de mesmo cunho – como esta, que assim seja e esteja sabido.

Ela assim gira ao redor de Marcel. E em volta da cabeça dele também giram as mentiras sobre dias longínquos de playlists que enfim permitirão o modo aleatório, o retroceder e o repetir dos mesmos olhos-canção de Catarina – os únicos que importam –, de novo e de novo. As mentiras são ditas. Mentiras beijadas, não verbalizadas. A cada beijo, uma promessa, a cada promessa, a constatação da mentira que são aqueles olhos-canção.

E assim Marcel deseja escutá-la. Anseia ouvi-la antes que o domingo se torne segunda e a segunda se torne quarta e a quarta se torne quinta e a quinta se transforme em eternos dias até que se finde o sábado.

E assim Marcel deseja estendê-la, prorrogá-la, reconhecê-la nas núbias nuances de sua nudez, nas numerosas núpcias da alma. Porque domingos e terças, embora pertençam aos dois, mais dele do que dela, carregam consigo o significado desta prosa triste, daqueles versos carrascos que são os olhos-canção de Catarina.   

E assim ela se levanta da cama. Nestas linhas já é sabido, por frenética, proposital e cansativa repetição, que os olhos de Catarina são canção, porém há outra que ela pôs para tocar no autofalante do celular. Os lábios dela são o choro de uma lira censurada ao cantarem para ele que oh, seus olhos cantam uma música pra mim e eu gostaria de dançar ao som dela, oh, de verdade, sim.

E assim Catarina estende os braços. A luz da noite entra pelas janelas e recai sobre eles com a cautela que Marcel não possui, não aos domingos nem às terças. E assim ele toca as mãos dela, atende ao chamado que durante cinco dias semanais tanto clama calado, caído na abstinência de silêncio que exigem os vícios proibidos. Finalmente tem para si o aperto daquelas mãos, o calor daqueles longínquos braços inalcançáveis.

E assim eles dançam.

Dançam antes que este domingo em segunda se transforme e ao impronunciável outro nome, ao outro a quem de fato pertencem nas claras luzes e praças do mundo, os olhos-canção de Catarina, devotos, tenham de retornar. Olhos-canção que ao impronunciável outro nome, nas segundas e nas quartas e nas quintas e nos eternos dias que findam nos sábados, o embalarão, amorosos, ternos, fiéis, porque a ele de fato pertencem diante de Deus, diante dos sagrados votos e diante de carrasco mundo.

É assim que eles dançam.

Embebidos por promessas.

Salpicados por delírios.

– Quando? – O insosso Marcel pergunta. O corpo rente ao dela, os anseios não sanados e os vícios duplicados. – Quando eu vou ser teu?

– Logo. Em breve – Catarina responde como bem já respondeu em tantos outros domingos e em tantas outras terças. – Só mais um pouco. Só mais um pouquinho.

E assim Catarina mente, de novo outra vez.

E assim o insosso Marcel com ela continua sua dança. Possui nas mangas um naipe de questionamentos, um sem-número de cobranças que bem poderiam ser abusivas, caso não estivessem idosas, calcificadas e centenárias. Porém nunca foram feitas, não sabemos se por covardia, se por devoção ou se por um estranho senso deturpado de moralidade. O insosso Marcel se manterá firme, corroído e corroendo-se por dentro, querendo gritar ao mundo, delirando estampar ao público dedos entrelaçados, bem como as palavras proferidas no escuro daquele quarto aos domingos e às terças. Permanecerá sólido, inatingível, solícito e compreensível,

Pois embora o mundo desconheça que Marcel e Catarina dançam juntos aos domingos e às terças, que não seja suspeito que os olhos-canção de Catarina amem Marcel durante o velar dos olhos de um Argos e ninguém mais que não esteja passeando ocasionalmente por estas fictícias linhas (esta mera criação passageira) vislumbre o que sente e o que deseja o insosso Marcel, ainda assim, resiliente e guarnecido na promessa de Catarina, ele estará.

E todas as helênicas musas haverão de saber.

Erato e Calíope,

Polimnia e Terpsícore,

Melpômene e Euterpe,

sobretudo Euterpe!

Todas elas, cada uma delas haverá de saber que naquele quarto, no domingo à noite que pertence aos dois, mais a Marcel do que a Catarina, eles dançam uma canção.

Marcel dança os olhos-canção de Catarina.

 – E só pra ti eu danço – diz ele, o insosso Marcel, mergulhado em palavras que descobrirá serem mentiras de uma maneira muito triste e penosa, que nestas linhas nem cabe mencionar.

E só pra ti eu danço, ele haverá de dizer.



12 de maio de 2020

Silêncio é para os azarados




Veja, o silêncio sempre foi constante. Algo do qual escritores e fumantes partilham muito bem: estes momentos de silêncio em que não há ninguém por perto.
O fumante clama por um espaço, afasta-se de todos, respeita aqueles que estão em volta. Distancia-se, fala de longe, quer espaço para si. Está sempre sozinho, ele e os pensamentos, os demônios queimando como um dragão ocidental, não o velho sábio chinês, mas o velho dragão europeu cheio de cobiça e de significados pejorativos, símbolo daquilo que Freud combateria.
O escritor partilha da solidão: precisa estar sozinho. Não veja como um ato sagrado de iluminação profunda, não. Veja como um ato de concentração. Graciliano Ramos comparou o ato ao das lavadeiras de Alagoas à beira do rio. Há muito tempo, durante uma aula, comparei o ato ao da retirada do açaí. O silêncio pode estar durante, mas é a concentração quem triunfa. A dedicação. O aqui e o agora.
Na verdade, para o escritor, o silêncio vem depois: essa ausência de testemunhas da qual tanto estou quase farto de testemunhar.
Ele trabalha o texto. Dele são exigidos concentração, técnica, habilidade e afinco, demasiado afinco. Depois, vai ao mundo. Espalha a palavra como um evangelista fracassado. É aí que vem o silêncio: o silêncio da não resposta, do desleixo, do desprezo.
Conte uma piada, todos rirão.
Autodeprecie-se, todos se divertirão.
Escreva, todos calarão.
Poucos se importam, poucos ligam. Imagine o absurdo de com aquelas palavras fazer profissão, sustento? Absurdo! Absurdo! É maluquice. Pois ler exige tempo, atenção e dedicação. Tempo? Poucos têm. Atenção? Pouquíssimos de nós. Dedicação? Apenas os apaixonados.
E paixão é coisa rara.
Paixão é coisa para fumantes
Paixão é coisa para aqueles que desfrutam do silêncio e dele vivem.
Paixão é para aqueles que tudo o que recebem em troca não são palavras amigas ou reconhecimento, mas a ausência de tais deleites, a ausência de olhares, a ausência de respostas.
Paixão é para poucos.
E o silêncio é para os azarados.

20 de abril de 2020

Os cinco anos depois




Fala-se muito sobre o isolamento social, mas alguns estudos já mencionam a necessidade de um isolamento que talvez leve de 18 a 24 meses, no mínimo. Teríamos, portanto, um isolamento de 2 anos, na melhor das hipóteses. Já quanto a descoberta, produção e teste de uma vacina? Só a vacina para o surto de Ebola em 2013 levou cinco anos até circular.
A nível de Brasil, vejo que esse quadro prolongado de isolamento social é praticamente impossível, se levarmos em conta nossa crescente cultura de anti-intelectualismo, sobretudo fortalecida pelo nosso governo de extrema-direita. Aliás, ainda podemos chamá-lo assim ou decididamente cabe uma alcunha pior, mais baixa e desumana?
Aí eu penso naquele filme que foi lançado ano passado e que arrebatou, de um jeito positivo, milhões de pessoas pelo mundo: Vingadores Ultimato.
Cito esse artigo do Omelete, escrito por Nicolaos Garófalo. Breve, mas incisivo no que quero dizer:

"A história não é exatamente nova. Um líder idealista, carismático e com um discurso chamativo atrai seguidores fanáticos, chega ao poder e passa a eliminar, um por um, aqueles que possam interferir em seus objetivos. Podia ser Alemanha, Brasil, União Soviética, Itália, Venezuela, mas é a Marvel".

Em uma boba análise pautada nesse filme do qual todos assistimos... (e, afinal, não é para isso que também serve a ficção?)... vale a pena considerar aqueles cinco anos em que a humanidade mergulha depois do estalar de dedos que nem os Maiores Heróis da Terra conseguiram reverter.
Alguns sobreviveram?
Sim, pô!
Sobreviveremos ao novo Coronavírus?
Ora, claro, tá ok?!!
Pelo menos como espécie. Não falo especificamente de mim... De você... Ou de quem amamos...
Do jeito que estamos, com amigos visitando amigos para assistirem juntos lives de famosos, com a pelada da galera no campinho do bairro ainda realizada, com festas de aniversário, casamentos e churrascos de fim de semana, e com essas mesmas pessoas andando por aí e afetando até aquelas próximas a elas que respeitam o isolamento, fica difícil alguns de nós sobrevivermos.
Há um caso na minha família de uma pessoa que por conta de uma particularidade de saúde (na verdade, por conta de quem ela é), quase nunca sai de casa. Bom, agora ela está na UTI com um quadro de piora que fica variando há dias. Uma das pessoas mais amáveis que você poderia conhecer. A Covid-19 já foi confirmada. E embora a maioria de lá não queira admitir ou arrume subterfúgios para culpar o hospital, já que a pessoa "saiu 'tão bem' de casa", nós sabemos o que houve, sabemos o porquê.
Quem sofre não são apenas aqueles que perpetuam a ignorância e fazem pouco caso dessa "CUEStão" mundial. Infelizmente, aqueles de nós que estão precavidos também sofrem, sofreram ou sofrerão com essa conduta estúpida pautada em defender bandeiras políticas e ideologias tão danosas que hoje comandam o Brasil.
A diferença é que nossos grandes cientistas não possuem nanotecnologias sobrehumanas, não são amigos de seres milenares, de deuses ou de super soldados, de escaladores de parede ou de magos poderosos. Nossos cientistas, no fim de tudo, talvez consigam um tratamento, quiçá uma vacina, mas as vidas que foram ceifadas jamais serão trazidas de volta – aqui a ficção difere da realidade. O sacrifício não será de duas vidas versus metade da população da Terra, porque já perdemos mais de duas vidas e estamos perdendo muito, muito mais que isso.
Mas são apenas números, certo? São apenas casos distantes noticiados nos jornais sobre pessoas que não conhecemos, não são rostos conhecidos, não são entes queridos que viveriam ainda por anos e anos ao nosso lado.
Enquanto ainda forem números, tá tranquilo. O churrascão no fim de semana continua, o baile funk com azamiga também, assim como a pelada com os brothers ou o aniversário do amigo em restaurante aglomerado. As palmas nos aniversários continuarão, os casamentos também (vide uma família aqui de Belém que esteve em um evento assim dias antes de perder dois de seus membros).
Tudo em perfeita ordem, porque números não importam, porque as secretarias de segurança divulgam assim em seus boletins:

"Homem, 47 anos, Belém"
ou
"Mulher, 31 anos, Santarém"
ou
"Homem, 15 anos, Ananindeua"
ou
"Mulher, 67 anos, São Paulo".

São números sem nome, sem quaisquer vínculos conosco. Inominados, não terão funerais, serão enterrados e nem saberemos onde, foram totalmente irrelevantes para o cotidiano maravilhoso e importantíssimo de nossas vidas. Quem liga?
Ah, isso porque nem falei em idosos. São só idosos, certo? Já estão fadados a um fim próximo, e igualmente não possuem rostos. Nem de longe são aqueles seres humanos que nos criaram durante a infância, que estiveram conosco, que nos levaram à escola e são todos cheios de orgulhos por quaisquer besteirinhas irrisórias que façamos – um conto nem tão bom assim, não dos melhores, publicado em uma antologia com gente mais talentosa; um acesso à universidade; a conquista de um estágio, de um emprego, de um diploma ou meramente qualquer coisa que você faça. São só idosos, certo? O fim de suas vidas está próximo mesmo...
Ah, e há também os outros. São só doentes crônicos, certo? Não importa a idade que possuem, são fracos e debilitados por natureza, quem mandou não levarem uma vida saudável? Quem mandou nascerem assim? Hein? Nas palavras de um rapaz que outro dia soltou um comentário por aí, nesta mesma rede social: "é a seleção natural! Quer reclamar? Reclama com a mãe-natureza". Sábio, muito sábio.
Ou aqueles sem doenças pré-existentes que apenas deram azar? Acontece! "Vão morrer alguns? Vão! Mas não pode deixar esse clima aí!".
São apenas números.
Quem liga, né?
Como estaremos do outro lado depois que tudo isso passar, com uma vacina e uma distribuição mundial que levará ainda mais tempo? Superaremos, como os mais otimistas insistem? Ou estaremos como aqueles personagens cinco anos após o estalar de dedos? Desolados, deprimidos e frustrados por termos perdido entes queridos não necessariamente para o vírus, mas para o negacionismo dele, para a ignorância, para o pouco caso, para o deboche, para a tirania e a réplica fanática de uma crença em só um indivíduo paranóico e desvairado? O que vai doer mais: a saudade, a injustiça ou a revolta?
Não teremos um segundo ou um terceiro estalar de dedos redentores. Nesse ponto, a ficção nos dá apenas uma pista metafórica do que ainda pode ser feito diante daqueles que ainda estão aqui. Mas, resta a pergunta: será feito?
Sinceramente, ando desacreditado – nas pessoas, na democracia, na liberdade, na "consciência coletiva" que de fato pouquíssimo existe, e quando existe, é fraca e impotente.
Aqueles "cinco anos depois" do filme vêm aí.
Boa sorte, amigos. E força a todos, força pra caralho.




28 de março de 2020

Homens de verdade





Falemos a respeito deles: homens de verdade. Esses varões respeitáveis com os quais pela rua tropeça-se aos montes. Estão nas esquinas, nos bares e nas padarias, nas grandes empresas e nos caixas de lojas, estão nas motos de delivery e nos requintados escritórios dos maiores conglomerados mundiais. Estão empreendendo com o capital suado de suas mães, tias ou das pensões de seus desconhecidos e desleixados pais – que sequer conheceram, mas deles conservam os genes. Estão a um passo de onde quer que estejamos: são pais de meninos e pais de meninas, são administradores do lar, sempre trazendo para baixo de casa o dinheiro suado do sustento, provendo a sobrevivência de suas famílias. Aos domingos, peregrinam às suas respectivas igrejas – e que de antemão seja sabido que nem todos eles creem no Senhor Jesus Cristo, pois é justo. São católicos e adventistas, evangélicos e pentecostais, agnósticos e ateus, futebolísticos e transcendentais.
Homens de verdade que são a base da sociedade contemporânea – foram da moderna, foram da antiga e também da clássica. Existem por pura necessidade antropológica, pois as culturas precisam deles, sem eles não sobreviveriam. São o pilar da moralidade, dos bons costumes, da força e da virilidade. Sem seus braços fortes de torneados músculos ou meramente fortes de vigor e caráter, o Mercado ruiria e os cartórios tão pouco registrariam crianças – com ou sem vínculos de paternidade, não importa, desde que façam sua parte.
Dê um passo e eles estarão lá. Dê dois passos e se aproximará de um deles. Dê três passos e eles, cordialmente ou não, dependendo de quem esteja ao seu lado, serão muito amistosos e amigáveis, todos sorrisos, todos confiantes e muito seguros de suas integridades. Dê mais de quatro ou cinco passos e qual um abrigo sujo de cachorros, você pisará em um deles sem querer. Pare os passos, olhe para o solado de seu sapato e lá estarão: fatalmente verídicos na verdade que são, não mais intactos, não mais sorridentes, não mais amistosos nem amigáveis, mas baforentos, exalando o que melhor guardam dentro de si – a moralidade impecável e a virilidade rija, ambas em tons de marrom.
De preferência, não esbarre nem pise sem querer nos homens de verdade. Caso contrário, testemunhará uma peculiar exaltação encarnada em palavras bem montadinhas em períodos gramaticalmente bem alinhados com escolhas lexicais muito belamente planejadas e minuciosamente articuladas. Perceberá o quanto domam o dom da língua e o quão recentemente aprenderam a organizar parágrafos de modo coeso (porém com pouquíssima coerência), talvez com o auxílio de um Olavo ou de um André Fernandes. Argumentarão de maneira muito elaborada, como um neandertal se regozijaria ao descobrir faísca após lascar duas pedras. Tome muito, muito cuidado com o dom argumentativo e linguístico desses homens de verdade – oh, talvez eles até o (a) derrubem.
Mas isso é apenas sorte. Poucos deles leram de fato um Olavo para que saibam montar as peças de quebra-cabeças dificultosamente encaixadas que lhes são os parágrafos. Alguns não chegaram a isso, pois os argumentos que o velho sábio cuspiu em suas páginas ainda é muito a ser absorvido por suas mentes de magnífica funcionalidade. Com demasiado e recorrente azar, você encontrará aqueles homens de verdade que não passaram por um Fernandes ou por um de Carvalho, muito provavelmente, no máximo, por um Nando, por um Weintraub, por um Malafaia, por um Macedo ou pelas inspiradoras musas dos vales de Urach. E com demasiado e recorrente azar elevado ao quadrado (o que costumeiramente acontece) você topará com aqueles homens que por nenhuma dessas grandes mentes foram lapidados, apenas pelas emanações de repetições do que foram os ecos de uma voz há muito proferida no interior de uma gruta.
São esses homens de verdade que aos montes encontramos por aí. Homens que são de moralidades incontestáveis – que cortejam esposas, filhas, primas, colegas, amigas e cunhadas alheias, homens que com seus músculos torneados e seus grandiosos instrumentos de virilidade possuem autoestima inegável e elevada; cortejarão moças mais novas e até aquelas com as mesmas idades que possuem suas filhas, seja a mais velha, seja a mais nova delas, e persistirão até que obtenham positivas respostas. Quando ignorados, cuspidos ou desprezados, estes homens de verdade sentem-se ofendidos, pois aquelas moças jamais seriam dignas de vossas companhias, pois ao contrário deles, não são mulheres de verdade, apenas meras meretrizes de sovaco cabeludo que se julgam a última Cream Cracker num pacote amassado. As alcunhas que depositarão às personalidades delas são as mais variadas – bastam um acúmulo de expressões culturalmente repetitivas, pouquíssima criatividade e teremos uma lista complexa.
E quando descobertos, apontados, revelados, acusados ou expostos publicamente por perturbarem a fidelidade de casais alheios, ao cortejarem as moças alheias com seus emojis de palminhas, com seus emojis de corações brilhando, com seus comentários recorrentes, com suas intermináveis tentativas em puxar conversas ou tecer elogios sem criatividade, com suas fotos no espelho de abdomens torneados ou relógios brilhantes em volantes de Hondas Civic, quando finalmente expostos diante de suas “más intenções”, então exibirão o argumento mais familiar da história de sua espécie:
Estás ficando louco (a)? Eu jamais faria isso.   
Deixa de insegurança. Eu sou homem de respeito, achas que eu sou moleque? Eu sou homem de verdade, eu jamais faria isso.
Deixa disso, estás louco. Vai cuidar do que é teu e deixa de paranoia.
Estás maluco (a)? Eu sou homem de Deus! Eu sou casado – e nesse momento exibirão as alianças nos dedos anelares, após encoxarem moças em filas ou em transportes públicos lotados. Esses, em especial, erguerão a mão esquerda com firmeza, ofendidos, descabidos em tamanha integridade e descrentes de tamanha acusação. – Eu sou casado! Tenho mulher e filhos. Tenho família! Eu jamais faria isso! Não tenho o porquê fazer!
Esses são homens de verdade da classe A – a classe Familiar. São o nível mais elevado, o topo da evolução da moralidade e do caráter. Argumentarão de forma impecável, porque foram educados durante a infância e adolescência em boas escolas de Belém, providas pelos altos salários de seus pais Delegados que também eram sujeitos íntegros e respeitabilíssimos. Enquanto os filhos enrolavam seus becks e fumavam a verdinha escondidos dentro de um Impacto ou de um Marista, os pais proviam sua sobrevivência atirando em bandidos e bicudando vagabundos até o momento em que a profissão se mostrasse promissora. Não mais adeptos de limpar as ruas, seguiram a carreira política – foram vereadores ou deputados estaduais em Belém, eleitos devido a uma fama de fúria e ferocidade nas periferias da cidade, acumulando cadáveres pelas valas. No cargo público, tiveram dinheiro em grande escala para financiar a faculdade particular de seus filhos, que agora percebiam que a verdinha era coisa de vagabundos de universidade pública, finalmente conhecendo o pó mágico de pirlimpimpim que entrava pelas narinas e os fazia voar.
Esses homens de verdade de classe A cresceram em profissões não muito promissoras. Encheram as paredes com cursos técnicos pagos, tentaram o mercado de trabalho cruel por um tempo, porém sempre sem muito sucesso, mas pouco desespero, é claro. Empreendedores natos, utilizavam com frequência o capital de investimento dos pais (agora ex-delegados militares) para criar novos negócios. Enriqueceram por um tempo. Obtiveram com emprego duro o carro dos sonhos – talvez um Honda Civic, um City ou, com muita humildade, um Fit, geralmente um HB20... com esforcinho um Sedan. Cresceram, evoluíram. Cultivaram um casamento conturbado, todavia proliferaram – três meninas lindas, pois língua não tem osso e tudo há de ser pago um dia, em nome daquelas moças que tanto xingaram, anos e anos atrás. Floresceram seus laços familiares, fortaleceram o interior de seus lares com as regras de Deus – que consistiam, nos fins de semana, em duas putas e cinco carreiras de pó. Após os cultos de Domingo, jantavam com as meninas e punham-nas para dormir, e então beijavam suas esposas e pediam a elas (“só hoje, vai, amorzinho”) um pouquinho de seus rabos. Quando não passavam a elas verrugas no ânus, passavam algum tipo destrutivo de HPV, causando um princípio de câncer no útero das esposas que quase, quase, por muito pouco as fez desistirem de tudo, mas com o apoio de Deus e o apoio familiar, superaram as provações.
Chamavam-se Andrés, Alcides, Sydnes e Bernardos; Cláudios e Edivandos, Hugos dnkvvvdknvkHugos e Ítalos, Wilsons e Thiagos. Todos com alianças nos dedos, Deus embaixo dos braços e messias nos congressos – amparados pela fé, pelo caráter, pelo Mercado, pelo capital de investimento dos próprios pais (mesmo aos 40 anos) ou pela boa moralidade.
Em passos desastrosos também é possível tropeçar por aí com aqueles homens de verdade da classe B – que ainda não possuíam família, mas testavam, inconsequentes, suas tentativas entre as mais diferentes pernas da cidade, com sorte pagando um aborto ilícito que, se Deus quisesse, daria certo. Estavam a um passo de conseguir tudo o que almejavam. Frequentemente repetindo as artes dos gracejos e dos cortejos para com moças comprometidas ou menores de idade, não cansavam de verbalizar as mesmas desculpas supracitadas quando desmascarados:
Estás ficando louco (a)? Eu jamais faria isso!  
Deixa de insegurança. Eu sou homem de respeito, achas que eu sou moleque? Eu sou homem de verdade!
Deixa disso, estás louco! Vai cuidar do que é teu e deixa de paranoia!
Estás maluco (a)? Eu sou homem de Deus!
Igualmente adeptos a faculdades particulares, amantes de verdinhas em ambientes sumariamente secretos (“porque isso é coisa de vagabundo de universidade pública!”), diferiam dos homens de verdade da classe A em um importante aspecto: eram eles quem pagavam as mensalidades de suas próprias faculdades. E isso, ah, isso era um motivo de orgulho, um imperativo categórico na boca de muitos deles:
Esse carro é meu!
Essa moto é minha!
Eu consegui com o fruto do meu próprio trabalho. Eu trabalho e compro o que quero, pago minha faculdade!
Achas que sou moleque? Eu não preciso fazer essas gracinhas, não.
Sou homem de verdade, não sou moleque! Me respeita!
Diferentemente de homens normais que trabalhavam e sustentavam seus filhos e sempre tentavam um negócio novo às custas do próprio suor e do próprio empenho, estes homens de verdade da classe B adoravam exibir suas conquistas. Sempre cresciam para cima dos outros, fosse quem fosse, ao estufarem o peito e exibirem o que compraram com o próprio dinheiro, o que tinham ou o que deixaram de ter, como se recentemente houvessem descoberto que era uma atitude normal, não algo digno de relinchos exasperados: comprar o que se quer com aquilo que se conquista. Entretanto, geniosos e revolucionários, exibiam seus bens para que todos vissem – fossem seus 30g de pó guardados no bolso esquerdo ao lado da chave de casa ou fossem seus relógios brilhantes no pulso que segurava o volante de seus HB20-não-Sedans – “QUE CONSEGUI COM MEU PRÓPRIO DINHEIRO!”, jamais esqueçamos.
Eram sujeitos com traumas na infância, comumente criados por mães desgostosas vindas de clássico abandono paternal – coisa da qual estavam fadados a repetir. Eram de integridade tão sólida quanto os da classe A. Chamavam-se Arnaldos, Antônios, Brunos e Carlos; Matheus e Orlandos, Thenórios e Renatos, Kaios e Fernandos.
É graças a eles que o mundo gira, que estamos aqui sendo meros subservientes de suas palavras bem articuladas ou não, de suas presenças deificadas por Salvadores em carne e sangue, de sua extrema e digna necessidade de autoafirmação, superioridade, eloquência e virilidade. Homens de verdade que mostram a todos nós, homens pífios e menores, mulheres indignas e meretrizes, que devemos a eles nos ajoelhar e louvar.
E que assim o façamos.
Pobres de nós.