Change that song, Mr. DJ
All we wanna hear is rock 'n' roll tonight
(Change that song, Mr. DJ - Tim Timebomb)
I.
Angakkuq
Como um punhal atravessado na noite, a
rota 33 cortava a pequena cidade agrícola sem nome ao meio. O que há mais de
duas décadas havia sido uma importante rota comercial de insumos e
fertilizantes, hoje não passava de um ponto monótono no meio do mapa, mera
parada obrigatória – mais por falta de opção do que por motivos atraentes –
para aventureiros e viajantes na pausa de quinze minutos que os ônibus
interestaduais faziam ali.
O local ficava à beira da estrada: não
um terminal, mas um antigo e já desativado posto de gasolina com pequeno
estacionamento e uma simplória e abandonada galeria de lojas. À época da
inauguração, foi um dos principais e mais atrativos cartões postais da cidade –
a lista não era verdadeiramente extensa nem sequer existente. O prefeito, cuja
família dominava o cargo há cinco gerações no passado e dominaria adiante no
futuro, estampou propagandas em outdoors num raio de quilômetros, convidando os
viajantes a desfrutarem da diversão.
A prosperidade, entretanto, não passou
de areia escorregando pela cintura da ampulheta. Por nenhuma razão especial, a
terra cobrou seu preço: as secas vieram e com elas a crise. De repente, a
cidadezinha tornou-se um ponto desconhecido no mapa, cujo nome tanto se perdeu
que nem aqui foi ou será mencionado.
Da galeria, tudo o que restou foram as
coberturas do posto de gasolina, que ainda forneciam a iluminação necessária
para afastarem a escuridão total, tanques oxidados, reservatórios vazios e um
telefone público sem gancho. Nenhuma dessas coisas tinha utilidade, eram senão
ordinárias decorações. Apenas a pequena cabine de venda de passagens
funcionava. Ela servia como ponto de parada e era a única companhia de viagem
interestadual que fazia trajeto obrigatório ao longo da rota 33. Durante o dia,
não era incomum encontrar ônibus estacionados fazendo conexões e trocando de
passageiros, que se espreguiçavam, acendiam seus cigarros, buscavam informações
com o vendedor da cabine ou praguejavam o fato de que o único banheiro exibisse um
garrafal INTERDITADO na porta. O aviso estava ali há quase cinco anos.
Era noite de Halloween - não que o ar
estivesse diferente ou que crianças perambulassem, fantasiadas, pelas ruas.
Àquela hora da noite, não havia mais linhas fazendo conexões. O próximo ônibus
só passaria às oito da manhã, quando o velho funcionário já estaria há mais de
duas horas sentado organizando os bilhetes com seu sorriso amistoso. Para ele,
o contato com pessoas de outros lugares do mundo era o fator mais importante (e
empolgante) de seu ofício.
Apesar disso, desconfiou do jovem padre
que estava ali sentado desde as oito da noite. Vez ou outra, o sacerdote
esticava os pés e caminhava distraído com as mãos mergulhadas no sobretudo
escuro. Tanto os cabelos como os olhos eram de um preto profundo, bem alinhados
atrás da orelha até mesmo quando o vento morno de outubro os desarranjava. Nos
ombros relaxados, carregava uma elegância natural, e atravessada no peito, uma
bolsa igualmente preta. Pelas horas que ficou ali, não tocou na mala, tampouco
se afastou dela. Ao contrário dos jovens daquela época – ele não aparentava passar
dos trinta e cinco anos –, não fez uso de aparelho celular. Parecia bem-sucedido
em se manter absorto, à espera de algum ônibus que jamais chegaria, pois não
fez questão de comprar qualquer bilhete nem de subir nos últimos que por ali
passaram horas atrás.
Preocupado com o horário e com a
natureza do jovem padre, o velho guardou os bilhetes na gaveta junto com a
caderneta de horários para o mês de novembro, trancou-os com três voltas;
apagou as luzes interiores, fechou a porta com outras três voltas e suspendeu o
portão de ferro. Em seguida, usou um pesado cadeado para trancá-lo. Voltou a
perguntar ao sacerdote (a mesma pergunta que fizera antes):
— Tem certeza que vai ficar aqui
sozinho, padre?
— Minha carona está atrasada –
respondeu ele através de um pesado sotaque britânico.
O homem assentiu. Guardou as chaves da
cabine no bolso. Nunca havia conversado com alguém de terras tão distantes. De
maneira muito discreta e nada invasiva, ele acenou para o padre e seguiu até o
estacionamento. Entrou na caminhonete e deu partida nela, para em seguida
mergulhar na escuridão da rota 33.
Agora sozinho, o
sujeito esticou as pernas e por hábito aqueceu as mãos nos bolsos do sobretudo,
embora a noite não estivesse fria. Iluminado apenas pelas últimas luzes acesas
do posto de gasolina, ele fechou os olhos e recostou a cabeça na parede. No tempo
em que aguardou ali, não escutou qualquer automóvel cruzar a estrada. Relaxado,
manteve-se atento aos sons da noite: grilos no interior da galeria, marchando
por entre os musgos que certamente subiam pelas paredes; ratos e mariposas que descansavam
no capim alto que ocupava o playground aos fundos; morcegos que saíam do
interior das velhas lojas para sua noturna caçada e retornavam, saciados, de
barrigas cheias e bocas adocicadas, para seu ninho de amantes e comparsas. Além
deles, apenas sua respiração fazia coro à orquestra. Ele não se preocupou com
perigos escondidos ou ameaças noturnas – fossem elas humanas ou não, pois das
certezas que possuía, apegou-se àquela que o ofertaram: encontre-nos no
velho posto de gasolina, e fique tranquilo, ele não estará lá.
Além dela, outra
certeza bem maior o fazia abraçar a falta de preocupação e o preenchia de
aparente desleixo, pois não havia desligado os sensores internos de perigo por
acaso. Era a certeza da proteção. A certeza de que não morreria aquela noite. A
certeza de que não sucumbiria tão cedo. Pois tinha outra missão a ser cumprida,
uma maior e mais importante. Não cairia à beira da estrada enfrentando um
provável predador sedento de migalhas em cidades sem nome – aquilo era apenas
um passatempo, um contratempo, um breve desvio de melhores rotas e
conhecidas curvas. Não seria ali, num antigo posto de gasolina, em uma noite
amena e inofensiva, enquanto descansava as pálpebras e aguardava para pagar um
antigo favor, que estaria em perigo.
Meia hora depois, escutou
um ronco distante preencher o silêncio da noite. Pouco a pouco, o primeiro som
de motor em mais de três horas se aproximou da antiga galeria à beira da
estrada, um alento aos ouvidos. Gradativamente, o sinal de vida aproximou-se
até que os faróis do carro iluminassem o estacionamento, então os pneus
rangeram sobre os cascalhos e pararam embaixo do posto, onde os ônibus
costumavam estacionar. O motor do Ford Crown Victoria 1992 parou de ranger e a
ignição foi desligada. O motorista abriu a porta e contornou o veículo para
ficar de pé ao lado do padre.
Joseph Akna era alto
e corpulento. Em verdade, os quase 2 metros de altura tornavam os 1,80m do
padre irrelevantes. Aparentava beirar os cinquenta anos e na cabeça
predominavam cabelos grisalhos. Os olhos eram felinos e de um castanho
brilhante mesmo na escuridão da noite, traços típicos do povo inuíte. O calor
daquelas terras quase áridas era diabólico para um homem como ele, acostumado
às baixas temperaturas do norte. Joe estava muito, muito longe de casa.
— A estrada parecia
não ter fim.
— Relaxa — Robert
levantou e estendeu a mão. — Há quanto tempo, Joe.
O homem respondeu ao
aceno, pouco amigável. Em seguida, analisou-o dos pés à cabeça.
— Ainda brincando de
padre?
— É Halloween, colega
– Robert, o falso padre, respondeu.
— Obrigado por
rastreá-lo até aqui – imediatamente o homem mudou de assunto. — O que você já
descobriu?
— Esta é a única
cidade num raio de 40km. Você não vai encontrar muita vida por aqui. A maior
parte da população é composta por velhos rabugentos e fofoqueiros, a outra
metade é de adolescentes entediados que logo sairão daqui ou que passarão o
resto da vida nesse fim de mundo. População de 8 mil habitantes.
— É gente suficiente
para que ele se alimente.
— O que exatamente
"ele" é?
— Um tuunbaq
desgarrado.
Não foi Joe quem
respondeu. Da porta do carona, a garota saiu num salto desanimado.
Espreguiçou-se como fariam os viajantes e igualmente reclamou ao ver a placa do
banheiro com o garrafal INTERDITADO.
— Robert, esta é
Kaya, minha filha.
— Ei, Robbie — a
jovem inuíte acenou, ligeiramente mais enérgica e simpática que o pai. A forma
como o tratou pareceu íntima, como se o conhecesse há uma vida inteira. Os
cabelos eram longos, lisos e estavam presos em um rabo de cavalo, de uma cor
castanha que se fundia à cor da pele, e à exceção do pai, tinha olhos
amendoados, muito mais penetrantes e brilhantes sob a escuridão da noite – Você
sabe onde tem outro banheiro por aqui? Eu realmente, realmente, preciso
muito esvaziar a bexiga.
— É só arrombar a
porta — Robert indicou, em tom de desalento.
— Merda.
Kaya se inclinou para
dentro do carro e inspecionou a bolsa sobre o banco do carona. Retirou de lá um
rolo de papel higiênico e encarou com receio o corredor da galeria, juntamente
com a placa pendurada sobre as correntes. Hesitante, passou as pernas sobre a
patética contenção e usou a lanterna do celular para iluminar o caminho.
— Cuidado, Kaya — o
pai alertou.
— Fica tranquilo,
pai. Ele não está aqui. Aliás, ele vai ser o menor dos meus problemas
agora — ela forçou a voz à medida em que se afastava na escuridão.
Quando os passos
ficaram mais distantes junto com o ponto luminoso da lanterna, Joe respirou
outra vez e recostou-se na lateral do carro.
— Como ela tem tanta
certeza de que ele não está aqui? — Robert perguntou.
Joe riu.
— Você tirava um
cochilo quando chegamos aqui, Robert. Como você sabia que ele não
estaria aqui?
— Porque você me
avisou pelo telefone. Aliás, como também sabia disso?
O homem relaxou os
ombros. Não tirava os olhos atentos do ambiente.
— Não me pergunte
como ela sabe das coisas. Ela só sabe. E além disso, ela pode senti-lo.
Caso o tuunbaq se aproxime,
Robert ignorou pela
segunda vez a menção ao nome e à criatura. Outro detalhe, entretanto, importava
mais:
— Como me localizaram?
Joe suspirou,
impaciente.
— Estamos atrás de
tuunbaqs desgarrados. Esse é o terceiro que rastreamos ao longo do país. Eles
estão muito longe de casa e isso não é um bom sinal. Quando coisas que nunca
aconteceram começam a acontecer, nunca é um bom sinal — ele cuspiu um fio de
saliva, nunca diretamente olhando para Robert. — Há uma semana, Kaya acordou no
meio da noite, acendeu as luzes e discou um número no celular.
— Eu estava no banco
de um terminal. O telefone público tocou, alguém atendeu e anunciou meu nome em
voz alta. A ligação era para mim. Chamaram meu nome completo.
— Não se sinta
especial, você era o sujeito útil mais próximo que tínhamos.
Robert ignorou.
— Kaya deveria ter
dois anos de idade quando padre Mallory e eu pedimos a ajuda de sua família,
Joe. Ela nem sequer se lembra de mim ou do meu nome. Por Deus, nem eu lembrava
dela — Robert falou em tom baixo. — Até esta noite, ela nem me conhecia.
— Bom, acho que
chegou a hora de você nos retribuir o favor, não é?
— É.
Joe Akna se aproximou,
fitando a escuridão onde antes a filha havia seguido. A luz da lanterna
continuava distante.
— Escuta, Robert.
Kaya só tem quinze anos de idade. Infelizmente, foi ela e não eu quem recebeu a
merda desse dom. Ela pode ser uma péssima xamã, ela pode ser uma xamã razoável
ou, que os deuses nos protejam, poderia ser a mais poderosa xamã que tivemos há
quase um século. Eu não me importo com nenhuma dessas possibilidades. Kaya
ainda é a minha filha, e se algo der errado esta noite, se por menor que
seja o perigo, o nosso plano desandar e as coisas saírem da linha, eu vou
segurá-la pelos braços e a trarei de volta, você me ouviu?
— Claro.
— Eu não sei o porquê
nem como ela te encontrou, mas você está aqui. Você e seus livros sagrados e
seus crucifixos e seus rituais assassinos. Há treze anos você e padre Mallory
quase mataram uma criança antes de descobrirem que não era um demônio-cristão
quem a possuía. Só então foram atrás de nossa família. Nós resolvemos a
cagada cristã de vocês. Eu conheço os seus métodos, conheço vocês,
branquelos, e como misturam suas crenças e suas armas de fogo. Diga-me, você
tem uma na cintura agora, não tem?
Robert não respondeu.
— Por isso, se o
plano der errado e se minha Kaya estiver em perigo, eu saio de lá
imediatamente. Ela pode ser a única xamã do meu povo, mas antes disso é a minha
filha. Se eu desconfiar que você se empolgou desejando cumprir com algum código
moral cristão ou sádico, eu a arrasto de lá e te deixo pra trás. Você me
entendeu?
— Claro, Joe. O plano
é de vocês. A noite é de vocês. Eu só estou aqui para pagar uma dívida antiga.
Acima de tudo, ela é sua filha — ele balançou os ombros em comum acordo. — Você
é quem manda, colega.
Quando Kaya retornou,
um silêncio incômodo pairava entre os dois homens. Ela passou por cima da
corrente, guardou o papel higiênico e apoiou-se sobre a porta do carro, já que
era quase tão alta quanto o pai.
Robert ergueu o dedo
indicador:
— Afinal: o que,
Inferno, é um tuunbaq?
Antes que
respondesse, Kaya olhou para o pai. Na defensiva, parecia apenas uma criança em
posse de uma informação importante e à procura de permissão para revelá-la. De
braços cruzados, e sempre a contragosto, Joe balançou a cabeça em tom
permissivo. Embora fosse a xamã, e embora fosse ela a receber sonhos divinatórios,
não passava de uma garota de quinze anos à sombra – literal e metafórica – do
pai.
— O tuunbaq é um
espírito-animal criado pela deusa Sedna para satisfazer sua fúria e cumprir sua
vingança contra aqueles que a desafiaram — explicou a garota, retraída. — Nosso
povo fala sobre apenas um espírito tuunbaq, mas existem vários. Incontáveis.
Eles conseguem assumir a forma física quando são despertados e se tornam
praticamente incontroláveis. Se transformam em grandes ursos brancos, mas
possuem o dobro do tamanho e um pescoço comprido para conseguirem caçar. Um
tuunbaq tem fome pela carne de suas vítimas, então… são espíritos muito, muito
perigosos, saca?
Joe escutou tudo com
a cabeça abaixada num misto de impaciência e tédio. A informação soava
enfadonha aos seus ouvidos, mas o fato de não reagir nem a corrigir aliviou a
garota.
— E por que um
espírito como esse está tão distante do norte?
Pai e filha se
entreolharam. Ela arriscou uma resposta, mas foi interrompida e calada por Joe:
— O mundo está
maluco, Robert. Eu aposto que tem notado isso por aí. Não fazemos ideia do
porquê um tuunbaq faz o que faz, principalmente ao migrar para outras regiões —
Foi um arranjo de palavras pouco convincente. Sequer se deu ao luxo de fingir
esforço.
Insatisfeito, Robert discordou
com uma risadinha.
— Se quiser dizer
alguma coisa, só diga — Joe vociferou, impaciente. A voz era a exata
representação de sua altura e de sua envergadura.
Robert não hesitou.
Arranhou uma resposta, porém Kaya interviu:
— Não é isso o que
realmente importa, Robbie. O tuunbaq é mais forte que um urso adulto e consegue
facilmente rasgar um homem ao meio. São espíritos que destruíram e dizimaram
aldeias inteiras. As histórias contadas sobre as carnificinas realizadas por
eles são diversas. Eu escuto essas histórias desde criança. Há quem diga que o
mero presságio de um deles se aproximando foi responsável pelo sumiço em
Anjikuni. O que você precisa entender é que três corpos são um número
pequeno para um tuunbaq desperto. Ele não está vivendo em seu hábitat natural,
caso contrário deixaria um rastro de morte muito maior. Este parece ser mais
discreto e saber o que faz.
— Então ele se tornou
racional?
— Todos os tuunbaqs
são racionais — explicou Kaya. — A violência também é um tipo de racionalidade,
principalmente quando deliberada. Eles são criaturas violentas em seu hábitat
natural, ficam ainda mais irritadas quando são atacadas ou perseguidas. Este
não sabe que estamos atrás dele, e está agindo estranho porque está conhecendo
ambientes estranhos, como um caçador explorando o espaço.
— Como o
encontramos?
Antes que a garota
respondesse, o pai a cortou:
— Kaya não sentirá o
tuunbaq a menos que estejam próximos um do outro. Isso significa que teremos de
procurá-lo ao redor da cidade pelos próximos dias.
— Acho que não
precisaremos nos estender tanto assim — Robert finalmente abriu a bolsa que
carregava consigo. Retirou um mapa pequeno e amarelado, o único que encontrou
em suas incursões pela cidade. Estendeu o papel amassado sobre o capô do carro.
Kaya e Joe se
aproximaram.
— Há três semanas,
dois netos de fazendeiros locais foram encontrados em um celeiro abandonado. A
princípio, a polícia achou que se tratasse do ataque de algum animal selvagem,
então deixaram o caso passar. Esta foi a região onde encontraram os dois
garotos — ele apontou para uma extensão alaranjada no mapa. — A cidade é
minúscula, a população também, mas a região é grande e cercada por fazendas, a
maioria não produz muito, a não ser para a própria subsistência e mercado
local. Eles só plantam grãos na região. As criações de animais são pequenas,
portanto teriam notado os ataques caso tivesse ocorrido algum. Mas não ocorreu,
não aos animais que esperavam, pelo menos — ele deslizou o dedo para não
muito distante do ponto anterior, agora em uma área mais afastada da cidade e
da propriedade abandonada. — Cinco dias depois, outro corpo foi encontrado: um
velho bêbado estraçalhado no meio do próprio milharal. Ninguém deu importância.
Entre as duas propriedades onde os corpos foram encontrados, existe isso aqui —
ele apontou para um círculo grande e azulado, composto por desenhos
industriais. — Aqui fica uma fábrica abandonada de fertilizantes. É o
único local que alguém se esconderia caso estivesse na cidade. É onde eu
me esconderia.
— Bom, é uma aposta
óbvia — Joe comentou, minimamente desdenhoso. — Pela proximidade, acha que ele
está se abrigando na fábrica?
— Digam-me vocês —
ele dobrou o mapa de volta. — Esse é um padrão comum de um tuunbaq?
Kaya procurou no
olhar do pai a resposta para suas próprias dúvidas. Não recebeu nada além de um
vazio absoluto. Sem respostas, Robert insistiu:
— O plano é de vocês.
Como vamos detê-lo?
Kaya ainda tinha a
dúvida anterior na boca, palavras afogadas pelo repentino e inesperado
questionamento feito por Robert. O silêncio incômodo que o próprio pai assumia
também aumentava a sensação ruim: um rebuliço no estômago, como se os
salgadinhos que comeu durante a viagem boiassem no suco gástrico e não se
sentissem confortáveis, desejando trilhar o caminho inverso garganta acima. Ela
precisou ignorar a estranha sensação quando o pai movimentou o queixo, exigindo
dela uma nova explicação. A garota acatou à ordem:
— Um ritual. Eu
preciso estar próxima do tuunbaq. Não próxima para ser atacada, mas apenas para
senti-lo. Ele vai funcionar como uma espécie de… expurgo… quando estiver
completo, o tuunbaq não vai desaparecer do mundo nem ser morto. Ao invés disso,
retornará às planícies do norte e lá permanecerá. Foi o que fizemos com os dois
anteriores.
— Ela fará o ritual e
nós ficaremos de guarda — Joe acrescentou. — Acha que pode fazer isso?
— Claro — Robert
respondeu.
Joe contornou o carro
e abriu a porta. Antes que entrasse, Robert pigarreou baixo, com um sorriso
azedo nos lábios:
— Ele provavelmente
estará escondido na fábrica abandonada. Essa é a boa notícia.
— E a má notícia? – Surpresos,
pai e filha perguntaram em uníssono.
— É que hoje é
Halloween — ele apontou para a própria roupa, na altura do pescoço, onde o
amito repousava por baixo da camisa de botões. Havia na voz uma empolgação tão
verdadeira quanto sua autenticidade sacerdotal. — E os garotos da cidade darão
uma festa.
Joe trincou os dentes
e bateu a porta do carro ao entrar. Já Kaya reproduziu, mais enfática, o
azedume de Robert. Ela abriu a porta de trás e sinalizou para que, feito uma
donzela, ele entrasse no Crown Victoria. Quando o pai ligou o motor e deu
partida, ela sussurrou, irônica:
— Ótimo. Vamos
festejar.
II.
Improviso
Os faróis dos carros,
unidos em uma só direção, faziam com que a pequena estrada perdesse seu caráter
sombrio. As placas apagadas à beira do asfalto indicavam a instalação
industrial a menos de 5 km. Nos tempos áureos, o trajeto havia sido utilizado
por pesados caminhões que transportavam fertilizantes para os condados, cidades
e estados vizinhos. Em circunstâncias normais, não seria fácil de encontrá-lo,
sobretudo se seguissem as instruções do mapa amarelado, porém foi praticamente
impossível de se perderem devido à noite agitada. Os carros seguiam para a
antiga fábrica, alinhados qual procissão barulhenta. Os automóveis eram
conduzidos com manobras irresponsáveis, velocidade excessiva e carrocerias
abarrotadas de jovens erguendo bebidas em comemoração, gritando ao som de
música alta.
Não era, afinal, um
segredo onde a festa aconteceria. Não que a polícia se importasse com um bando
de jovens bebendo nem que esse fosse um evento extraordinário. Na rotina de um
lugar como aquele, e para a mentalidade dos caipiras, a recreação significava
alívio para as crianças. Que fossem crianças. Que fossem irresponsáveis.
Que cometessem os mesmos abusos que os pais cometeram no passado e que
vivenciassem os mesmos alaridos que seus filhos também vivenciariam no
futuro.
O Ford Crown Victoria
chegou ao destino. Com um coro de buzinas eliminando o vazio da noite,
lentamente se aproximaram de outro ruído mais distante que ganhou seus ouvidos:
música eletrônica. Conforme tornou-se mais distinto, a estrada revelou o
complexo abandonado à frente. Ela se alargou até um largo estacionamento de
caminhões, onde centenas de carros e motocicletas estavam estacionados. O
asfalto continuava até o alto muro da fábrica, agora acinzentado e parcialmente
destruído. Um pequeno posto de guarda era a única barreira entre o
exterior do estacionamento e o pátio interno do complexo. Os portões elétricos
não existiam mais, apenas seus trilhos oxidados fundidos ao asfalto e ao
concreto. Ao longo de certos pontos do muro, viam-se ainda pedaços isolados de
arame enferrujado.
Se anteriormente o
posto de gasolina e a galeria abandonados passavam a impressão de que a cidade
não era habitada, o estacionamento afirmava o contrário. Ali existia vida,
existia o som dos carros, existia a profusão de vozes, de gritos e de risadas;
misturavam-se aos passos desconexos de adolescentes que ensaiavam sobre o chão
um estilo de dança que os entregava uma espécie de cômico transe, um estado
nirvânico incólume e alheio às mazelas do mundo, dos males que secavam,
consumiam e entregavam sua cidade à seca, à escassez e à melancolia; que os afastava
dos possíveis monstros que habitavam o interior de suas vidas e, acima de tudo,
que lhes entregava uma segura ignorância do que um tuunbaq significava e do
quão perto de suas vidas ele estava.
A maioria era
composta de adolescentes que mal largaram as calças da infância. Seguravam
copos de bebida alcoólica, cigarros, aglomeravam-se em pequenos grupos com
capôs e porta-malas abertos, para a partilha de coisas mais fortes – não
importava se doces mais fartos ou se travessuras mais divertidas. A
outra metade era de adolescentes beirando a idade adulta. Vestiam-se com roupas
excêntricas, fantasias que utilizaram no Halloween passado e usavam novamente
neste, pois a cidade era pequena e ninguém haveria de se importar com máscaras
e remendos repetidos. As roupas imitavam caveiras, fantasmas e corpos
mutilados, maquiagens de esqueletos e santas muertes pintadas em tinta
neon, além de imitações de zumbis mal feitos. Os rapazes traziam as parceiras
sob os braços, cheerleaders com cicatrizes nos rostos e xarope de milho
vermelho escorrendo pelos braços, pernas e pescoços, descendo com ênfase até os
decotes para realçar o aumento de volume que provavelmente obtiveram no último
verão. Havia também uma miríade de fantasias que caía de forma cafona e
ridícula nos garotos (alguns deles sequer estavam fantasiados, trajavam apenas
as jaquetas do time de futebol porque ou eram maduros demais para aquele tipo
de festa ou possuíam pouca imaginação para quaisquer outros repertórios
estilísticos) e uma sucessão de fantasias criativas nas garotas, a maioria,
entretanto, também sensualizando as curvas, os seios e as pernas de cada uma
delas.
Além da vida que
eclodia em aquecimento no estacionamento da fábrica, havia a música eletrônica
que vinha do interior do complexo, muito além dos muros altos e dos arames
carcomidos e inofensivos. O som era vibrante e frenético, pulsava como uma
corrente sanguínea em pleno exercício físico: correndo, saltando, soprando,
convidativa, como uma trombeta angelical aos ouvidos e desejos daqueles que
estavam relegados à rotina do milho, à repetição de um estilo de vida que lhes
era imposto pelo tempo parado e pelo abandono do progresso.
Quando finalmente
encontraram uma vaga para estacionar, Kaya bufou. Saiu do automóvel com muita
relutância, revirando os olhos e encarando tudo com um visível desdém. Não
eram, no entanto, o deboche e o senso comum de superioridade, típicos de sua
faixa-etária, que a acometiam, mas a maneira como alguns hábitos neandertais
podiam ainda estar presentes em sociedades brancas que tanto se vangloriavam de
sofisticação social e biológica. Avistou rapazes passarem com duas, três ou
(céus, como seria possível?) quatro garotas sob os braços ou os rodeando como
satélites naturais, roncadores e gloriosos por seus feitos de grande vigor
masculino. Já outros, os que não eram galãs nem líderes natos da escola,
optavam por táticas diferentes para conquistá-las: irritavam-nas, corriam atrás
delas com mãos livres de culpa ou de respeito, ousavam tocá-las sem permissão (é
só brincadeira, afirmariam eles se questionados), ao que elas respondiam
com encabulado escândalo e protestos silenciosos, mal sabendo que, de um jeito
ou de outro, fossem os bonitões ou os fracassados encrenqueiros, os rapazes
conseguiriam o que tanto almejavam para aquela noite – mesmo se com isso elas
concordassem ou não. Talvez, naquela aparente e inofensiva noite de Halloween,
para algumas daquelas garotas outro mal bem maior e mais sistemático que o
tuunbaq estivesse a espreitá-las. Tão logo ele as devoraria.
Joe e Robert abriram
o porta-malas. Organizaram os materiais de que precisariam para o ritual e
repassaram o plano. Kaya ficou entre eles, tentando reassumir a seriedade e o
comprometimento. De repente, ela massageou o peito e respirou fundo antes de
fazer um muxoxo. Concluiu que não somente o que via a incomodava, como também a
súbita ânsia de vômito que denunciava a proximidade do tuunbaq.
Um furgão estacionou
ao lado deles. Quando as portas de trás se abriram, um grupo de cinco jovens
caucasianos desceu fazendo barulho e berrando o que julgava ser um canto nativo
americano. Além da cantoria, estavam fantasiados com cocares em penas
vermelhas, azuis e brancas, além de listras pintadas à mão, e de maneira
infantil, com as mesmas cores pelo corpo (os rapazes, sem camisa, já as garotas
de roupas de banho). Um deles até carregava um arco e flecha de brinquedo
infantil. Circularam o furgão em dança caricata, disseram palavras caricatas e
em seguida dividiram garrafas de cerveja caricata. Passaram ao lado do Crown
Victoria com tamanha empolgação que sequer perceberam as três figuras
destoantes da noite que remexiam em materiais como ervas armazenadas em potes
de vidro fechados e marcados com inscrições no idioma inuktitut, gravetos
específicos e colhidos das tundras árticas do norte. A estranheza sequer foi
notada, embora, ágeis, Robert e Joe se esforçassem em passar despercebidos.
Kaya pronunciava ao pai o checklist de ingredientes necessários, enquanto ele
balançava a cabeça e guardava tudo em uma bolsa semelhante à que Robert trazia
consigo. Os materiais que possuíam em dobro, dividiram - ervas das quais Kaya
frisou que carregassem em dobro para eventuais emergências.
O grupo naturalmente
oxigenado de nativos americanos já havia se afastado e quase atravessava o muro
quando Maya percebeu a figura de pé atrás dela. Era uma das indígenas, ruiva
como uma raposa e com olhos tão azuis quanto o mar. Parecia ter pouco mais de
vinte anos e vinte centímetros a menos que Kaya, de modo que não conseguia
descobrir o que de fato faziam.
— Ei, caras — chamou
a garota. — Ei, meu bem, cê não vai chamar o padre pra vir com a gente? — E
apontou para Robert — A menos que ele esteja com você — pretensiosa, ela recuou
com as mãos em rendição.
Robert meneou a
cabeça, discreto. Sorriu para a ruiva de maneira evasiva. Parada, ela
não compreendeu o real significado da resposta.
— Qual é, vamos. Que
tal, sei lá, tentar me evangelizar? Foi assim que vocês salvaram tantas almas perdidas
por aqui, não foi? — Provocativa, ela olhava diretamente para ele.
— Pode apostar que
ele vai. Ele vai, sim — Kaya respondeu, impaciente. — Por que você não segue e
nos encontramos lá, meu bem? Eu o levo pro seu ritual de sacrifício e
canibalismo. É o que vocês, nativos, fazem, não é? Ca-ni-ba-lis-mo.
— Canibalismo? — A
ruivinha indígena riu, empolgada. — Ah, sim. Isso aí. Canibalismo. Te
espero lá, padre.
Ela se afastou.
— Dá pra acreditar
nessa gente? — Joe resmungou, concentrado acima de tudo na organização da
bolsa.
— Vai se foder.
— Ei, querida.
Poderíamos dar meia volta e ir embora. O tuunbaq nos faria um favor — Robert
respondeu com uma risadinha seca nos lábios, a fim de animá-la.
Kaya o encarou,
surpresa. Por fim sorriu. Antes que fechassem o porta-malas, ela se voltou para
ele com um olhar inquisidor e brincalhão.
— Ei, Robbie. O que
leva na sua bolsa?
— O necessário, por
quê?
— Posso ver? — Ela o
desafiou.
Sem compreender, ele
abriu a bolsa e escancarou o conteúdo.
— O ritual é meu. Eu
faço as exigências — ela apontou para o interior da bolsa e balançou a cabeça.
— Sem armas de fogo, Robbie.
— O quê?
— Sem armas de fogo
ou sem ritual.
— Você está falando
sério?
A garota
assentiu.
A contragosto, mas em
respeito, Robert retirou a shotgun e escondeu-a no porta malas. Em seguida,
retirou cartuchos tanto do interior da bolsa quanto dos bolsos do sobretudo e
da calça.
— Viu só? Eu sabia
que você seria um cara legal — comentou ela.
Incrédulo, mas sem se
dobrar à irritação, Robert sorriu de volta com um balançar de ombros. O trio
seguiu através do estacionamento e passaram pelos muros, onde foram cobrados
com uma quantia irrisória. Depois dos muros, cruzaram o pátio principal do
complexo. A área era extensa e continha mais de quatrocentos metros de
extensão, espaço pelo qual caminharam ao lado de outros grupos. Além do pátio
inicial, destacava-se o conjunto de construções que formava o antigo complexo
de fertilizantes. Era composto por mais de cinco galpões, sustentados por
gigantescas colunas nas bordas, como um Olimpo em dimensão, no entanto
degenerado pela pouca criatividade arquitetônica de uma agroeconomia moderna.
Os galpões maiores possuíam telhados de ferro que ousavam resistir ao tempo,
oxidados pelas escassas temporadas chuvosas e açoitados pela insolação
frequente, e eram sustentados por colunas dóricas, maciças de concreto,
enquanto as dos galpões menores - que serviam de armazenamento e estocagem,
quando a fábrica ainda funcionava - eram firmados por colunas de ferro não só
nas sustentações laterais, como também nas internas, formando longos corredores
de pilares.
Por trás dos galpões,
e, portanto, mais distantes que esses, talvez a 500m da entrada do pátio
principal, erguiam-se prédios menores em largura e comprimento, porém mais
altos, alcançando de quatro a cinco andares. Eles se fundiam ao céu escuro
devido ao abandono e apresentavam contrastes devido à pintura branca e amarela
não totalmente apagada pelas intempéries naturais. As escadas dispunham-se num
sistema arquitetônico angular e davam acesso, pelas laterais, ao interior dos
setores principais, onde os processos químicos antigamente ocorriam. Ao lado
desses prédios maiores, torres cilíndricas de coloração acinzentada - com
resquícios do amarelo apagado - erguiam-se ainda mais altas, interligadas ao
prédio principal por gigantescos dutos que à época deveriam funcionar como
artérias pulmonares para o processamento de fertilizantes. As escadarias
estavam iluminadas pela presença de inúmeras pessoas, que lá de cima erguiam os
braços e correspondiam ao som da música eletrônica. Mesmo de longe, no início
do pátio principal, era possível ver as pulseiras e a maquiagem em neon
brilhando em seus braços que se movimentavam em frenesi, além dos focos de luz
que emitiam de lá, muito provavelmente com celulares ou lanternas. O som vinha
de um dos galpões principais, o terceiro dos cinco.
Joe caminhava atrás
de Kaya e Robert. Por ser um sujeito gigantesco, a posição era tão estratégica
quanto corriqueira. Caso tivesse a vista de tudo, estaria precavido para
quaisquer perigos. A atitude ficava duas vezes mais incisiva quando acompanhava
a filha durante tais tarefas. A jovem xamã tossiu e massageou o peito, fez uma
careta contida.
— Ei, Robbie. Posso
fazer uma pergunta?
— Claro, querida.
— Você é, o quê, uma
espécie de padre?
— Isto é só uma
fantasia.
— Tsc. Não é
uma verdade.
— Não?
— Não. Eu sei de
coisas… de algumas coisas — ela aquiesceu os ombros e a postura
tornou-se menos defensiva e afrontosa. — Não é porque eu quero. Às vezes eu só
sei, saca? Então, quando eu olho pra você, algumas imagens me surgem na mente.
— Quais imagens?
— São imagens
antigas. Você parece mais jovem, junto com meus pais e meu avô. Há também um
padre… um padre velho e careca… sei lá, é uma péssima descrição, porque todos
os padres parecem carecas — ela fez uma pausa quando riram juntos. — Vejo todos
vocês, e então vejo uma criança. Um menininho.
Robert semicerrou os
olhos enquanto fitava os galpões à frente.
— Provavelmente são
imagens de quando eu conheci sua família — ele respondeu.
— Você estava vestido
de padre… quer dizer, você está vestido de padre agora. Isso significa
que você sempre anda fantasiado?
— Eu não sou um
padre. Poderia ter sido há muito tempo, quando padre Mallory me encontrou e, de
certa forma, me recrutou para a missão santa dele. Mas não, eu nunca quis ser
um. Uso essa roupa porque ela me permite entrar nos lugares sem que as pessoas
questionem. Era assim quando eu trabalhava para Mallory. Funciona agora.
Funciona sempre.
— Que trabalho você
fazia?
— Exorcismos, no
geral. Bom, padre Mallory os fazia, eu apenas aprendia. Ou pelo menos era o que
eu achava que queria aprender.
— E o que você
queria?
— Talvez encontrar um
jeito de salvar minha alma. Se estivesse próximo de Deus, fazendo um serviço
divino na Terra, talvez eu fosse perdoado. No geral, era isso o que eu fazia: o
serviço sujo. Não ser um padre de verdade fazia com que eu pudesse quebrar
certas regras da Igreja.
— Isso com certeza
deve ser um pecado cruel.
— Com certeza.
— Padre Mallory te
usou.
— Ele me deu a ilusão
de que eu poderia ser salvo, caso fizesse seu trabalho santo de
dedetização.
— Isso te ajudou a
lutar contra os seus demônios?
Robert riu, dessa vez
trágico. As mãos apertaram a alça da bolsa atravessada no peito. Não durou mais
que dois segundos. Ele não respondeu.
— Você é mais bonitão
que nos meus sonhos, sabia? — Admitiu Kaya.
Ele olhou para trás,
desconfiado.
— Fica tranquilo, a
última coisa com que meu pai se preocupa são garotos. E pra ser sincera, é a
última coisa com a qual eu me importo também. E você é, tipo, um idoso.
Eles riram novamente.
Kaya continuou:
— Meu pai está mais
preocupado em ficar de guarda. E falar por mim. E me cortar. E fazer todas
aquelas coisas chatas que… — Discretamente, Kaya olhou para trás com o tom de
voz em confidência. — Na noite em que sonhei com você, eu mesma liguei. Eu
mesma te chamei, mas ele tomou o telefone das minhas mãos e fez um
questionário. Sabe, eu teria sido menos ríspida com você. Era madrugada. Quem
recebe telefonemas esquisitos de madrugada? Desculpe por ter sido ele.
— Relaxa, querida.
Ela agradeceu.
— Sabe, eu vejo mais
duas coisas quando olho para você.
—
Quais?
— Uma nuvem de
fumaça. De cigarro. Quero dizer… eu não vejo a nuvem. Na verdade, eu sinto o
cheiro e o peso da fumaça no ar. O gosto também fica na boca, o gosto de
nicotina barata. Saca?
— É, faz todo
sentido.
— Você fuma, Robbie?
— Não. Por isso faz
todo sentido. Parabéns, até que você é uma boa xamã — lançou-lhe uma
piscadela.
Sem compreender, mas
satisfeita por todas as sensações e visões fazerem sentido, ela agradeceu,
confiante.
— E qual a segunda
coisa? — Ele perguntou.
Kaya hesitou com os
lábios comprimidos. Soltou um suspiro e continuou:
— Eu vejo… asas.
Três pares de asas. Elas estão batendo, tentando voar. Estão em chamas. Queimando.
Eu sinto o calor quando imagino me aproximar, mas as brasas chamuscam os pelos
do meu braço e meu rosto. Elas estão distantes, mas perto o suficiente pra que
eu as veja. Não há sons, não há cheiros, mas a visão é assustadora. Quero
dizer… cê sabe… eu já vi coisas esquisitas, mas asas em chamas que parecem
prestes a te engolir se você continuar olhando? Isso é bizarro, Robbie.
Novamente, ele não
respondeu.
Kaya massageou o peito.
Súbito, uma ânsia de vômito subiu pela garganta, porém conseguiu controlar.
— É ela, não é?
Por quem você tem procurado?
Robert continuou com
os olhos em frente. Os maxilares enrijeceram. Kaya cruzou os braços, sentiu-se
estúpida pela intromissão, mas disfarçou. Quando o silêncio da resposta se
alongou, ele trocou de assunto:
— Ei, querida. Quando
eu perguntei o porquê o tuunbaq está tão longe das suas terras, seu pai mentiu.
Sei que estou devolvendo um favor, mas será que pode me explicar?
— Tuunbaqs são
espíritos da natureza, e por isso eles sofrem ou são despertados quando ela é
afetada. A resposta mais adequada seria a de que as terras estão morrendo. Há
muita vida até mesmo nas regiões frias do norte. Nossas geleiras estão
derretendo, nossas crenças estão se perdendo… um desequilíbrio acontece. Isso
seria o bastante para que os tuunbaqs migrassem.
— Mas?
— Mas eu não acredito
nisso, Robbie. Esse desequilíbrio ocorre desde que vocês puseram os pés em
nossas terras, mataram nossos ancestrais, caçaram e extinguiram nossos animais
e poluíram solo e água. Apesar disso, nunca houve uma migração de espíritos que
nos abandonaram para caçá-los por vingança. Desequilíbrios geram desequilíbrios
e a vingança é um deles. Por isso, em essência, tememos os tuunbaq, porque
representam a vingança da deusa Sedna, mas mesmo ela nunca foi tão longe.
— No que você
acredita?
— Eu não faço ideia.
Não sei o que causou isso, mas é a minha responsabilidade consertar —
nesse momento, a voz vacilou.
— Pelo fato de ser a
xamã do seu povo?
— Pelo fato de que eu
posso fazer alguma coisa, e farei — ela apontou com o queixo para todos em
volta, com um discurso que era nobre, mas pouco auto convincente. — Eu não
tenho empatia por essas pessoas. Poderíamos dar meia volta como você sugeriu,
mas, cá entre nós… você não faria isso, não é? Não sabendo que elas estão em
perigo, não sabendo que você tem o poder para fazer alguma coisa. É uma questão
de equilíbrio, você só precisa restabelecê-lo. Há muito desequilíbrio no mundo,
naturais e morais. Como um padre utilizando armas de fogo.
— Eu não sou padre.
— Tanto faz, Robbie.
Armas de fogo ainda causam desequilíbrio. É moralmente perigoso e
contraditório. Você pode salvar o mundo de outras formas, sabia? Você já pensou
nisso? Hein? Deus não gosta desse tipo de coisa, padre Robbie.
Os dois riram. Ele
balançou as mãos, convencido.
Quando Joe aumentou
os passos e se pôs entre eles, já estavam diante do terceiro galpão. Ali a
música era ensurdecedora, o ambiente interno era iluminado apenas pelas luzes
que piscavam e pulsavam no mesmo ritmo das batidas.
Sem avisos do próprio
estômago, Kaya apoiou-se no braço do pai e se curvou para despejar no chão a
porção de salgadinhos que consumiu há algumas horas a caminho da cidade. O
vômito foi contínuo, demorado, e passou despercebido por aqueles que andavam ou
dançavam em volta. Ela recebeu a ajuda dos dois. Joe segurou-lhe o rabo de
cavalo enquanto Robert abaixou-se para ampará-la. Ao fim do refluxo, Kaya
limpou a boca com as costas da mão e cuspiu. Levantou com dificuldade e apontou
para o interior do galpão, onde as pessoas não passavam de borrões fantasiados
com pontos luminosos nas mãos, roupas ou rostos.
— Aqui — disse ela,
convicta. — Ele está aqui.
— O que fazemos? —
Robert perguntou.
Foi Joe quem
respondeu, cortando as palavras iniciais da filha:
— Procuramos um local
fechado. E o resto deixamos com Kaya.
Robert assentiu e
ajudou-a a entrar no galpão. Dessa vez, Joe seguiu na dianteira, cortando
caminho por entre os adolescentes de forma abrupta, em busca de um lugar
adequado. Aqueles que ousavam reclamar, ficavam, inúteis, pelo caminho, pois se
amedrontavam ao constatarem o tamanho do sujeito. Constantemente ele olhava
para trás, mirando os olhos da filha em busca de uma confirmação de que ela estava
bem, ao que Kaya respondia com um balançar de queixo confiante. Em seguida ela
olhava para Robert e desnudava a expressão de força e convicção, voltando a ser
a garota de 15 anos que mal sabia como ser detentora de tamanha
responsabilidade.
No fundo do galpão,
um palco improvisado com uma pequena mesa comportava os controles onde o DJ
controlava as batidas. Com a mão direita ele mexia em botões, subia e descia
controles, enquanto revezava a mão esquerda entre os headphones na orelha e
movimentos que guiavam as pessoas como um maestro a controlar sua orquestra.
Acima dele, enroladas em hastes de metais, correntes caíam penduradas como
trepadeiras, decoradas por jogos de luz e decoradas por caveiras, aranhas e
morcegos. Também estavam penduradas em linha côncava na parede às costas dele,
incandescentes e festivas. Usava o microfone para desafiar os garotos, cobrando
deles mais empolgação e estava, dos pés à cabeça, pintado como um antigo
guerreiro africano. Tal qual a ruiva dos indígenas de pele clara, o DJ, à
distância, possuía na íris dos olhos todo o azul celeste que nem as tintas em
néon conseguiam ofuscar.
Joe atravessou a
pequena multidão ensandecida em dança e músicas esquisitas até a área noroeste
do galpão, a mais próxima do palco em que o DJ ventriculava os dançantes. Havia
um nicho de cinco portas, todas com livre acesso, já que não era incomum ver
casais, trios ou grupos de pirralhos saírem e entrarem por elas. Ele escolheu a
porta recém visitada e entrou no rastro de um casal.
O que julgavam ser
banheiros era, na realidade, um escritório pequeno, talvez uma área de
despensa, fechada e sem janelas. Lá dentro, três pequenos grupos estavam
recolhidos em cantos diferentes. O casal recém-chegado mal teve tempo de
escolher onde se acomodaria, pois Joe agarrou o garoto pelos ombros (um pirata
com cigarro entre os lábios) e cochichou em seu ouvido um segredo tão repulsivo
que fez com que, amedrontado, ele segurasse na mão da companheira e a puxasse
para fora dali. Fez o mesmo com os demais grupos, e seja lá o que disse - as
batidas não permitiriam escutá-lo nem se houvesse gritado -, alternando ou
repetindo o arranjo do cochicho, expulsou a todos. Ao fim, ele ordenou que
Robert guardasse a porta que ainda possuía trincos de ferro.
Kaya sentou no chão
com as pernas cruzadas e tomou a bolsa do pai. Dela, tirou dois lenços
compridos e entregou a cada um deles. Sem estranhamento, Joe o tomou para si,
enrolou no rosto e cobriu boca e nariz, como uma máscara hospitalar. Confuso,
Robert imitou o homem. A seguir, tirou os gravetos e os amontoou de maneira
ordenada, formando um quadrado improvisado. Fez o arranjo até que, juntos,
formassem 15 centímetros de altura. Em seguida, ela enrolou outro pedaço de
tecido surrado e manchado e dobrou-o enquanto pronunciava palavras baixas,
quase em segredo, para enfim pousá-lo no chão, exatamente no centro da
estrutura de gravetos. Da bolsa, também retirou uma garrafa de aguardente,
encharcou o tecido, entornou a garrafa, mas não engoliu a bebida. Cuspiu-a
sobre a madeira. Pôs a garrafa de lado e em seguida, em aparente ordem
sistemática, abriu os recipientes. Um a um, despejou no centro, por sobre o
tecido molhado, as ervas que ali haviam. Algumas delas salpicou quantidade
irrisória, já em outras despejou o quíntuplo da quantidade anterior. Preparou o
rito enquanto transformou as palavras sussurradas em mais forte e intensa
cantoria no idioma inuktitut. Nesse ínterim, as batidas eletrônicas lá fora
pareciam obedecer ao seu ritmo, mesmo que os remixes do DJ nada tivessem a ver,
literal ou espiritualmente, com o ritual da xamã. Não estavam nem estariam,
sequer por um fio tendencioso, correlacionados por algum estranho destino.
Pura coincidência, as
batidas eletrônicas foram diminuindo, diminuindo, diminuindo. Já os cantos de
Kaya aumentaram, tornaram-se melódicos, palavras de sua língua nativa que não
só rimavam, como salientavam a voz rouca da xamã. Robert, encostado na porta,
observava a tudo em silêncio, às vezes procurando o olhar de Joe para medir a
reação dele, entretanto o homem tinha os olhos abaixados, como se nele pesasse
uma penitência antiga, uma dolorosa obrigação de testemunhar, na filha, uma
sina não desejada. Ou talvez fosse uma espécie de descrença de que tamanho
poder caberia em uma garota tão imatura e que tentava, com esforço, assumir uma
postura responsável, sobretudo quando perto dele.
Um desequilíbrio
acontece, Robbie, Kaya havia dito. Nossas crenças estão se perdendo.
Quando o DJ diminuiu
sua batida ao quase silêncio-absoluto, Joe se aproximou do centro da sala e
retirou uma caixa de fósforos do bolso. Utilizou a ponta da unha para acender a
chama e o jogou no centro dos gravetos. Imediata e coincidentemente, o fogo se
levantou, anormal, como se um dos ingredientes fosse a pólvora. O batuque
eletrônico finalmente se reergueu do falso silêncio e a batida tornou-se
ensurdecedora novamente, como se alimentada pela combustão violenta do fogo que
lambeu os gravetos e se transformou em fogueira. O canto de Kaya era
ininterrupto.
Os dois assistiram a
fumaça preencher o ambiente fechado.
— O que acontece
agora? — Robert perguntou.
— Agora o tuunbaq
será atraído pelo calor das chamas e aprisionado por Kaya. Quando for
totalmente capturado pela fumaça, nós abrimos a porta e ela se dissipará no ar,
assim ele será levado de volta aos ares do norte. É um simples ritual de
localização e captura, mas precisa ser realizado em um ambiente próximo de onde
o tuunbaq estiver. Geralmente, dá certo.
— Geralmente?
Joe o analisou com
desprezo, uma quase fúria, embora não fosse uma possibilidade que ele mesmo não
considerasse, a julgar pela desconfiança na própria filha. Antes que pudesse
responder, a porta atrás de Robert foi empurrada. Ele firmou as costas, porém
um segundo empurrão foi dado. A maçaneta girou e ele pensou ter ouvido vozes
irritadas lá fora, cujos donos fizeram outras duas tentativas antes de
desistirem. Quando voltou a olhar para Joe, o homem não o olhava mais irritado.
Ao invés disso, gritava, aterrorizado, a filha que subitamente havia parado de
cantarolar. A fumaça ocultava sua silhueta, mas a voz havia sumido junto com as
palavras em inuktitut. Antes que pudessem se aproximar, a garota engatinhou
pelo chão até os pés do pai, e naquela mesma posição vomitou novamente. Não foi
bílis nem salgadinho que a garota pôs para fora, mas uma substância pastosa e
escura, um tom que se assemelhava ao marrom e ao amarelado do pus.
— O que está
fazendo? — Joe gritou ao agarrá-la pelos ombros. — Kaya, o que está fazendo?
Continue o ritual!
Ela moveu a cabeça em
negação e vomitou outra vez. Quando olhou para o pai, os olhos também estavam
desesperados, porém num terror maior e absoluto de alguém que descobre uma
verdade oculta, maldita. Ela arquejou palavras, tentou dizer algo, mas,
novamente, vomitou. A cada vez que o estômago punha a pasta indesejada para
fora, mais ela parecia escura e repulsiva.
Joe continuou a
gritar:
— Continue a porra do
ritual!
Kaya não teve tempo
de responder. A fumaça que tomou o interior do espaço fechado ficou cada vez
mais densa e o único ponto luminoso ainda era a fogueira. Embora o fogo não
dispusesse de muito para consumir além dos gravetos, das ervas e do tecido
embebido em aguardente, a ausência de janelas tornou o ar cada vez mais
rarefeito. Robert estava mais próximo da porta e já prestes a abri-la.
— Joe, acabou. Nós
precisamos sair!
— Continue. O.
Ritual!
Ela moveu a cabeça,
negando com convicção. Robert já tinha as mãos no trinco quando um som mais
forte e agudo berrou nos tímpanos de todos os três lá dentro. A fumaça se
acumulou de maneira organizada e antinatural. Ao invés de espaçada, ela formou
um conjunto quase sólido, depois regressou para o centro do fogo com estupidez
e velocidade. Quando atingiu o centro da chama, um segundo som agudo ecoou. O
som de um grito. O fogo se apagou e os gravetos que já estavam distorcidos
saltaram para todos os lados da sala, como se chutados por uma força
arteira.
As batidas
eletrônicas não cessaram. Porém tanto o fogo quanto a fumaça e qualquer outro
vestígio de que segundos antes havia uma fogueira ali dentro, não mais
existiam. Catatônico, assistindo à mais bruta decepção de sua vida, Joe ainda
tinha as mãos nos braços da filha. Quando tornou a encará-la, berrou:
— Kaya, o que
aconteceu aqui?!
Trêmula, Kaya tossiu.
Não havia mais vômito nem enjoo, entretanto, a ausência de mal-estar não era
boa notícia. Aterrorizada pelo que viu enquanto ministrava o rito, Kaya
afastou-se do pai e engatinhou até a parede. Os olhos amendoados estavam
apagados, entristecidos. O ritual havia terminado – e malsucedido.
— Não era um tuunbaq
— disse ela, incrédula. — Oh, deuses, não era um tuunbaq.
— O quê? Você… você
ficou louca… O que está dizendo, Kaya?
— Eu senti duas
coisas juntas, pai. Duas coisas juntas, costuradas em carne viva. Uma cirurgia
horrenda. Um ritual proibido. Proibido — ela tossiu, com uma ânsia causada não
pelo rebuliço do estômago, mas pela repulsa da memória. — Outro angakkuq.
— Outro?!
— O que, maldito
Inferno, tá acontecendo aqui? — Robert gritou.
Nenhum deles
respondeu. Joe olhou uma última vez para a filha antes de revirar a bolsa.
Desesperado por não encontrar o que procurava, ele gritou em protesto.
Levantou-se e foi até a porta. Exigiu que saísse da frente, mas Robert manteve
o bloqueio.
— Precisamos tirá-la
daqui, Joe. Você me disse isso. Eu não faço ideia do que está acontecendo, mas
temos que tirá-la daqui, lembra?
— É inútil. Ele já
sabe que Kaya está aqui e virá atrás dela. Saia da porra da minha
frente, Robert.
— Que se foda,
colega. Só estou cumprindo com o combinado: se o plano der errado, você tira
Kaya daqui. Lembra?
A impaciência de Joe
alcançou nível caricato. Ele grunhiu como um cão contrariado acostumado a
rosnar, mas momentaneamente incapaz de atacar. Então olhou na direção de Kaya,
que permaneceu encolhida no chão em uma expressão de pânico e que lhe parecia
exagero – no fundo, embora não pronunciasse o que os dentes trincados
expressavam, julgava ser pura covardia. Joe apanhou a bolsa que estava
no chão e depois os punhos da filha, puxando-a para si e a obrigando a ficar de
pé. Via nela apenas uma adolescente incapaz de assumir a responsabilidade que
seus ancestrais, todos homens, tiveram durante séculos. Não houve a necessidade
de palavras serem ditas ou de repreensões serem cuspidas, pois o olhar baixo e
indireto já era suficiente para que Kaya soubesse – não eram as conclusões
absorvidas pelo dom divinatório, não precisava ser uma xamã para perceber. Após
tomar a dianteira e manter a filha protegida atrás de si, agindo como um escudo
humano, o homem sinalizou para que Robert abrisse os trincos.
Ele não reagiu nem
interferiu no abusivo dilema familiar, apenas liberou a porta, abrindo passagem
para que Joe assumisse a vanguarda com a filha. As luzes inundaram o interior
da sala e atingiu-lhes os olhos com violência, já que nos poucos minutos que
permaneceram lá dentro as retinas já haviam se desabituado ao padrão pulsante
das luzes. Os feixes de luz avermelhados eram disparados por refletores fixados
às colunas e às paredes. Eles atiravam raios que ao tocarem o ambiente
esfumaçado por outras máquinas davam a impressão de que eram palpáveis. Alguns
desses feixes ficavam parados no ar, subindo ao teto e descendo ao chão
vagarosamente, enquanto outros piscavam de forma ininterrupta, atingindo os
olhos de Joe e dando a ele meio segundo de intenso clarão, como se a retina
sofresse um momentâneo apagamento. Enfurecido, ele marchou como um farol
ambulante cujo objetivo não era alertar os navios que se aproximavam do
continente, mas atropelá-los com os próprios rochedos e a terra em movimento. Empurrou
todos que estavam à frente e os arremessou para o lado, derrubando-os com
estúpida facilidade. Robert seguiu o brutamontes e a garota enquanto as
silhuetas deles ora desapareciam, ora apareciam com a alternância de luzes, em
intervalos de um segundo ou menos que isso.
Ao chegarem no meio
do caminho, ouviram gritos generalizados. Como marola que se tornou onda, a
confusão veio da entrada do galpão. Não foram todos os adolescentes que
perceberam o alvoroço, não obstante alguns deles ouviam os gritos, ficavam alertas,
mas em seguida voltavam ao estado de distração e transe iniciais. Outros se
esticavam e ficavam na ponta dos pés, à procura da origem do alvoroço. O
alarido ganhou força e o cume da marola tragou mais gritos para finalmente
tornar-se uma onda arrebatadora: varreu pequenos espaços e abriu visão por
entre os pequenos grupos que antes se aglomeravam.
Como o mar se abrindo
ante as forças de Moisés, os adolescentes se afastaram e do espaço e da visão
abertos surgiu a figura encapuzada, cuja túnica caía até os pés e cobria todo o
corpo. Ironicamente, não era uma fantasia. Havia uma sutileza verossímil
naquelas vestes que um mero fantasiado jamais alcançaria. Eram carcomidas e
puídas como as de um morador de rua, sofridas e genuínas como as de um velho
leproso. Se homem ou mulher, não puderam distinguir a princípio, já que o rosto
continha os traços de ambos os gêneros bem delimitados: a rigidez masculina das
mandíbulas e a delicadeza no traço dos olhos, bochechas e nariz. Os cabelos
visíveis no topo da testa eram grisalhos e profanos, em muito se assemelhavam e
se fundiam à coloração da pele, com a branquidão devastadora dos desertos do
norte, como a camuflagem dos predadores polares e que, por estar tão distante
de seu hábitat natural, soava maldita e hipnotizante. Doentia. Anêmica. Apesar
disso, a figura era toda humana: corpo, rosto, membros e estatura mediana.
Alguns pontos da face, a exemplo das têmporas, bochecha esquerda e todo o
contorno dos lábios, estavam enegrecidos por necrose ou lepra avançada. Os
olhos, cobertos por olheiras, eram amarelos e ofuscantes, como os dos
crocodilos flagrados na escuridão.
O angakkuq, o
xamã-feiticeiro, arregaçou um sádico sorriso quando os avistou. Kaya e ele
entreolharam-se por um breve deslizar de segundos e isso foi suficiente para
que a garota se recolhesse às costas do pai, tentando escapar da mera visão
profanadora do inimigo. Ele, por sua vez, pareceu atiçado, excitado por
encontrar sua semelhante, uma garota tão jovem e que ainda não degustara dos prazeres
de se cruzar o limite, de se fundir, de se costurar, de formar um elo mágico e
absurdo com a natureza.
Enérgico pela
iminência do encontro – e em parte enfurecido pela garota ousar atingi-lo com o
ritual –, o angakkuq permaneceu imóvel, fitando os três que o encaravam a uma
distância de quase dez metros. As batidas do DJ ainda preenchiam a noite e
várias eram as pessoas que não se deram conta nem mergulharam na razão que
levou as outras a gritarem e se desesperarem. Como se a festa ainda estivesse longe
de seu ápice, lentamente o angakkuq levou as mãos unidas até a boca, que
se revelaram nuas e pegajosas, banhadas por um líquido escuro que escorria até
os cotovelos. Entre os dedos, revelou o que com orgulho quis mostrar a Kaya: um
antebraço esmigalhado, cuja musculatura e os ossos estavam expostos. Ele mordeu
o pedaço de carne humana com demasiado e provocativo prazer. Mastigou
vagarosamente e, em seguida, como um gato entediado com a presa morta,
arremessou-o no chão.
Outros gritos vieram,
principalmente daqueles adolescentes que estavam mais próximos do
xamã-feiticeiro. Dentre eles, estava o grupo de indígenas caucasianos.
Desesperados, partiram em debandada, alguns pelo lado esquerdo do galpão,
outros pelo lado direito. O feiticeiro caminhou vagaroso, tão atento aos
coadjuvantes apavorados quanto a Joe, Robert e Kaya – acima de tudo a ela.
Quando uma das indígenas se afastou o suficiente para não mais ser agarrada, o
angakkuq localizou-a com o canto dos olhos. A banal suposição de julgarem que
poderiam escapar era em si uma afronta, e por punição, usou-a de exemplo. Ele
moveu o pescoço em gesto sinuoso, como alguém prestes a estalar os ossos. No
entanto, se de ossos era composta aquela área de seu corpo, eles eram anômalos
e alienígenas diante da anatomia e da compreensão humanas, pois pareceu
expandi-lo como as serpentes abrindo as mandíbulas, esticando as articulações
até que mostrassem seu verdadeiro alcance. Entretanto, não literalmente. Não
fisicamente. Translúcido, não palpável, um longo pescoço surgiu no ar, uma
projeção ilusória e animalesca de um urso polar deficiente, uma formação
maldita e herética, um desenho propositalmente mal projetado pela natureza.
Como um truque de mágica, o pescoço quimérico alongou-se até chegar às costas
da garota, a mesma ruiva que antes sugeriu canibalizar Robert, o padre. Ela foi
pega no meio da corrida e parou como se houvesse se chocado contra um muro
invisível. Súbito, foi fisgada pelos ombros, em um golpe que levou frações de
segundos e que a arrastou por vários metros até os pés do
xamã-feiticeiro.
Quando, desnorteada e
anestesiada, ela parou diante dele, o angakkuq se abaixou e cravou a boca no
pescoço da garota. Ela revirou os olhos, incapaz de gritar ou de protestar,
sequer tendo a noção do que ceifava sua vida, qual mosquito subitamente
esmagado. Em segundos, a massa corporal de seu corpo lentamente se esvaiu como
um balão furado que perde o ar interno. A coloração da pele - que não era lá
muito corada - foi apagada até que se transformasse na pálida dos cadáveres. No
meio do processo, o cocar com as cores vermelha, azul e branca caiu de sua
cabeça. Findada a inclemente auto exibição, o Angakkuq arreganhou dentes
pútridos e sorridentes e esmagou o acessório com os pés, direcionando o recado
a Kaya.
— Ele ainda é humano,
portanto ainda morre como um humano. Entendeu? — Joe gritou por sobre os
próprios ombros na direção de Robert ao constatar que o angakkuq não lhes
permitiria a fuga.
Por hábito, Robert
apalpou os bolsos. Apalpou também as costas, onde geralmente costumava pendurar
a shotgun embaixo do braço ou do sobretudo.
— Maldito Inferno! —
Ele gritou.
Aqueles que ainda
estavam ao redor possuíam em seus rostos um misto de diversão e espanto, muitos
ainda incrédulos e eufóricos pela apresentação fidedigna de um ataque
sobrenatural. Alguns vibravam pela suposta realização admirável de efeitos
especiais práticos, os quais imitavam com perfeição a viscosidade e o odor
metálico do sangue humano, além da textura e da consistência da carne. Já
outros, bêbados ou sob efeitos de outras drogas - como a lerdeza natural e um
senso de autopreservação desgastado e ruído -, não se deram conta de que o
ataque não compunha parte da festa. Ainda com os copos nas mãos ou estreitando
os olhos para admirarem a maquiagem ultrarrealista da ruiva estirada no chão,
eles se aproximaram do antebraço em posse de celulares, filmando o show gore
com diversão. Foram esses que, destemidos e inconsequentes, tiveram o mesmo
destino que a garota: pescados pelo pescoço animalesco e alongado do angakkuq,
que se materializava e desvanecia seguindo as batidas do DJ. Do momento em que
foram puxados pelo pescoço fantasmagórico ao que foram sugados pela boca
infecta e física do angakkuq, os ataques levaram menos de meio minuto.
A música não parou.
Sem olhar para trás, sem avisos, alertas ou exigências, Joe soltou o punho da
filha e, hesitante, partiu para cima do angakkuq. De repente, o sujeito com
quase dois metros de altura parecia inofensivo e inútil frente à ameaça
sobrenatural. Robert segurou a garota pelos ombros e gritou mais forte que a
música incessante:
— Se afaste, querida!
— Ele apontou para a direção do palco, onde um número considerável de pessoas
havia recuado e tentava se proteger. — Vai!
Kaya acatou a ordem
com rapidez. O instinto de autopreservação, ausente nos adolescentes espalhados
pelo chão, era bombeado no corpo da garota pela adrenalina. Ela correu e se
juntou à pequena multidão que não compreendia o que assistia.
Quando Joe alcançou o
xamã-feiticeiro, agarrou-o pelo pescoço. Fácil demais. Ele permaneceu com o
sorriso arregaçado enquanto o homem cuspiu sobre ele xingamentos e gritos
ensandecidos. Sádico e inerte, apreciando a agressão, o angakkuq deliciou-se
com a fúria do pai. Acima de tudo, não tirou os olhos de Kaya. Mesmo à distância,
aquele olhar amarelado de pupilas abissais fitou-lhe através da carne e
atravessou-lhe a alma com sede, fome e perversidade.
Quando Robert se
posicionou ao lado deles, viu em Joe uma fúria desmedida e finalmente
compreendeu o descontrole do homem. Ele projetava no angakkuq as duas
possibilidades que dispunha a vida de Kaya: a da morte ou a da corrupção, ambas
embasadas na crença de que a filha não seria capaz de seguir o dom que lhe fora
destinado. Um desequilíbrio. De repente, o punho direito de Joe se
elevou e desceu sobre a face do feiticeiro, que recebeu o golpe sem perder o
sorriso profano. No terceiro soco, o xamã corrompido tinha sangue e uma
substância preta escorrendo pelas laterais da boca. Não exprimiu dor. Não
exprimiu incômodo.
— A pequena angakkuq
será minha. Nós seremos três e nós seremos um. O tuppilat será cumprido
— disse ele, num sussurro que adentrou os ouvidos de todos no galpão e na área
industrial abandonada, palavras que se arrastaram ao interior de suas cabeças
como lesmas, arrastando-se vagarosamente, deixando tons, cheiros e gostos
obscenos por onde passavam.
O angakkuq finalmente
moveu as mãos e levou-as ao pescoço de Joe. O homem não era mais amedrontador
ou forte nem a altura empregou-lhe caráter agressivo. Súbito, tornou-se mero
corpo maleável sob o toque do xamã, que sussurrou palavras em um perdido e
obscuro inuktitut, obtido somente pelo conhecimento proibido de xamãs do norte.
Kaya, à distância, reconheceu-as – não pela prática nem pelos estudos, mas pelo
medo, pela repulsa, pelo terror de saber que seu pai tão breve estaria perdido
diante delas. Ela gritou em desespero e antes que os olhos do angakkuq
ganhassem brilho e uma espiral de profanação girasse dentro de sua boca,
prestes a sugar o pai, Robert o agarrou pela cintura e os arremessou ao chão,
separando-os.
Caído, Joe empurrou
Robert e apontou na direção da filha:
— Tire-a daqui!
Kaya deu outro grito
a tempo de Robert presenciar o feiticeiro agarrar os pés de Joe e puxá-lo com a
fúria de um jaguar. O homem desferiu uma série de pisões com o pé livre, todos
no rosto do xamã, que, por ainda ser em parte humano, recuou devido à dor.
Apesar da altura mediana e muito menor que Joe, o angakkuq compensava com força
física e mágica. Os dois se engalfinharam no chão. Joe desferindo golpes
certeiros e potentes nas costelas e ouvidos do xamã, enquanto este tentava se
reorientar e abrir a boca, tentando, em vão, fazer com que a espiral sugasse a
alma de Joe.
Robert atravessou o
galpão até Kaya. A música demoníaca ainda massacrava-lhe os ouvidos. Não havia
quem a interrompesse nem quem a parasse, pois o DJ havia sido o primeiro a
fugir, escapando na noite escura como um destemido e branquelo guerreiro
africano. Sem quaisquer intenções, acabou liderando uma pequena multidão que se
esgueirou pelas laterais do galpão, temerosa em ser pescada pelo angakkuq.
Apenas o ruído atroz e eletrônico fez companhia aos quatro protagonistas.
— Vamos embora daqui,
Kaya. Agora!
Robert a agarrou
pelos braços, mas a garota estancou em negação.
— Ele vai matá-lo,
Robert. Ele vai matar o meu pai. Ele vai matá-lo. O angakkuq se fundiu ao
tuunbaq e agora quer se fundir a mim. Por isso eu poderia senti-lo e por isso
eu não descobri a verdade. Por isso o ritual deu errado… por isso… — Kaya
tagarelou sem pausas. Frenética e desesperada. Os olhos amendoados revezando
entre Robert, o pai e o feiticeiro. — Ele vai criar um tuupilat, vai
fazer um ritual proibido. Outro ritual proibido. De novo. Comigo. Ele
vai matá-lo, Robert. Ele vai matar o meu pai. Ele vai matar a todos nós.
Robert tentou
puxá-la, mas a garota resistiu e se debateu, arrastou os pés para trás como uma
criança chorosa ao ser levada embora do playground. Ele forçou as mãos,
consciente do ato a ponto de não a machucar. Arrastá-la à força, carregá-la nos
ombros como uma Sabina, uma donzela em perigo ou qualquer outra obscenidade
moral seria fácil, mas o ato exigiria força e brusquidão. Acima de tudo, o ato
exigiria certeza e subserviência às palavras de Joe.
— Kaya, nós temos que
ir.
— Não! — Ela gritou e
desferiu um golpe no rosto se Robert, que riscou-lhe a pele da têmpora ao
queixo esquerdo.
Ele a soltou para
levar as mãos ao rosto. Irritado, gritou. Não aguentava mais aquela música. Não
aguentava mais aquela noite. Não aguentava mais aqueles rituais e palavras e
criaturas e detalhes que ninguém o explicava até antes de tudo ir para o
Inferno.
A garota correu, mas
ele a agarrou pela cintura. Quando ousou levantá-la, ouviram o berro de Joe. O
homem havia sido arremessado contra uma das colunas de concreto, onde bateu
como um boneco sem peso e pousou no chão, imóvel. Kaya gritou. Tentou por
instinto ir até o pai para socorrê-lo e foi contida por Robert. Do outro lado
do galpão, o angakkuq se recompôs do duelo, o capuz estava caído e revelando a
totalidade do rosto e da cabeça. A lateral da cabeça exibia regiões onde o
cabelo não crescia, uma careca com escaras apodrecidas. Mas a obscenidade
estava na semelhança antinatural ao urso polar, principalmente na parte de trás
do crânio, que se fundia às costas num disforme e musculoso torso. A brancura
predatória pareceu ainda mais anômala e sobrenatural, sobretudo em alguém com
traços inuítes. De pé, ele sorriu e caminhou na direção deles.
Encurralado, Robert a
agarrou pelos pulsos e correu de volta para a área noroeste do galpão. Checou
cada uma das demais salas em busca de uma janela ou duto de ventilação,
entretanto todas possuíam a mesma planta. Sem saídas. Por fim, retornaram à
sala onde o fracassado ritual foi realizado. Ele fechou a porta com os
trincos.
— Maldito inferno,
garota! Porra! Eu não sou seu inimigo, eu só tô querendo ajudar — apontou para
o próprio rosto avermelhado pelas marcas de unha. — Que merda! Que Inferno de
música! Que Inferno de noite!
— Foi mal, Robbie. Eu
não fiz de propósito. Eu…
Robert passou as mãos
pelo cabelo, assentiu devagar e esticou as mãos, em súplica. Levou alguns
segundos para se recuperar – breves, urgentes. Não possuía o luxo do tempo.
— Não precisa se
desculpar, querida — ele respirou fundo e aproximou-se dela, compassivo. — Me
desculpe — pousou as mãos na lateral de seus ombros em sinal de trégua.
Ele retirou o
sobretudo e enrolou a roupa em um canto da sala. Desabotoou a camisa até o
peito, arrancou o amito por debaixo dela e amassou o acessório, jogando-o no
chão como quem desiste de uma piada de mal gosto. Inferno de fantasia, Inferno
de noite.
Em tom urgente, ele
se voltou para Kaya:
— Escute, garota.
Aquele pescoçudo esquisito está vindo até aqui e, que Deus me perdoe por isso,
mas eu vou dar ouvidos a você e não ao estúpido do seu pai. Nenhum dos planos
dele deu certo até agora. Nenhum — ele engoliu em seco e se surpreendeu
quando recebeu uma leve confirmação em resposta. Apesar da adrenalina e da
ameaça, Kaya estava mais recomposta. — Então, preste atenção. Você é a xamã
aqui, você é a única que pode chutar o rabo daquele desgraçado pescoçudo. Por
isso, pergunto: o que nós fazemos agora?
Kaya absorveu as
palavras com calma e piscou rápido, a fim de acatar ao pedido com rapidez.
— Existe um ritual.
— Outro? Ótimo.
Continue.
— Antigos sacerdotes
o realizavam, certo?
— Certo — ele a
acompanhou, embora não fizesse a mínima ideia ao que a garota se referia.
— Eles faziam parte
de uma ordem de sacerdotes guerreiros… obedeciam aos antigos angakkuqs, aos
antigos xamãs. Eles…
— Querida — Robert a
interrompeu com um sorriso envergonhado. — É um pouco tarde para explicações.
Você consegue realizar o ritual?
A princípio
hesitante, Kaya engoliu em seco. Depois se recompôs e, convicta, balançou a
cabeça afirmativamente.
— Sim.
— Perfeito.
— Mas você tem que
prendê-lo. Ele precisa estar preso ou imóvel… eu preciso que ele fique parado…
Robert concordou com
um movimento de cabeça. Não pareceu surpreso. Já enfrentara condições piores em
percalços mais infernais. O coração martelava como em cada noite ou em cada
ritual de improviso que havia realizado ou ajudado alguém a realizar, e a
pulsação acelerada no pulso, o nervosismo e o medo significavam que ainda
estava vivo, que ainda estava quente e respirando. E o fato de ainda respirar
implicava que lutaria para sair dali.
A bolsa que carregava
consigo estava agora no chão. Ele a revirou, esvaziou-a daquilo que não
precisaria e dos ingredientes pertencentes ao ritual falho, pegou a
garrafa de aguardente. Deu um longo e violento trago. Ofereceu a bebida a Kaya.
Ela negou,
desconcertada.
— A não ser que não
seja exigência para o seu ritual, você vai precisar. Beba.
Hesitante, ela bebeu
com um trago envergonhado e fraco. Sentiu o líquido queimar a garganta e fez
uma careta engraçada. Depois, encorajada pela cena do pai desacordado ou morto
no chão, bebeu mais três goles.
Robert sorriu e se
levantou. Dobrou as mangas da camisa até os cotovelos, segurou os trincos e
respirou fundo.
— Preparada?
— Ele é apenas um
homem, né? — Ela repetiu as palavras do pai. Ficou de pé e o aguardou. —
Depois que eu terminar o ritual, você… você precisa… desfazer o
desequilíbrio. Você tem que… tem que…
Robert compreendeu. E
lembrou, acima de tudo, o porquê Kaya ainda era apenas uma garota.
— Relaxa, querida. Eu
faço o resto — respondeu ele, friamente.
Então puxou os
trincos e a porta se abriu.
III.
O canto na garganta
O galpão estava
completamente esvaziado. No centro dele, a menos de quinze metros de Kaya, o
angakkuq ficou parado, aguardando com curiosidade. Ele possuía expressão
compenetrada e sádica, os olhos amarelados não desviavam da garota. A mesma
sede escorria-lhe pelo canto da boca junto com o sangue escuro das vítimas mais
o líquido enegrecido. Era o que inchava seus órgãos, era o que consumia
pequenas regiões da esclerótica e o que parecia consumir sua pele, nos pontos
em que a lepra maldita necrosava a carne.
Robert subiu no
palco. A música eletrônica era em grande parte barulho ritmado que esmagava os
ouvidos. Poucas delas continham letras ou cantores. A presença de vozes não era
humana e sim metálica, robotizada. Quando eram humanas, cumpriam o simples papel
de chamar um público agora inexistente, lançando a ele frases que o motiva a
pular, a dançar ou a dizer que o livro, o cachorro, a garota e todo mundo
estavam sobre a mesa.
— Que se foda esse
Inferno — Robert sussurrou e quebrou a mesa onde antes o DJ controlava a noite.
Ele esmigalhou cada botão e controle, certificou-se de que a música pararia
assim que tivesse transformado tudo em meros fragmentos espalhados no chão. Fez
aquilo por pura satisfação. Acima de tudo, fez aquilo para chamar atenção.
Quando a música parou de preencher a noite e apenas os flashes coloridos de luz
tomaram o galpão, o xamã-feiticeiro olhou para ele, curioso.
Robert arrancou uma
das correntes presas na parede. Brilhante e enrolada num jogo de luz, ela
pareceu quase infantil, um chicote estranho e caricato. Em posse do que dela,
desceu do palco e a enrolou no pulso direito, com a mão esquerda segurou a
outra extremidade, deixando-a pendurada num semiarco entre os dois braços. Kaya
ficou para trás, na beira do palco, aguardando pelo plano improvisado Robert se
aproximou do angakkuq, mantendo os dois xamãs a uma longa distância.
Cauteloso, balançava
e rodopiava a corrente no espaço entre as mãos. O metal reluzia nas luzes da
noite. O feiticeiro sorriu com deboche, observando o homem que se aproximava no
mesmo ritmo espaçado dos flashes, ora vermelho, ora azul, ora verde. Ao
contrário dos adolescentes capturados, Robert sabia o que esperar do
feiticeiro. Ainda assim, aproximou-se mais que qualquer um deles, carregando um
sorrisinho no canto dos lábios que estava ali em resposta ao deboche do xamã.
Que partilhassem da mesma animação.
— Robert — anunciou o
xamã.
— Pescoçudo.
— Seu lugar não é
aqui — ele levantou um dos braços e Robert recuou por reflexo, assustado. O
feiticeiro riu e continuou o movimento, apontando para o leste. — O que procura
não está aqui esta noite. Seu pecado está longe demais de
você.
Robert ignorou.
Balançava a corrente com cautela.
— Eu posso vê-la. Sei
onde ela está. É o que você quer, não é? Informação.
A corrente cessou o
movimento. Apesar disso, os olhos escuros de Robert não vacilaram, sequer
pestanejaram. Se o movimento o entregou, as expressões no rosto não.
— Você está
mentindo.
— Poderia, sim. Mas
não estou. Veja — ele anunciou novamente numa voz gutural que ressoou nos
ouvidos da noite. Palavras arrastando-se pelo cérebro, invadindo os ouvidos sem
pedir permissão, ecoando nos confins da mente como um vírus, como um câncer
intruso. — Eu sou aquilo que Kaya e todos os xamãs antes de mim temiam. Eu
fiz o que poucos deles tiveram coragem, pois quebrei as regras, preceitos que
nos tornam pequenos, limitados. Regras que mantêm os deuses no lugar de deuses
e humanos inebriados por falsas esperanças. Eu vejo o que os animais veem.
Sinto o que eles sentem. Farejo os aromas desconhecidos e imperceptíveis. Eu
vejo verdades escondidas — os lábios se dobraram num pequeno deleite. — Eu me
tornei apenas um com o tuunbaq. Dobrei a vontade da deusa Sedna. Eu vejo quem
você é, Robert Werle. Vejo através de seu sorriso manso e de sua polidez
contida. Eu vejo o que você fez. Eu vejo o que você quer. Eu a vejo: vagando
por entre os planos com asas em chamas. Ela está em agonia. E ela precisa de você
— o braço que continuava estendido apontou com mais ênfase para o leste e para
muito além das paredes e dos muros da fábrica, para muito além dos limites do
condado, da cidade ou do estado. Para muito, muito além de onde os ventos do
outono sopravam.
A corrente caiu. A
ponta arrastou-se no chão.
— Mentiroso.
O angakkuq sorriu e
abaixou o braço. Inclinou-se na ponta dos pés para alcançar Kaya com o olhar
num gesto teatral e dramático. Desta vez recuou, embora a mera presença de
Robert não significasse o menor obstáculo. Agia assim por pura diversão.
Agia assim, acima de tudo, porque podia. Seus rituais, suas exigências.
Levianos caprichos.
— Deixe-me passar.
Deixe-me absorver Kaya e dar a ela um vislumbre da fusão e da comunhão.
Deixe-me passar e a informação sobre Evangeline será sua.
Robert rosnou à mera
menção ao nome, furioso por escutá-lo ser proferido de uma boca não merecedora
dele. Nomes tinham poder. Nomes invocavam forças bem como poderiam ser
evocados. Em bocas erradas, alguns nomes tornavam-se heréticos, esvaziados e
amaldiçoados.
— Entregue-me a
garota. Façamos isto de forma pacífica, Robert.
— Por que
simplesmente não passa por mim? — Ele fez um gesto convidativo, arrastando a
ponta da corrente pelo chão. — Você não precisa da minha concessão. Só passe.
O angakkuq riu. Os
dentes eram um conjunto repulsivo de muco preto e escorbuto avançado.
— Porque não seria
divertido. Seria apenas… violento, como apanhar uma criança apavorada
entre os dentes — inclinou a cabeça para referenciar os corpos no chão. — O
tuunbaq fica faminto e o preço de sua estadia é o alimento. Eu o mantenho aqui,
eu o sustento e ele me retribui — estreitou os olhos, olhando-o de maneira tão
profunda que o desconforto foi imediato. — Todos temos o hábito de trocar
favores, não é?
A corrente rangeu no
chão.
— Eu não sou um
selvagem, Robert. Nós dois não somos selvagens, só não podemos fugir de
nossos compromissos diante do inevitável. E o inevitável, neste caso, é uma
informação. Quer ou não quer saber onde ela está?
Por segurança, Robert
recuou a fim de olhar para trás. Apesar da distância, Kaya também escutava o
que o xamã-feiticeiro dizia, graças ao eco e à intromissão com que a voz
desumana invadia a mente.
— Prove — Robert
afrouxou a corrente na mão.
O angakkuq riu,
vitorioso. Apontou outra vez para o leste, convicto que a ambição de Robert era
tão parecida quanto a sua. Xamãs enxergavam coisas. Sabiam de coisas. E sobre
elas tinham poder.
— Quando o demônio
bater à porta, um doce coração o abraçará. Só então asas em chamas você vai
encontrar — o dedo indicador em riste insistiu em ser apontado. — Leste, Robert
Werle. Leste.
Robert seguiu com o
olhar na direção apontada. Brevemente, perdeu-se nela.
— Já basta de sangue
por hoje. Tuunbaqs são criaturas violentas e indiscretas. Deixam rastros pelo
caminho. Chega de tanta confusão, não concorda? — Ele caminhou por entre os
corpos de almas sugadas. — Deixe-me passar. Entregue-me a garota. Não seria a
primeira vez que você faz isso, não é? — E sorriu em posse da acusação.
Mais uma vez, Robert
ousou olhar para trás com o canto dos olhos. Kaya estava novamente hesitante e
amedrontada, a esperança arrancada de sua posse, temerosa que aceitasse a
proposta, já que parecia inevitavelmente propenso a isso. A ingenuidade com que
o interpretou se desfez e a verdade exposta pelo angakkuq fez com que
finalmente descobrisse coisas que antes não enxergava: quem Robert de fato era.
Em posse da revelação, olhando o homem que afrouxava cada vez mais a corrente,
viu o menininho de 13 anos atrás, o quase-sacrifício a que padre Mallory e o
jovem Robert o submeteram, viu também trocas e concessões que ele havia
realizado ao longo da estrada, sozinho, sem testemunhas, sem amigos, tudo com o
objetivo de perseguir tais asas em chamas.
Kaya planejou correr
pelas laterais como todos os outros fizeram, mas por quanto tempo conseguiria
escapar do angakkuq? Até onde ele a perseguiria, agora que farejara o aroma de
sua alma e descobrira nela mais uma alma em potencial para sugar e se unir, no
ritual proibido para se tornar um tupilat nunca antes visto? Quando a
encontrasse, quando devorasse sua essência e dela tivesse posse, ambas as almas
dos xamãs seriam costuradas ao espírito do tuunbaq. Tornar-se-iam um tuupilat
poderoso. O mais profano.
Em um suspiro, Robert
balançou a cabeça afirmativamente e abriu espaço para o angakkuq. Triunfante, o
xamã-feiticeiro passou por ele. Na face, uma expressão altiva de vitória.
Robert se afastou. Não ousou olhar para Kaya. Não quis encará-la. Ao invés disso,
enrolou a corrente de volta na mão e no punho, três longas voltas que
fizeram a ponta do metal recuar e ficar na altura de seu joelho. Ele
impulsionou o braço para trás e projetou o metal em uma explosão que nem o
próprio angakkuq esperava. A extremidade alcançou a lateral da cabeça do
feiticeiro, atingindo-o o flanco esquerdo da cabeça até os maxilares. Ele caiu,
desnorteado.
Robert partiu para
cima do angakkuq assim que ele despencou no chão. Imobilizou-o entre as pernas
e usou as duas mãos com a potência de um touro, desferindo uma sequência de
golpes no rosto decrépito do xamã profano, enquanto o sangue da própria vítima
misturava-se ao líquido preto que dele escorria e ao sangue do próprio
agressor, pois tinha a pele dos nós dos dedos cortada quando lhe rachava os
dentes. Robert o acertou com a mão esquerda livre e a direita enrolada na
corrente, esmagando as bochechas do feiticeiro como um soco inglês
improvisado.
Em resposta, o
angakkuq agarrou o agressor pela lateral dos cabelos, arrancando um emaranhado
junto com sangue e o arremessou para o lado. Ergueu-se sobre os joelhos, tonto,
furioso por ter sido pego de surpresa em dissimulada traição. Cambaleou até
Robert e o impediu de se levantar, usando a força descomunal do tuunbaq fundido
ao seu corpo. Ele desferiu um tapa com as costas das mãos. Agora de pé e
recuperado, rugiu com a voz e a garganta do espírito-animal, projetou o pescoço
quimérico sob os feixes de luzes coloridas. O espírito do tuunbaq cravou a boca
na perna de Robert, que urrou quando sentiu os dentes afundarem na carne. Ele
girou uma só vez sobre os próprios pés e arremessou a presa no ar. Ao contrário
de Joe, que ainda permanecia no chão, morto ou desacordado, Robert passou a
menos de um metro de uma das colunas de concreto.
Desnorteado, manco,
tentou levantar. Ao contrário do angakkuq, era todo e apenas humano, sem
atribuições divinas ou espirituais que lhe conferissem vantagens. Robert
desistiu de levantar quando percebeu que o feiticeiro vinha em sua direção.
Graças ao silêncio no galpão, pôde prever e contar os passos do xamã à medida
em que se aproximava. Aguardou com os olhos comprimidos enquanto a cabeça
parava de girar. Quando, finalmente, o angakkuq o alcançou, Robert já estava
sobre os joelhos, a tempo de segurar o chute que o feiticeiro o desferiu. Ao
invés de ser lançado, Robert suportou o golpe, utilizando o próprio tronco e o
tórax para conter a fúria animalesca do chute. Preso à perna do angakkuq,
Robert girou sobre os pés e inverteu a posição, derrubando-os de volta ao chão.
Com o xamã embaixo
dele, Robert recorreu mais uma vez à chuva de socos. Não o atingiu de maneira
transversal nas bochechas, têmporas ou canto dos lábios. Ao invés disso, desceu
os punhos como martelos afundando pregos na madeira. Os pregos eram os dentes.
Já a madeira era o fundo da garganta, por onde os incisivos, caninos, molares e
pré-molares que não saltavam para fora da boca caíam e o engasgavam. Enquanto grunhia, o angakkuq utilizava as unhas para afundar nos
ombros de Robert e arrancar não somente a roupa, como também lascas de pele que
saíram com esguichos de sangue. O golpe fez com que gritasse, mas a cada grito
outra martelada de punhos era empregada. O angakkuq continuou a desesperada
reação não só pelos ombros, como também pelo peito e pelas costelas de Robert.
Com a pele rasgada,
ele desistiu e saltou para trás. Os rasgos ardiam, como se pequenos fios de
metal em brasa fossem colocados sobre a epiderme e em seguida movidos num
vai-e-vem que afundavam até a hipoderme. Caso permanecesse por mais segundos,
as unhas animalescas do xamã teriam alcançado a carne e depois os ossos com
desmedida banalidade. O homem arquejou, aflito pelos fios de sangue que lhe
escorriam a pele e encharcaram a roupa. Ziguezagueou para o meio do galpão,
trôpego como um bêbado. Ao olhar para trás, viu a figura do angakkuq se
levantar como se nada lhe houvesse ocorrido. O xamã-feiticeiro, também era
acometido pela dor - mas para ele, era um processo natural, uma consequência
ínfima diante de tudo o que havia feito, negado e vilipendiado para alcançar a
comunhão proibida com a natureza e hospedar o tuunbaq dentro do próprio corpo.
Súbito, moveu o pescoço e novamente o vislumbre do urso branco surgiu, o
pescoço prolongou-se no ar e caiu como uma pedra sobre Robert.
Ele rolou para o
lado, a tempo de ter a perna direita salva do golpe. Tentou levantar, mas antes
que se apoiasse nos pés, mais uma vez o pescoço fantasmagórico caiu sobre ele,
tentando abocanhá-lo pela coxa. Robert saltou para o lado, rolando de maneira
desengonçada e perdida. Ele tateou o chão, sempre atento ao angakkuq
vindo em sua direção. Os olhos estavam inchados, um deles já inteiramente
tomado por hematomas e abscessos de sangue que deixavam a pele fina como
uma bolha de sabão prestes a estourar no ar. Marchava com imponência, mantendo
o sorrisinho debochado na obra de arte horrenda que lhe era o rosto.
Robert escapou mais
duas vezes do ataque do tuunbaq, desviando do pescoço a poucos segundos de ser
fisgado por ele, mas a cada salto perdia o fôlego. Arquejava devido à
frequência cada vez mais insana com que o angakkuq projetava o animal quimérico
e tentava açoitá-lo no chão. Quando olhou para trás, ofegante, viu que o dorso
do angakkuq já havia se movido e a imagem semitransparente do pescoço
animalesco já projetava um arco no ar. As luzes piscaram em todas as suas
cores: vermelhas e verdes e amarelas e azuis e tudo de novo. Quando Robert
reagiu e saltou para frente, já era tarde. O pescoço do animal o atingiu nas
costas, descendo com as presas fantasmagóricas dos músculos do trapézio até a
cintura, tecendo na pele outro rasgo, semelhante àqueles que tinha nas laterais
dos braços, ombros e costelas. Não foi capturado em cheio como os adolescentes
haviam sido, mas o simples golpe tangencial fez com que ele caísse no chão e
gritasse. Ele apertou a corrente na mão. Trincou os dentes. Estava de peito
para baixo. Desesperado, tentando escapar do angakkuq, rolou no chão. No
entanto, o feiticeiro já estava sobre ele. A boca aberta. E do fundo da garganta,
a espiral mágica: a atroz feitiçaria que sugava vidas e devorava almas.
Robert foi abocanhado
no pescoço, mais apavorado pelo que aconteceria do que por qualquer dor ou
sensação. Por segundos, sentiu o peito ser abatido por uma titânica sensação de
perda, um vazio abissal e impalpável. O ar subiu pela laringe, os pulmões
momentaneamente se esvaziaram. Então teve a certeza de que seria naquela noite,
tão banal e tão improvável: a certeza do dia seguinte foi arrancada de
quaisquer planejamentos e pensamentos. A estrada pela qual seguia, antes de
receber o telefonema a mando da jovem xamã Kaya Akna, de repente se encurtou,
desapareceu ante o ticket de ônibus perdido. O mapa riscado que trazia consigo
– não o daquela cidade, mas o do país inteiro – com inscrições, anotações e
marcações em X de todos os locais, médiuns, sensitivos e falsos profetas
visitados, ficaria para trás, apenas mais um item na bolsa que serviria de
provas para as autoridades no dia seguinte ou de espólio de guerra para o
angakkuq. Tudo aquilo que perseguia, tudo aquilo que procurava, tudo aquilo que
dava a ele um senso de obrigação, de justiça e de vingança – todos movidos pela
paixão desvairada, pelo insano amor que nunca havia sentido antes – ficavam
para trás, meros feitos não realizados de um desconhecido que morria em uma
cidade desconhecida. As asas em chamas e os cabelos castanhos e o trailer em
outra beira de estrada e memórias de uma viagem frenética à procura de um bar,
de porcos milenares, dos filhos de Cirse… tudo ficava para trás conforme a
espiral na boca do angakkuq o abocanhava e dele consumia a alma. Robert
morreria ali. Naquela noite. A contragosto de suas próprias certezas.
Contradizendo a mais sólida de suas convicções. Contrariando a mais vil de suas
arrogâncias.
Esteve a ponto de
revirar os olhos e de se entregar ao inevitável revés da noite, quando uma
terceira força o separou do xamã-feiticeiro. Ele caiu enquanto o ambiente ao
redor girava. Piscou em desespero, tentando se recuperar da sensação de
desalento, de impotência, de fraqueza - os ossos pareciam frágeis, os músculos
das pernas adormecidos e o sangue mal circulava nas extremidades dos dedos dos
pés e das mãos. Ele levantou, mas pensou levantar. Ele se apoiou com as mãos,
mas pensou se apoiar. Não tinha controle sobre o corpo. Não possuía sequer
vontade para apertar as mãos e sentir o toque gélido da corrente enrolada entre
os dedos. Zonzo, tudo o que ele viu foi Kaya de pé, interpondo-se entre ele o
angakkuq.
— Levanta, Robbie.
Levanta — ela sussurrou.
E como a voz do
feiticeiro-xamã ressoando em seu ouvido e dentro da cabeça, Robert soube que
assim o foi com a voz da garota. Em contraste ao outro, ela tinha a voz rouca.
Não havia medo nem repulsa carregados naquele som. Não pareciam vermes
rastejando para dentro dos ouvidos. Ao invés disso, a voz era melódica.
Aprazível. Curandeira.
Não foram apenas
essas as palavras que entraram nos ouvidos e na mente de Robert. Kaya começou
um recital suave, palavras repetidas incessantemente e que, ele sabia, dançavam
apenas dentro dele, pois o angakkuq não parecia surpreso, tampouco tomado pelo
som. Kaya caminhava para trás e Robert a acompanhava, atrás do escudo que agora
a garota representava. Ele apalpava, incrédulo, o local onde o feiticeiro havia
lhe sugado um pedaço da alma – ou pelo menos tentado –, procurando vestígios de
sangue, de carne exposta, de morte certeira. No entanto, a pele estava intacta.
Embora próxima dos demais rasgos feitos pelas unhas do xamã, aquela região
continha senão respingos de sangue. A peleja não era física. Não era na carne.
Não era na pele. Era mais profunda.
Eles continuaram se
afastando. À medida em que Kaya recitava as palavras, Robert sentia a força
pouco a pouco reassumir o corpo. Os ossos se enrijeciam e os músculos se
retesavam. Com o ar de volta aos pulmões e o vazio no peito sendo preenchido
novamente, ele levantou. Quando a sensação de perda foi aliviada, Kaya terminou
de recitar suas preces.
O angakkuq perdeu o
riso nos lábios. Prostrou-se nos pés e articulou os joelhos para outro golpe.
Lado a lado, Robert e Kaya se puseram na frente dele, a um braço de distância.
Quando o tuunbaq surgiu diante deles com o pescoço alongado, Robert gritou uma
ordem e correram cada um para um lado, enganando tanto feiticeiro quanto
criatura. Kaya seguiu para o fundo do galpão, novamente em direção ao palco.
Robert contornou o feiticeiro e ousou se aproximar pelas costas. Por ser mais
alto que ele, foi fácil passar o braço direito por debaixo do pescoço do
feiticeiro-xamã e aplicar nele um mata leão. Robert ergueu as costas e o
levantou do chão. Ele se debateu e lutou. Rasgou o antebraço de Robert com as
garras, afundou-as na pele e tentou dilacerá-lo, mas o golpe apertava-lhe a
garganta e o obrigava a respirar ao invés de planejar contragolpes sujos ou
inteligentes. Enquanto as luzes ainda piscavam, o dorso se contorceu, os ossos
estalaram e o pescoço do angakkuq foi projetado, roçando a menos de dois
centímetros o queixo de Robert. Todavia, o espírito animal se tornou inútil
ante a tática de autodefesa, pois era incapaz de girar como o pescoço das
corujas ou de alcançar as próprias costas como um gato.
Robert o arrastou
consigo até a coluna de concreto. Afrouxou o golpe, fez duas voltas com a
corrente no pescoço do angakkuq, distanciando-se dele. Antes que o
feiticeiro compreendesse o ocorrido, já estava preso à coluna como um São
Sebastião desonroso, lutando para desfazer o aperto que o prendia pelo pescoço.
Na parte oposta do pilar de concreto, Robert manteve a corrente apertada,
comprimindo e quase esmagando as próprias mãos ao tentar conter o xamã de se
soltar. Engasgado pelo metal a uma distância de dez centímetros do chão, o
angakkuq deslizava e se mantinha de pé com dificuldade. Ofegante, eram apenas
os dedões esticados que o mantiveram respirando. Arquejante como um animal
capturado. Desequilibrado. Inseguro como uma bailarina amadora. O tuunbaq se
manifestou, porém o pescoço era longo demais e pouco flexível para alcançar
presas tão próximas. O animal rugiu em agonia, o mesmo rugido desesperado que o
angakkuq soltava – eram dois, e, portanto, se unidos estavam, em simetria
sofreriam.
Nesse ínterim, Kaya
reapareceu, contornando o caminho para se distanciar da envergadura do tuunbaq.
Ela se aproximou dele e o encarou com desprezo. O feiticeiro implorou pela
misericórdia dela. Clamou para que o soltasse, pois ensinaria a ela segredos
que nem os mais antigos povos do norte foram capazes de descobrir. Citou sonhos
xamânicos e visões deslumbrantes que apenas um poderoso, como eles, seria capaz
de tocar. Falou, falou e falou, mas a voz se perdia e falhava em meio à agonia
e à corrente que lhe apertava o pescoço.
O angakkuq continuou
tagarelando, falho e desconexo. Kaya utilizou as duas mãos para abrir a boca
dele. Com a direita, enfiou os dedos no lugar onde antes deveria existir uma
linha de dentes superiores. Fez o mesmo com a mão esquerda, abrindo-lhe o
maxilar inferior como se ele fosse o leão de Neméia. Do fundo da garganta do
angakkuq, a espiral devoradora de almas surgiu – uma última tentativa de fuga
ou de golpe atormentado. Atenta ao ardil, Kaya não se amedrontou. Viu o
redemoinho espiritual se formar ali dentro e o encarou profundamente. Era belo
e ao mesmo tempo arrenegado, maléfico, o mais vil dos desequilíbrios que um
angakkuq inuíte poderia exercer sobre o mundo.
Quando a espiral
ganhou força, Kaya moveu os lábios. Lentamente, recitou palavras no idioma
inuktitut. Palavras que ela havia aprendido com o avô. Palavras que sua mãe lhe
contara e com ela repetira em dias de longo estudo e ensinamento. Palavras que
não eram malditas nem proibidas, mas muito antigas. Palavras que aprendera por
obrigação, mas jamais julgou um dia poder utilizar. Um canto quase perdido,
melodia única que poucos guerreiros entoaram na história de seu povo – apenas aqueles
que se dedicavam a capturar tuunbaqs, e em posse dos antigos costumes,
devolvê-los à deusa Sedna. A espiral cresceu, avolumou-se. Kaya usou as mãos
para arregaçar a boca desdentada, gosmenta e babada do feiticeiro – estava
grata por Robert ter previamente eliminado prováveis infortúnios. A ânsia de
vômito novamente a acometeu, dessa vez não por estar perto do tuunbaq nem por
um enjoo ritualístico, mas psicológico. Era repulsivo sentir a saliva
enegrecida escorrer por entre seus dedos e tê-los acariciados pela língua do
feiticeiro.
Gradativamente, ele
perdeu as forças dos braços. Não foi capaz de movimentá-los nem para protestos.
Os pés pouco a pouco pararam de se mexer, e já sem forças, quase não foi capaz
de sustentar o peso do próprio corpo na ponta dos dedões.
O canto entoado por
Kaya invadiu somente a cabeça do angakkuq, e lá dentro, no lugar onde o xamã
corrompido e o tunnbaq estavam fundidos, a canção atuou como uma agulha que
desfez o laço desarmônico, descosturando a alma do urso da alma do homem,
invertendo o laço espiritual e quase umbilical que o homem havia realizado. O
cântico permitiu que lentamente eles se afastassem. As palavras adocicaram a
fera e deram a ela a compreensão de que havia sido aprisionada, e muito embora
houvesse se alimentado de várias pessoas ao longo de milhas, não era culpa dela
os rastros de sangue e morte deixados para trás. O tuunbaq era um espírito
raivoso, criado por Sedna. Mas a raiva era tão natural no espírito-animal
quanto era no coração dos homens, e desde que compreendida e saciada pela
harmonia, pelo equilíbrio, ela poderia retornar para casa, a fim de vagar nas
ventanias das geleiras de forma adormecida e silenciosa.
O tuunbaq que rugia
lá fora, projetando-se através do corpo do feiticeiro, lentamente foi acalmado.
O pescoço se contraiu, retraiu-se e voltou para o interior do corpo do
angakkuq para nunca mais voltar. Kaya ainda cantarolava. Perdendo forças, o
corpo do feiticeiro finalmente parou de se movimentar por completo. Os pés
relaxaram. A espiral que a tudo sugava se desvaneceu dentro da garganta para
enfim se transformar num longo e fino fio de fumaça esbranquiçada, que se
dissipou no ar, densa como fumaça de cigarro. Em seguida, fraca como o bailar
dos incensos. Por fim, dispersa como a mais cruel das raivas controladas. A
fumaça desapareceu. O tuunbaq havia partido junto ao domínio que o
xamã-feiticeiro tinha sobre ele.
Quando Kaya finalizou
o canto na garganta, ordenou que Robert afrouxasse as mãos e o libertasse. A
corrente afrouxou, desfez o abraço em volta da coluna e o homem caiu sentado no
chão. Não estava morto. Talvez sobrevivesse à série de golpes que havia
recebido ou ao tormento de doenças devido à união com o tuunbaq e a todos os
feitiços aos quais utilizou para auto mutilar sua alma e seu corpo.
Robert avançou para
terminar o serviço, mas a jovem xamã o deteve com um breve balançar de cabeça.
Catatônico, o angakkuq corrompido permaneceu de olhos abertos em estado
vegetativo. Afinal, era o preço a se pagar pela afronta à deusa Sedna e, acima
de tudo, ao equilíbrio natural do mundo. Robert resmungou e deitou-se no chão,
exausto.
Ao longe, ouviram o
som de sirenes.
Ao lado deles, mais
alguém reagiu emitindo um gemido fraco de dor. Era um sinal de vida.
Era Joe.
IV.
Favores
Às onze da manhã o
corredor do hospital estava vazio. O alvoroço que a noite de Halloween causara
havia cessado: os policiais não andavam mais de um lado para o outro colhendo
depoimentos e as enfermeiras descansavam aliviadas, longe da histeria que os adolescentes
em choque proporcionaram horas antes. O hospital era pequeno, igualmente à
beira da estrada como quase tudo na cidade. Apenas uma médica fazia plantão. A
equipe de enfermagem era limitada e um recepcionista cerrava as unhas no
balcão. Cinco garotos haviam sido pisoteados, mas não tinham tantos ossos
quebrados como Joe; três garotas caíram na confusão, ganhando luxações e
escoriações e um casal aguardava no corredor em busca da cura para a
ressaca.
Apenas uma viatura da
polícia fazia vigília na frente do hospital. O resto dos agentes contava corpos
no necrotério e a outra metade tentava, em vão, interrogar o suspeito em estado
vegetativo, acusado pelo confuso ataque de canibalismo na festa clandestina de
Halloween - sobre a qual a polícia estranhamente não ouvira falar. O evento e
seus desdobramentos seriam o fato mais importante ocorrido na cidade desde a
galeria na beira da estrada.
Da janela no
corredor, Kaya observava o pai em recuperação. Ela sorvia um copo fumegante de
café. Robert se aproximou com dificuldades, já que o pé estava enfaixado e ele
fazia uso de duas muletas. Se a fantasia de padre lhe caía bem na noite
anterior, o mesmo não poderia ser dito da vergonhosa imitação de múmia: tinha
faixas por ambos os braços para esconder e cicatrizar as feridas, outras tantas
pelas costelas, ombros e costas. Apenas três dos vários rasgos exigiram pontos.
Ademais, ele ainda se sentia zonzo devido ao ataque do angakkuq, uma
espécie de trauma prolongado, como se todo o açúcar do sangue tivesse sido roubado
e apenas a fraqueza recaía sobre o corpo.
Ele se sentou ao lado
de Kaya.
— Ele vai ficar
bem.
— Eu sei que vai. Eu
sou uma xamã. Às vezes eu sei das coisas, lembra? — Ironizou ela. Ficou ali por
mais alguns segundos, então se deu por convencida e sentou ao lado dele.
Robert fechou os
olhos e deitou a cabeça na parede, do mesmo jeito que estava quando Kaya e o
pai o encontraram na noite anterior. O silêncio que recaiu sobre eles foi
incômodo. Kaya bebericou o café, aguardando pelo esperado. Robert prolongou o
silêncio, reunindo, talvez, coragem.
— Não à toa eu sei o
que você quer me perguntar — ela concluiu.
— Eu não disse nada,
querida.
— Obrigada por nos
ajudar essa noite — ela desabafou. — Você nos retribuiu com um favor maior que
aquele que cobramos. Então, é, nós te devemos uma. É o que você quer perguntar,
não é?
— Você me deve
uma — ele respondeu em um sorriso, vitorioso.
— Também devo
agradecer por não ter me entregado ao angakkuq?
— Acha que eu faria
isso?
— Eu não sei.
— Você é uma xamã —
ele reabriu os olhos, fitando o teto. — Você sabe das coisas.
— Às vezes —
ela corrigiu. — Se quer um favor de volta, peça.
Ele se remexeu na
cadeira. Dobrou as costas e olhou para ela.
— Você não sonhou
comigo por acaso, não foi?
— Sim e não. Eu sabia
que precisava de alguém, então utilizei um feitiço para localizar a pessoa mais
próxima ao tuunbaq. Eu não sei de tudo, Robbie. Não sabia que quem eu
encontraria seria você. Também não sabia que um angakkuq havia realizado um
ritual para se juntar ao tuunbaq.
— Mas você usou um
feitiço de localização em ambos os casos.
Ela suspirou,
impaciente.
— Sim.
Robert balançou
o dedo indicador.
— Um feitiço de
localização. É o que eu quero. É o favor que eu cobro de volta.
Kaya riu em negação.
— Você quer
encontrá-la, não é? Evangeline.
— Eva — ele a
corrigiu, suavemente.
— Eu não posso fazer
isso por você. O feitiço de localização que você procura está muito além do meu
povo, Robbie. Está muito além de mim. Sinceramente? Está além de qualquer um de
nós.
— Mas o angakkuq…
— Talvez ele
estivesse mentindo. Ou talvez você devesse ter me entregado. Por que não me
entregou? Teria sua resposta.
Kaya levantou,
contrariada. Voltou à posição onde antes estava: de pé e olhando para o
pai.
— Desculpe, querida.
Ela deu de ombros.
Robert também se
levantou, menos ágil e mais debilitado. Deu as costas à garota. Antes que se
afastasse, ela disse:
— Eu não posso
ajudá-lo, Robbie. E se eu pudesse, não faria por uma troca de favores. Se eu
pudesse localizá-la, eu faria. Disso eu sei. Talvez exista alguém por aí
que seja capaz. Se houver, cê tem que saber que tanto Eva quanto as formas de
encontrá-la requerem um poder muito grande. E forças muito grandes sempre tendem
a ser desarmoniosas.
— Que forças?
Kaya sorriu,
compassiva.
— A noite inteira e
você não entendeu nada do que eu disse, né, Robbie? Só um desequilíbrio muito
grande pode forjar um feitiço pra localizá-la.
— Você disse que não
conhecia nenhum feitiço.
— Eu não conheço. Não
um específico, pelo menos. É só algo que todo mundo sabe, saca? Um grande
desequilíbrio: forte e estúpido.
— De que tipo? — Ele
se aproximou.
— Um sacrifício,
Robbie. Um sacrifício.
Se informações eram
preciosas, essa foi a informação que Robert precisava. E se essa era a
informação necessária, eis o favor que Kaya o retribuiu sem se dar conta. Ele
balançou a cabeça e seguiu pelo corredor. Tão logo o corpo se recuperasse,
voltaria à estrada. Muito além da rota 33 ou de quaisquer outras rotas.
Às antigas estradas.
Às estradas de sempre: em busca de asas em chamas.
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