31 de outubro de 2022

Cemetery Drive #38 - Devorador de almas


 

 

 

 

Change that song, Mr. DJ

All we wanna hear is rock 'n' roll tonight

 

(Change that song, Mr. DJ - Tim Timebomb) 

 


 

I.

Angakkuq

 

 

Como um punhal atravessado na noite, a rota 33 cortava a pequena cidade agrícola sem nome ao meio. O que há mais de duas décadas havia sido uma importante rota comercial de insumos e fertilizantes, hoje não passava de um ponto monótono no meio do mapa, mera parada obrigatória – mais por falta de opção do que por motivos atraentes – para aventureiros e viajantes na pausa de quinze minutos que os ônibus interestaduais faziam ali.

O local ficava à beira da estrada: não um terminal, mas um antigo e já desativado posto de gasolina com pequeno estacionamento e uma simplória e abandonada galeria de lojas. À época da inauguração, foi um dos principais e mais atrativos cartões postais da cidade – a lista não era verdadeiramente extensa nem sequer existente. O prefeito, cuja família dominava o cargo há cinco gerações no passado e dominaria adiante no futuro, estampou propagandas em outdoors num raio de quilômetros, convidando os viajantes a desfrutarem da diversão. 

A prosperidade, entretanto, não passou de areia escorregando pela cintura da ampulheta. Por nenhuma razão especial, a terra cobrou seu preço: as secas vieram e com elas a crise. De repente, a cidadezinha tornou-se um ponto desconhecido no mapa, cujo nome tanto se perdeu que nem aqui foi ou será mencionado. 

Da galeria, tudo o que restou foram as coberturas do posto de gasolina, que ainda forneciam a iluminação necessária para afastarem a escuridão total, tanques oxidados, reservatórios vazios e um telefone público sem gancho. Nenhuma dessas coisas tinha utilidade, eram senão ordinárias decorações. Apenas a pequena cabine de venda de passagens funcionava. Ela servia como ponto de parada e era a única companhia de viagem interestadual que fazia trajeto obrigatório ao longo da rota 33. Durante o dia, não era incomum encontrar ônibus estacionados fazendo conexões e trocando de passageiros, que se espreguiçavam, acendiam seus cigarros, buscavam informações com o vendedor da cabine ou praguejavam o fato de que o único banheiro exibisse um garrafal INTERDITADO na porta. O aviso estava ali há quase cinco anos.

Era noite de Halloween - não que o ar estivesse diferente ou que crianças perambulassem, fantasiadas, pelas ruas. Àquela hora da noite, não havia mais linhas fazendo conexões. O próximo ônibus só passaria às oito da manhã, quando o velho funcionário já estaria há mais de duas horas sentado organizando os bilhetes com seu sorriso amistoso. Para ele, o contato com pessoas de outros lugares do mundo era o fator mais importante (e empolgante) de seu ofício.

Apesar disso, desconfiou do jovem padre que estava ali sentado desde as oito da noite. Vez ou outra, o sacerdote esticava os pés e caminhava distraído com as mãos mergulhadas no sobretudo escuro. Tanto os cabelos como os olhos eram de um preto profundo, bem alinhados atrás da orelha até mesmo quando o vento morno de outubro os desarranjava. Nos ombros relaxados, carregava uma elegância natural, e atravessada no peito, uma bolsa igualmente preta. Pelas horas que ficou ali, não tocou na mala, tampouco se afastou dela. Ao contrário dos jovens daquela época – ele não aparentava passar dos trinta e cinco anos –, não fez uso de aparelho celular. Parecia bem-sucedido em se manter absorto, à espera de algum ônibus que jamais chegaria, pois não fez questão de comprar qualquer bilhete nem de subir nos últimos que por ali passaram horas atrás.

Preocupado com o horário e com a natureza do jovem padre, o velho guardou os bilhetes na gaveta junto com a caderneta de horários para o mês de novembro, trancou-os com três voltas; apagou as luzes interiores, fechou a porta com outras três voltas e suspendeu o portão de ferro. Em seguida, usou um pesado cadeado para trancá-lo. Voltou a perguntar ao sacerdote (a mesma pergunta que fizera antes):

— Tem certeza que vai ficar aqui sozinho, padre?

— Minha carona está atrasada – respondeu ele através de um pesado sotaque britânico.

O homem assentiu. Guardou as chaves da cabine no bolso. Nunca havia conversado com alguém de terras tão distantes. De maneira muito discreta e nada invasiva, ele acenou para o padre e seguiu até o estacionamento. Entrou na caminhonete e deu partida nela, para em seguida mergulhar na escuridão da rota 33.

Agora sozinho, o sujeito esticou as pernas e por hábito aqueceu as mãos nos bolsos do sobretudo, embora a noite não estivesse fria. Iluminado apenas pelas últimas luzes acesas do posto de gasolina, ele fechou os olhos e recostou a cabeça na parede. No tempo em que aguardou ali, não escutou qualquer automóvel cruzar a estrada. Relaxado, manteve-se atento aos sons da noite: grilos no interior da galeria, marchando por entre os musgos que certamente subiam pelas paredes; ratos e mariposas que descansavam no capim alto que ocupava o playground aos fundos; morcegos que saíam do interior das velhas lojas para sua noturna caçada e retornavam, saciados, de barrigas cheias e bocas adocicadas, para seu ninho de amantes e comparsas. Além deles, apenas sua respiração fazia coro à orquestra. Ele não se preocupou com perigos escondidos ou ameaças noturnas – fossem elas humanas ou não, pois das certezas que possuía, apegou-se àquela que o ofertaram: encontre-nos no velho posto de gasolina, e fique tranquilo, ele não estará lá

Além dela, outra certeza bem maior o fazia abraçar a falta de preocupação e o preenchia de aparente desleixo, pois não havia desligado os sensores internos de perigo por acaso. Era a certeza da proteção. A certeza de que não morreria aquela noite. A certeza de que não sucumbiria tão cedo. Pois tinha outra missão a ser cumprida, uma maior e mais importante. Não cairia à beira da estrada enfrentando um provável predador sedento de migalhas em cidades sem nome – aquilo era apenas um passatempo, um contratempo, um breve desvio de melhores rotas e conhecidas curvas. Não seria ali, num antigo posto de gasolina, em uma noite amena e inofensiva, enquanto descansava as pálpebras e aguardava para pagar um antigo favor, que estaria em perigo.

Meia hora depois, escutou um ronco distante preencher o silêncio da noite. Pouco a pouco, o primeiro som de motor em mais de três horas se aproximou da antiga galeria à beira da estrada, um alento aos ouvidos. Gradativamente, o sinal de vida aproximou-se até que os faróis do carro iluminassem o estacionamento, então os pneus rangeram sobre os cascalhos e pararam embaixo do posto, onde os ônibus costumavam estacionar. O motor do Ford Crown Victoria 1992 parou de ranger e a ignição foi desligada. O motorista abriu a porta e contornou o veículo para ficar de pé ao lado do padre.

Joseph Akna era alto e corpulento. Em verdade, os quase 2 metros de altura tornavam os 1,80m do padre irrelevantes. Aparentava beirar os cinquenta anos e na cabeça predominavam cabelos grisalhos. Os olhos eram felinos e de um castanho brilhante mesmo na escuridão da noite, traços típicos do povo inuíte. O calor daquelas terras quase áridas era diabólico para um homem como ele, acostumado às baixas temperaturas do norte. Joe estava muito, muito longe de casa.

— A estrada parecia não ter fim.

— Relaxa — Robert levantou e estendeu a mão. — Há quanto tempo, Joe.

O homem respondeu ao aceno, pouco amigável. Em seguida, analisou-o dos pés à cabeça.

— Ainda brincando de padre?

— É Halloween, colega – Robert, o falso padre, respondeu. 

— Obrigado por rastreá-lo até aqui – imediatamente o homem mudou de assunto. — O que você já descobriu?

— Esta é a única cidade num raio de 40km. Você não vai encontrar muita vida por aqui. A maior parte da população é composta por velhos rabugentos e fofoqueiros, a outra metade é de adolescentes entediados que logo sairão daqui ou que passarão o resto da vida nesse fim de mundo. População de 8 mil habitantes. 

— É gente suficiente para que ele se alimente.

— O que exatamente "ele" é?

— Um tuunbaq desgarrado.

Não foi Joe quem respondeu. Da porta do carona, a garota saiu num salto desanimado. Espreguiçou-se como fariam os viajantes e igualmente reclamou ao ver a placa do banheiro com o garrafal INTERDITADO.

— Robert, esta é Kaya, minha filha.

— Ei, Robbie — a jovem inuíte acenou, ligeiramente mais enérgica e simpática que o pai. A forma como o tratou pareceu íntima, como se o conhecesse há uma vida inteira. Os cabelos eram longos, lisos e estavam presos em um rabo de cavalo, de uma cor castanha que se fundia à cor da pele, e à exceção do pai, tinha olhos amendoados, muito mais penetrantes e brilhantes sob a escuridão da noite – Você sabe onde tem outro banheiro por aqui? Eu realmente, realmente, preciso muito esvaziar a bexiga.  

— É só arrombar a porta — Robert indicou, em tom de desalento.

— Merda.

Kaya se inclinou para dentro do carro e inspecionou a bolsa sobre o banco do carona. Retirou de lá um rolo de papel higiênico e encarou com receio o corredor da galeria, juntamente com a placa pendurada sobre as correntes. Hesitante, passou as pernas sobre a patética contenção e usou a lanterna do celular para iluminar o caminho.

— Cuidado, Kaya — o pai alertou.

— Fica tranquilo, pai. Ele não está aqui. Aliás, ele vai ser o menor dos meus problemas agora — ela forçou a voz à medida em que se afastava na escuridão.

Quando os passos ficaram mais distantes junto com o ponto luminoso da lanterna, Joe respirou outra vez e recostou-se na lateral do carro.

— Como ela tem tanta certeza de que ele não está aqui? — Robert perguntou.

Joe riu.

— Você tirava um cochilo quando chegamos aqui, Robert. Como você sabia que ele não estaria aqui?

— Porque você me avisou pelo telefone. Aliás, como também sabia disso?

O homem relaxou os ombros. Não tirava os olhos atentos do ambiente. 

— Não me pergunte como ela sabe das coisas. Ela sabe. E além disso, ela pode senti-lo. Caso o tuunbaq se aproxime, 

Robert ignorou pela segunda vez a menção ao nome e à criatura. Outro detalhe, entretanto, importava mais:

— Como me localizaram?

Joe suspirou, impaciente.

— Estamos atrás de tuunbaqs desgarrados. Esse é o terceiro que rastreamos ao longo do país. Eles estão muito longe de casa e isso não é um bom sinal. Quando coisas que nunca aconteceram começam a acontecer, nunca é um bom sinal — ele cuspiu um fio de saliva, nunca diretamente olhando para Robert. — Há uma semana, Kaya acordou no meio da noite, acendeu as luzes e discou um número no celular.

— Eu estava no banco de um terminal. O telefone público tocou, alguém atendeu e anunciou meu nome em voz alta. A ligação era para mim. Chamaram meu nome completo.

— Não se sinta especial, você era o sujeito útil mais próximo que tínhamos.

Robert ignorou.

— Kaya deveria ter dois anos de idade quando padre Mallory e eu pedimos a ajuda de sua família, Joe. Ela nem sequer se lembra de mim ou do meu nome. Por Deus, nem eu lembrava dela — Robert falou em tom baixo. — Até esta noite, ela nem me conhecia.

— Bom, acho que chegou a hora de você nos retribuir o favor, não é?

— É.

Joe Akna se aproximou, fitando a escuridão onde antes a filha havia seguido. A luz da lanterna continuava distante.

— Escuta, Robert. Kaya só tem quinze anos de idade. Infelizmente, foi ela e não eu quem recebeu a merda desse dom. Ela pode ser uma péssima xamã, ela pode ser uma xamã razoável ou, que os deuses nos protejam, poderia ser a mais poderosa xamã que tivemos há quase um século. Eu não me importo com nenhuma dessas possibilidades. Kaya ainda é a minha filha, e se algo der errado esta noite, se por menor que seja o perigo, o nosso plano desandar e as coisas saírem da linha, eu vou segurá-la pelos braços e a trarei de volta, você me ouviu?

— Claro.

— Eu não sei o porquê nem como ela te encontrou, mas você está aqui. Você e seus livros sagrados e seus crucifixos e seus rituais assassinos. Há treze anos você e padre Mallory quase mataram uma criança antes de descobrirem que não era um demônio-cristão quem a possuía. Só então foram atrás de nossa família. Nós resolvemos a cagada cristã de vocês. Eu conheço os seus métodos, conheço vocês, branquelos, e como misturam suas crenças e suas armas de fogo. Diga-me, você tem uma na cintura agora, não tem?

Robert não respondeu.

— Por isso, se o plano der errado e se minha Kaya estiver em perigo, eu saio de lá imediatamente. Ela pode ser a única xamã do meu povo, mas antes disso é a minha filha. Se eu desconfiar que você se empolgou desejando cumprir com algum código moral cristão ou sádico, eu a arrasto de lá e te deixo pra trás. Você me entendeu?

— Claro, Joe. O plano é de vocês. A noite é de vocês. Eu só estou aqui para pagar uma dívida antiga. Acima de tudo, ela é sua filha — ele balançou os ombros em comum acordo. — Você é quem manda, colega. 

Quando Kaya retornou, um silêncio incômodo pairava entre os dois homens. Ela passou por cima da corrente, guardou o papel higiênico e apoiou-se sobre a porta do carro, já que era quase tão alta quanto o pai.

Robert ergueu o dedo indicador:

— Afinal: o que, Inferno, é um tuunbaq?

Antes que respondesse, Kaya olhou para o pai. Na defensiva, parecia apenas uma criança em posse de uma informação importante e à procura de permissão para revelá-la. De braços cruzados, e sempre a contragosto, Joe balançou a cabeça em tom permissivo. Embora fosse a xamã, e embora fosse ela a receber sonhos divinatórios, não passava de uma garota de quinze anos à sombra – literal e metafórica – do pai.  

— O tuunbaq é um espírito-animal criado pela deusa Sedna para satisfazer sua fúria e cumprir sua vingança contra aqueles que a desafiaram — explicou a garota, retraída. — Nosso povo fala sobre apenas um espírito tuunbaq, mas existem vários. Incontáveis. Eles conseguem assumir a forma física quando são despertados e se tornam praticamente incontroláveis. Se transformam em grandes ursos brancos, mas possuem o dobro do tamanho e um pescoço comprido para conseguirem caçar. Um tuunbaq tem fome pela carne de suas vítimas, então… são espíritos muito, muito perigosos, saca?

Joe escutou tudo com a cabeça abaixada num misto de impaciência e tédio. A informação soava enfadonha aos seus ouvidos, mas o fato de não reagir nem a corrigir aliviou a garota.

— E por que um espírito como esse está tão distante do norte?

Pai e filha se entreolharam. Ela arriscou uma resposta, mas foi interrompida e calada por Joe:

— O mundo está maluco, Robert. Eu aposto que tem notado isso por aí. Não fazemos ideia do porquê um tuunbaq faz o que faz, principalmente ao migrar para outras regiões — Foi um arranjo de palavras pouco convincente. Sequer se deu ao luxo de fingir esforço. 

Insatisfeito, Robert discordou com uma risadinha.

— Se quiser dizer alguma coisa, só diga — Joe vociferou, impaciente. A voz era a exata representação de sua altura e de sua envergadura.

Robert não hesitou. Arranhou uma resposta, porém Kaya interviu: 

— Não é isso o que realmente importa, Robbie. O tuunbaq é mais forte que um urso adulto e consegue facilmente rasgar um homem ao meio. São espíritos que destruíram e dizimaram aldeias inteiras. As histórias contadas sobre as carnificinas realizadas por eles são diversas. Eu escuto essas histórias desde criança. Há quem diga que o mero presságio de um deles se aproximando foi responsável pelo sumiço em Anjikuni. O que você precisa entender é que três corpos são um número pequeno para um tuunbaq desperto. Ele não está vivendo em seu hábitat natural, caso contrário deixaria um rastro de morte muito maior. Este parece ser mais discreto e saber o que faz.

— Então ele se tornou racional?

— Todos os tuunbaqs são racionais — explicou Kaya. — A violência também é um tipo de racionalidade, principalmente quando deliberada. Eles são criaturas violentas em seu hábitat natural, ficam ainda mais irritadas quando são atacadas ou perseguidas. Este não sabe que estamos atrás dele, e está agindo estranho porque está conhecendo ambientes estranhos, como um caçador explorando o espaço. 

— Como o encontramos? 

Antes que a garota respondesse, o pai a cortou:

— Kaya não sentirá o tuunbaq a menos que estejam próximos um do outro. Isso significa que teremos de procurá-lo ao redor da cidade pelos próximos dias. 

— Acho que não precisaremos nos estender tanto assim — Robert finalmente abriu a bolsa que carregava consigo. Retirou um mapa pequeno e amarelado, o único que encontrou em suas incursões pela cidade. Estendeu o papel amassado sobre o capô do carro.

Kaya e Joe se aproximaram.

— Há três semanas, dois netos de fazendeiros locais foram encontrados em um celeiro abandonado. A princípio, a polícia achou que se tratasse do ataque de algum animal selvagem, então deixaram o caso passar. Esta foi a região onde encontraram os dois garotos — ele apontou para uma extensão alaranjada no mapa. — A cidade é minúscula, a população também, mas a região é grande e cercada por fazendas, a maioria não produz muito, a não ser para a própria subsistência e mercado local. Eles só plantam grãos na região. As criações de animais são pequenas, portanto teriam notado os ataques caso tivesse ocorrido algum. Mas não ocorreu, não aos animais que esperavam, pelo menos  — ele deslizou o dedo para não muito distante do ponto anterior, agora em uma área mais afastada da cidade e da propriedade abandonada. — Cinco dias depois, outro corpo foi encontrado: um velho bêbado estraçalhado no meio do próprio milharal. Ninguém deu importância. Entre as duas propriedades onde os corpos foram encontrados, existe isso aqui — ele apontou para um círculo grande e azulado, composto por desenhos industriais.  — Aqui fica uma fábrica abandonada de fertilizantes. É o único local que alguém se esconderia caso estivesse na cidade. É onde eu me esconderia.

— Bom, é uma aposta óbvia — Joe comentou, minimamente desdenhoso. — Pela proximidade, acha que ele está se abrigando na fábrica?

— Digam-me vocês — ele dobrou o mapa de volta. — Esse é um padrão comum de um tuunbaq?

Kaya procurou no olhar do pai a resposta para suas próprias dúvidas. Não recebeu nada além de um vazio absoluto. Sem respostas, Robert insistiu:

— O plano é de vocês. Como vamos detê-lo? 

Kaya ainda tinha a dúvida anterior na boca, palavras afogadas pelo repentino e inesperado questionamento feito por Robert. O silêncio incômodo que o próprio pai assumia também aumentava a sensação ruim: um rebuliço no estômago, como se os salgadinhos que comeu durante a viagem boiassem no suco gástrico e não se sentissem confortáveis, desejando trilhar o caminho inverso garganta acima. Ela precisou ignorar a estranha sensação quando o pai movimentou o queixo, exigindo dela uma nova explicação. A garota acatou à ordem:

— Um ritual. Eu preciso estar próxima do tuunbaq. Não próxima para ser atacada, mas apenas para senti-lo. Ele vai funcionar como uma espécie de… expurgo… quando estiver completo, o tuunbaq não vai desaparecer do mundo nem ser morto. Ao invés disso, retornará às planícies do norte e lá permanecerá. Foi o que fizemos com os dois anteriores.

— Ela fará o ritual e nós ficaremos de guarda — Joe acrescentou. — Acha que pode fazer isso?

— Claro — Robert respondeu.

Joe contornou o carro e abriu a porta. Antes que entrasse, Robert pigarreou baixo, com um sorriso azedo nos lábios:

— Ele provavelmente estará escondido na fábrica abandonada. Essa é a boa notícia.

— E a má notícia? – Surpresos, pai e filha perguntaram em uníssono.

— É que hoje é Halloween — ele apontou para a própria roupa, na altura do pescoço, onde o amito repousava por baixo da camisa de botões. Havia na voz uma empolgação tão verdadeira quanto sua autenticidade sacerdotal. — E os garotos da cidade darão uma festa.

Joe trincou os dentes e bateu a porta do carro ao entrar. Já Kaya reproduziu, mais enfática, o azedume de Robert. Ela abriu a porta de trás e sinalizou para que, feito uma donzela, ele entrasse no Crown Victoria. Quando o pai ligou o motor e deu partida, ela sussurrou, irônica:

— Ótimo. Vamos festejar.




II.

Improviso

 

Os faróis dos carros, unidos em uma só direção, faziam com que a pequena estrada perdesse seu caráter sombrio. As placas apagadas à beira do asfalto indicavam a instalação industrial a menos de 5 km. Nos tempos áureos, o trajeto havia sido utilizado por pesados caminhões que transportavam fertilizantes para os condados, cidades e estados vizinhos. Em circunstâncias normais, não seria fácil de encontrá-lo, sobretudo se seguissem as instruções do mapa amarelado, porém foi praticamente impossível de se perderem devido à noite agitada. Os carros seguiam para a antiga fábrica, alinhados qual procissão barulhenta. Os automóveis eram conduzidos com manobras irresponsáveis, velocidade excessiva e carrocerias abarrotadas de jovens erguendo bebidas em comemoração, gritando ao som de música alta. 

Não era, afinal, um segredo onde a festa aconteceria. Não que a polícia se importasse com um bando de jovens bebendo nem que esse fosse um evento extraordinário. Na rotina de um lugar como aquele, e para a mentalidade dos caipiras, a recreação significava alívio para as crianças. Que fossem crianças. Que fossem irresponsáveis. Que cometessem os mesmos abusos que os pais cometeram no passado e que vivenciassem os mesmos alaridos que seus filhos também vivenciariam no futuro.  

O Ford Crown Victoria chegou ao destino. Com um coro de buzinas eliminando o vazio da noite, lentamente se aproximaram de outro ruído mais distante que ganhou seus ouvidos: música eletrônica. Conforme tornou-se mais distinto, a estrada revelou o complexo abandonado à frente. Ela se alargou até um largo estacionamento de caminhões, onde centenas de carros e motocicletas estavam estacionados. O asfalto continuava até o alto muro da fábrica, agora acinzentado e parcialmente destruído. Um pequeno posto de guarda era a única barreira entre o exterior do estacionamento e o pátio interno do complexo. Os portões elétricos não existiam mais, apenas seus trilhos oxidados fundidos ao asfalto e ao concreto. Ao longo de certos pontos do muro, viam-se ainda pedaços isolados de arame enferrujado.

Se anteriormente o posto de gasolina e a galeria abandonados passavam a impressão de que a cidade não era habitada, o estacionamento afirmava o contrário. Ali existia vida, existia o som dos carros, existia a profusão de vozes, de gritos e de risadas; misturavam-se aos passos desconexos de adolescentes que ensaiavam sobre o chão um estilo de dança que os entregava uma espécie de cômico transe, um estado nirvânico incólume e alheio às mazelas do mundo, dos males que secavam, consumiam e entregavam sua cidade à seca, à escassez e à melancolia; que os afastava dos possíveis monstros que habitavam o interior de suas vidas e, acima de tudo, que lhes entregava uma segura ignorância do que um tuunbaq significava e do quão perto de suas vidas ele estava.

A maioria era composta de adolescentes que mal largaram as calças da infância. Seguravam copos de bebida alcoólica, cigarros, aglomeravam-se em pequenos grupos com capôs e porta-malas abertos, para a partilha de coisas mais fortes – não importava se doces mais fartos ou se travessuras mais divertidas. A outra metade era de adolescentes beirando a idade adulta. Vestiam-se com roupas excêntricas, fantasias que utilizaram no Halloween passado e usavam novamente neste, pois a cidade era pequena e ninguém haveria de se importar com máscaras e remendos repetidos. As roupas imitavam caveiras, fantasmas e corpos mutilados, maquiagens de esqueletos e santas muertes pintadas em tinta neon, além de imitações de zumbis mal feitos. Os rapazes traziam as parceiras sob os braços, cheerleaders com cicatrizes nos rostos e xarope de milho vermelho escorrendo pelos braços, pernas e pescoços, descendo com ênfase até os decotes para realçar o aumento de volume que provavelmente obtiveram no último verão. Havia também uma miríade de fantasias que caía de forma cafona e ridícula nos garotos (alguns deles sequer estavam fantasiados, trajavam apenas as jaquetas do time de futebol porque ou eram maduros demais para aquele tipo de festa ou possuíam pouca imaginação para quaisquer outros repertórios estilísticos) e uma sucessão de fantasias criativas nas garotas, a maioria, entretanto, também sensualizando as curvas, os seios e as pernas de cada uma delas. 

Além da vida que eclodia em aquecimento no estacionamento da fábrica, havia a música eletrônica que vinha do interior do complexo, muito além dos muros altos e dos arames carcomidos e inofensivos. O som era vibrante e frenético, pulsava como uma corrente sanguínea em pleno exercício físico: correndo, saltando, soprando, convidativa, como uma trombeta angelical aos ouvidos e desejos daqueles que estavam relegados à rotina do milho, à repetição de um estilo de vida que lhes era imposto pelo tempo parado e pelo abandono do progresso. 

Quando finalmente encontraram uma vaga para estacionar, Kaya bufou. Saiu do automóvel com muita relutância, revirando os olhos e encarando tudo com um visível desdém. Não eram, no entanto, o deboche e o senso comum de superioridade, típicos de sua faixa-etária, que a acometiam, mas a maneira como alguns hábitos neandertais podiam ainda estar presentes em sociedades brancas que tanto se vangloriavam de sofisticação social e biológica. Avistou rapazes passarem com duas, três ou (céus, como seria possível?) quatro garotas sob os braços ou os rodeando como satélites naturais, roncadores e gloriosos por seus feitos de grande vigor masculino. Já outros, os que não eram galãs nem líderes natos da escola, optavam por táticas diferentes para conquistá-las: irritavam-nas, corriam atrás delas com mãos livres de culpa ou de respeito, ousavam tocá-las sem permissão (é só brincadeira, afirmariam eles se questionados), ao que elas respondiam com encabulado escândalo e protestos silenciosos, mal sabendo que, de um jeito ou de outro, fossem os bonitões ou os fracassados encrenqueiros, os rapazes conseguiriam o que tanto almejavam para aquela noite – mesmo se com isso elas concordassem ou não. Talvez, naquela aparente e inofensiva noite de Halloween, para algumas daquelas garotas outro mal bem maior e mais sistemático que o tuunbaq estivesse a espreitá-las. Tão logo ele as devoraria. 

Joe e Robert abriram o porta-malas. Organizaram os materiais de que precisariam para o ritual e repassaram o plano. Kaya ficou entre eles, tentando reassumir a seriedade e o comprometimento. De repente, ela massageou o peito e respirou fundo antes de fazer um muxoxo. Concluiu que não somente o que via a incomodava, como também a súbita ânsia de vômito que denunciava a proximidade do tuunbaq. 

Um furgão estacionou ao lado deles. Quando as portas de trás se abriram, um grupo de cinco jovens caucasianos desceu fazendo barulho e berrando o que julgava ser um canto nativo americano. Além da cantoria, estavam fantasiados com cocares em penas vermelhas, azuis e brancas, além de listras pintadas à mão, e de maneira infantil, com as mesmas cores pelo corpo (os rapazes, sem camisa, já as garotas de roupas de banho). Um deles até carregava um arco e flecha de brinquedo infantil. Circularam o furgão em dança caricata, disseram palavras caricatas e em seguida dividiram garrafas de cerveja caricata. Passaram ao lado do Crown Victoria com tamanha empolgação que sequer perceberam as três figuras destoantes da noite que remexiam em materiais como ervas armazenadas em potes de vidro fechados e marcados com inscrições no idioma inuktitut, gravetos específicos e colhidos das tundras árticas do norte. A estranheza sequer foi notada, embora, ágeis, Robert e Joe se esforçassem em passar despercebidos. Kaya pronunciava ao pai o checklist de ingredientes necessários, enquanto ele balançava a cabeça e guardava tudo em uma bolsa semelhante à que Robert trazia consigo. Os materiais que possuíam em dobro, dividiram - ervas das quais Kaya frisou que carregassem em dobro para eventuais emergências. 

O grupo naturalmente oxigenado de nativos americanos já havia se afastado e quase atravessava o muro quando Maya percebeu a figura de pé atrás dela. Era uma das indígenas, ruiva como uma raposa e com olhos tão azuis quanto o mar. Parecia ter pouco mais de vinte anos e vinte centímetros a menos que Kaya, de modo que não conseguia descobrir o que de fato faziam.

— Ei, caras — chamou a garota. — Ei, meu bem, cê não vai chamar o padre pra vir com a gente? — E apontou para Robert — A menos que ele esteja com você — pretensiosa, ela recuou com as mãos em rendição.

Robert meneou a cabeça, discreto. Sorriu para a ruiva de maneira evasiva. Parada, ela não compreendeu o real significado da resposta.

— Qual é, vamos. Que tal, sei lá, tentar me evangelizar? Foi assim que vocês salvaram tantas almas perdidas por aqui, não foi? — Provocativa, ela olhava diretamente para ele.

— Pode apostar que ele vai. Ele vai, sim — Kaya respondeu, impaciente. — Por que você não segue e nos encontramos lá, meu bem? Eu o levo pro seu ritual de sacrifício e canibalismo. É o que vocês, nativos, fazem, não é? Ca-ni-ba-lis-mo.

— Canibalismo? — A ruivinha indígena riu, empolgada. — Ah, sim. Isso aí. Canibalismo. Te espero lá, padre.

Ela se afastou.

— Dá pra acreditar nessa gente? — Joe resmungou, concentrado acima de tudo na organização da bolsa.

— Vai se foder.

— Ei, querida. Poderíamos dar meia volta e ir embora. O tuunbaq nos faria um favor — Robert respondeu com uma risadinha seca nos lábios, a fim de animá-la.

Kaya o encarou, surpresa. Por fim sorriu. Antes que fechassem o porta-malas, ela se voltou para ele com um olhar inquisidor e brincalhão.

— Ei, Robbie. O que leva na sua bolsa?

— O necessário, por quê?

— Posso ver? — Ela o desafiou.

Sem compreender, ele abriu a bolsa e escancarou o conteúdo.

— O ritual é meu. Eu faço as exigências — ela apontou para o interior da bolsa e balançou a cabeça. — Sem armas de fogo, Robbie.

— O quê?

— Sem armas de fogo ou sem ritual.

— Você está falando sério?

A garota assentiu. 

A contragosto, mas em respeito, Robert retirou a shotgun e escondeu-a no porta malas. Em seguida, retirou cartuchos tanto do interior da bolsa quanto dos bolsos do sobretudo e da calça.  

— Viu só? Eu sabia que você seria um cara legal — comentou ela.

Incrédulo, mas sem se dobrar à irritação, Robert sorriu de volta com um balançar de ombros. O trio seguiu através do estacionamento e passaram pelos muros, onde foram cobrados com uma quantia irrisória. Depois dos muros, cruzaram o pátio principal do complexo. A área era extensa e continha mais de quatrocentos metros de extensão, espaço pelo qual caminharam ao lado de outros grupos. Além do pátio inicial, destacava-se o conjunto de construções que formava o antigo complexo de fertilizantes. Era composto por mais de cinco galpões, sustentados por gigantescas colunas nas bordas, como um Olimpo em dimensão, no entanto degenerado pela pouca criatividade arquitetônica de uma agroeconomia moderna. Os galpões maiores possuíam telhados de ferro que ousavam resistir ao tempo, oxidados pelas escassas temporadas chuvosas e açoitados pela insolação frequente, e eram sustentados por colunas dóricas, maciças de concreto, enquanto as dos galpões menores - que serviam de armazenamento e estocagem, quando a fábrica ainda funcionava - eram firmados por colunas de ferro não só nas sustentações laterais, como também nas internas, formando longos corredores de pilares. 

Por trás dos galpões, e, portanto, mais distantes que esses, talvez a 500m da entrada do pátio principal, erguiam-se prédios menores em largura e comprimento, porém mais altos, alcançando de quatro a cinco andares. Eles se fundiam ao céu escuro devido ao abandono e apresentavam contrastes devido à pintura branca e amarela não totalmente apagada pelas intempéries naturais. As escadas dispunham-se num sistema arquitetônico angular e davam acesso, pelas laterais, ao interior dos setores principais, onde os processos químicos antigamente ocorriam. Ao lado desses prédios maiores, torres cilíndricas de coloração acinzentada - com resquícios do amarelo apagado - erguiam-se ainda mais altas, interligadas ao prédio principal por gigantescos dutos que à época deveriam funcionar como artérias pulmonares para o processamento de fertilizantes. As escadarias estavam iluminadas pela presença de inúmeras pessoas, que lá de cima erguiam os braços e correspondiam ao som da música eletrônica. Mesmo de longe, no início do pátio principal, era possível ver as pulseiras e a maquiagem em neon brilhando em seus braços que se movimentavam em frenesi, além dos focos de luz que emitiam de lá, muito provavelmente com celulares ou lanternas. O som vinha de um dos galpões principais, o terceiro dos cinco.

Joe caminhava atrás de Kaya e Robert. Por ser um sujeito gigantesco, a posição era tão estratégica quanto corriqueira. Caso tivesse a vista de tudo, estaria precavido para quaisquer perigos. A atitude ficava duas vezes mais incisiva quando acompanhava a filha durante tais tarefas. A jovem xamã tossiu e massageou o peito, fez uma careta contida.

— Ei, Robbie. Posso fazer uma pergunta? 

 — Claro, querida.

— Você é, o quê, uma espécie de padre?

— Isto é só uma fantasia.

Tsc. Não é uma verdade.

— Não?

— Não. Eu sei de coisas… de algumas coisas — ela aquiesceu os ombros e a postura tornou-se menos defensiva e afrontosa. — Não é porque eu quero. Às vezes eu só sei, saca? Então, quando eu olho pra você, algumas imagens me surgem na mente.

— Quais imagens?

— São imagens antigas. Você parece mais jovem, junto com meus pais e meu avô. Há também um padre… um padre velho e careca… sei lá, é uma péssima descrição, porque todos os padres parecem carecas — ela fez uma pausa quando riram juntos. — Vejo todos vocês, e então vejo uma criança. Um menininho.

Robert semicerrou os olhos enquanto fitava os galpões à frente.

— Provavelmente são imagens de quando eu conheci sua família — ele respondeu.

— Você estava vestido de padre… quer dizer, você está vestido de padre agora. Isso significa que você sempre anda fantasiado?

— Eu não sou um padre. Poderia ter sido há muito tempo, quando padre Mallory me encontrou e, de certa forma, me recrutou para a missão santa dele. Mas não, eu nunca quis ser um. Uso essa roupa porque ela me permite entrar nos lugares sem que as pessoas questionem. Era assim quando eu trabalhava para Mallory. Funciona agora. Funciona sempre.

— Que trabalho você fazia?

— Exorcismos, no geral. Bom, padre Mallory os fazia, eu apenas aprendia. Ou pelo menos era o que eu achava que queria aprender.

— E o que você queria?

— Talvez encontrar um jeito de salvar minha alma. Se estivesse próximo de Deus, fazendo um serviço divino na Terra, talvez eu fosse perdoado. No geral, era isso o que eu fazia: o serviço sujo. Não ser um padre de verdade fazia com que eu pudesse quebrar certas regras da Igreja.

— Isso com certeza deve ser um pecado cruel.

— Com certeza.

— Padre Mallory te usou.

— Ele me deu a ilusão de que eu poderia ser salvo, caso fizesse seu trabalho santo de dedetização.  

— Isso te ajudou a lutar contra os seus demônios?

Robert riu, dessa vez trágico. As mãos apertaram a alça da bolsa atravessada no peito. Não durou mais que dois segundos. Ele não respondeu. 

— Você é mais bonitão que nos meus sonhos, sabia? — Admitiu Kaya.

Ele olhou para trás, desconfiado.

— Fica tranquilo, a última coisa com que meu pai se preocupa são garotos. E pra ser sincera, é a última coisa com a qual eu me importo também. E você é, tipo, um idoso.

Eles riram novamente. Kaya continuou:

— Meu pai está mais preocupado em ficar de guarda. E falar por mim. E me cortar. E fazer todas aquelas coisas chatas que… — Discretamente, Kaya olhou para trás com o tom de voz em confidência. — Na noite em que sonhei com você, eu mesma liguei. Eu mesma te chamei, mas ele tomou o telefone das minhas mãos e fez um questionário. Sabe, eu teria sido menos ríspida com você. Era madrugada. Quem recebe telefonemas esquisitos de madrugada? Desculpe por ter sido ele.

— Relaxa, querida.

Ela agradeceu.

— Sabe, eu vejo mais duas coisas quando olho para você.

— Quais?     

— Uma nuvem de fumaça. De cigarro. Quero dizer… eu não vejo a nuvem. Na verdade, eu sinto o cheiro e o peso da fumaça no ar. O gosto também fica na boca, o gosto de nicotina barata. Saca?

— É, faz todo sentido.

— Você fuma, Robbie?

— Não. Por isso faz todo sentido. Parabéns, até que você é uma boa xamã — lançou-lhe uma piscadela. 

Sem compreender, mas satisfeita por todas as sensações e visões fazerem sentido, ela agradeceu, confiante.

— E qual a segunda coisa? — Ele perguntou. 

Kaya hesitou com os lábios comprimidos. Soltou um suspiro e continuou:

— Eu vejo… asas. Três pares de asas. Elas estão batendo, tentando voar. Estão em chamas. Queimando. Eu sinto o calor quando imagino me aproximar, mas as brasas chamuscam os pelos do meu braço e meu rosto. Elas estão distantes, mas perto o suficiente pra que eu as veja. Não há sons, não há cheiros, mas a visão é assustadora. Quero dizer… cê sabe… eu já vi coisas esquisitas, mas asas em chamas que parecem prestes a te engolir se você continuar olhando? Isso é bizarro, Robbie.

Novamente, ele não respondeu.

Kaya massageou o peito. Súbito, uma ânsia de vômito subiu pela garganta, porém conseguiu controlar.

 — É ela, não é? Por quem você tem procurado?

Robert continuou com os olhos em frente. Os maxilares enrijeceram. Kaya cruzou os braços, sentiu-se estúpida pela intromissão, mas disfarçou. Quando o silêncio da resposta se alongou, ele trocou de assunto:

— Ei, querida. Quando eu perguntei o porquê o tuunbaq está tão longe das suas terras, seu pai mentiu. Sei que estou devolvendo um favor, mas será que pode me explicar? 

— Tuunbaqs são espíritos da natureza, e por isso eles sofrem ou são despertados quando ela é afetada. A resposta mais adequada seria a de que as terras estão morrendo. Há muita vida até mesmo nas regiões frias do norte. Nossas geleiras estão derretendo, nossas crenças estão se perdendo… um desequilíbrio acontece. Isso seria o bastante para que os tuunbaqs migrassem.

— Mas?

— Mas eu não acredito nisso, Robbie. Esse desequilíbrio ocorre desde que vocês puseram os pés em nossas terras, mataram nossos ancestrais, caçaram e extinguiram nossos animais e poluíram solo e água. Apesar disso, nunca houve uma migração de espíritos que nos abandonaram para caçá-los por vingança. Desequilíbrios geram desequilíbrios e a vingança é um deles. Por isso, em essência, tememos os tuunbaq, porque representam a vingança da deusa Sedna, mas mesmo ela nunca foi tão longe.

— No que você acredita?

— Eu não faço ideia. Não sei o que causou isso, mas é a minha responsabilidade consertar — nesse momento, a voz vacilou.

— Pelo fato de ser a xamã do seu povo?

— Pelo fato de que eu posso fazer alguma coisa, e farei — ela apontou com o queixo para todos em volta, com um discurso que era nobre, mas pouco auto convincente. — Eu não tenho empatia por essas pessoas. Poderíamos dar meia volta como você sugeriu, mas, cá entre nós… você não faria isso, não é? Não sabendo que elas estão em perigo, não sabendo que você tem o poder para fazer alguma coisa. É uma questão de equilíbrio, você só precisa restabelecê-lo. Há muito desequilíbrio no mundo, naturais e morais. Como um padre utilizando armas de fogo.

— Eu não sou padre.

— Tanto faz, Robbie. Armas de fogo ainda causam desequilíbrio. É moralmente perigoso e contraditório. Você pode salvar o mundo de outras formas, sabia? Você já pensou nisso? Hein? Deus não gosta desse tipo de coisa, padre Robbie.

Os dois riram. Ele balançou as mãos, convencido.    

Quando Joe aumentou os passos e se pôs entre eles, já estavam diante do terceiro galpão. Ali a música era ensurdecedora, o ambiente interno era iluminado apenas pelas luzes que piscavam e pulsavam no mesmo ritmo das batidas.

Sem avisos do próprio estômago, Kaya apoiou-se no braço do pai e se curvou para despejar no chão a porção de salgadinhos que consumiu há algumas horas a caminho da cidade. O vômito foi contínuo, demorado, e passou despercebido por aqueles que andavam ou dançavam em volta. Ela recebeu a ajuda dos dois. Joe segurou-lhe o rabo de cavalo enquanto Robert abaixou-se para ampará-la. Ao fim do refluxo, Kaya limpou a boca com as costas da mão e cuspiu. Levantou com dificuldade e apontou para o interior do galpão, onde as pessoas não passavam de borrões fantasiados com pontos luminosos nas mãos, roupas ou rostos.

— Aqui — disse ela, convicta. — Ele está aqui.

— O que fazemos? — Robert perguntou.

Foi Joe quem respondeu, cortando as palavras iniciais da filha:

— Procuramos um local fechado. E o resto deixamos com Kaya.

Robert assentiu e ajudou-a a entrar no galpão. Dessa vez, Joe seguiu na dianteira, cortando caminho por entre os adolescentes de forma abrupta, em busca de um lugar adequado. Aqueles que ousavam reclamar, ficavam, inúteis, pelo caminho, pois se amedrontavam ao constatarem o tamanho do sujeito. Constantemente ele olhava para trás, mirando os olhos da filha em busca de uma confirmação de que ela estava bem, ao que Kaya respondia com um balançar de queixo confiante. Em seguida ela olhava para Robert e desnudava a expressão de força e convicção, voltando a ser a garota de 15 anos que mal sabia como ser detentora de tamanha responsabilidade.

No fundo do galpão, um palco improvisado com uma pequena mesa comportava os controles onde o DJ controlava as batidas. Com a mão direita ele mexia em botões, subia e descia controles, enquanto revezava a mão esquerda entre os headphones na orelha e movimentos que guiavam as pessoas como um maestro a controlar sua orquestra. Acima dele, enroladas em hastes de metais, correntes caíam penduradas como trepadeiras, decoradas por jogos de luz e decoradas por caveiras, aranhas e morcegos. Também estavam penduradas em linha côncava na parede às costas dele, incandescentes e festivas. Usava o microfone para desafiar os garotos, cobrando deles mais empolgação e estava, dos pés à cabeça, pintado como um antigo guerreiro africano. Tal qual a ruiva dos indígenas de pele clara, o DJ, à distância, possuía na íris dos olhos todo o azul celeste que nem as tintas em néon conseguiam ofuscar.

Joe atravessou a pequena multidão ensandecida em dança e músicas esquisitas até a área noroeste do galpão, a mais próxima do palco em que o DJ ventriculava os dançantes. Havia um nicho de cinco portas, todas com livre acesso, já que não era incomum ver casais, trios ou grupos de pirralhos saírem e entrarem por elas. Ele escolheu a porta recém visitada e entrou no rastro de um casal.

O que julgavam ser banheiros era, na realidade, um escritório pequeno, talvez uma área de despensa, fechada e sem janelas. Lá dentro, três pequenos grupos estavam recolhidos em cantos diferentes. O casal recém-chegado mal teve tempo de escolher onde se acomodaria, pois Joe agarrou o garoto pelos ombros (um pirata com cigarro entre os lábios) e cochichou em seu ouvido um segredo tão repulsivo que fez com que, amedrontado, ele segurasse na mão da companheira e a puxasse para fora dali. Fez o mesmo com os demais grupos, e seja lá o que disse - as batidas não permitiriam escutá-lo nem se houvesse gritado -, alternando ou repetindo o arranjo do cochicho, expulsou a todos. Ao fim, ele ordenou que Robert guardasse a porta que ainda possuía trincos de ferro. 

Kaya sentou no chão com as pernas cruzadas e tomou a bolsa do pai. Dela, tirou dois lenços compridos e entregou a cada um deles. Sem estranhamento, Joe o tomou para si, enrolou no rosto e cobriu boca e nariz, como uma máscara hospitalar. Confuso, Robert imitou o homem. A seguir, tirou os gravetos e os amontoou de maneira ordenada, formando um quadrado improvisado. Fez o arranjo até que, juntos, formassem 15 centímetros de altura. Em seguida, ela enrolou outro pedaço de tecido surrado e manchado e dobrou-o enquanto pronunciava palavras baixas, quase em segredo, para enfim pousá-lo no chão, exatamente no centro da estrutura de gravetos. Da bolsa, também retirou uma garrafa de aguardente, encharcou o tecido, entornou a garrafa, mas não engoliu a bebida. Cuspiu-a sobre a madeira. Pôs a garrafa de lado e em seguida, em aparente ordem sistemática, abriu os recipientes. Um a um, despejou no centro, por sobre o tecido molhado, as ervas que ali haviam. Algumas delas salpicou quantidade irrisória, já em outras despejou o quíntuplo da quantidade anterior. Preparou o rito enquanto transformou as palavras sussurradas em mais forte e intensa cantoria no idioma inuktitut. Nesse ínterim, as batidas eletrônicas lá fora pareciam obedecer ao seu ritmo, mesmo que os remixes do DJ nada tivessem a ver, literal ou espiritualmente, com o ritual da xamã. Não estavam nem estariam, sequer por um fio tendencioso, correlacionados por algum estranho destino.

Pura coincidência, as batidas eletrônicas foram diminuindo, diminuindo, diminuindo. Já os cantos de Kaya aumentaram, tornaram-se melódicos, palavras de sua língua nativa que não só rimavam, como salientavam a voz rouca da xamã. Robert, encostado na porta, observava a tudo em silêncio, às vezes procurando o olhar de Joe para medir a reação dele, entretanto o homem tinha os olhos abaixados, como se nele pesasse uma penitência antiga, uma dolorosa obrigação de testemunhar, na filha, uma sina não desejada. Ou talvez fosse uma espécie de descrença de que tamanho poder caberia em uma garota tão imatura e que tentava, com esforço, assumir uma postura responsável, sobretudo quando perto dele.

Um desequilíbrio acontece, Robbie, Kaya havia dito. Nossas crenças estão se perdendo. 

Quando o DJ diminuiu sua batida ao quase silêncio-absoluto, Joe se aproximou do centro da sala e retirou uma caixa de fósforos do bolso. Utilizou a ponta da unha para acender a chama e o jogou no centro dos gravetos. Imediata e coincidentemente, o fogo se levantou, anormal, como se um dos ingredientes fosse a pólvora. O batuque eletrônico finalmente se reergueu do falso silêncio e a batida tornou-se ensurdecedora novamente, como se alimentada pela combustão violenta do fogo que lambeu os gravetos e se transformou em fogueira. O canto de Kaya era ininterrupto.

Os dois assistiram a fumaça preencher o ambiente fechado. 

— O que acontece agora? — Robert perguntou. 

— Agora o tuunbaq será atraído pelo calor das chamas e aprisionado por Kaya. Quando for totalmente capturado pela fumaça, nós abrimos a porta e ela se dissipará no ar, assim ele será levado de volta aos ares do norte. É um simples ritual de localização e captura, mas precisa ser realizado em um ambiente próximo de onde o tuunbaq estiver. Geralmente, dá certo.

— Geralmente?

Joe o analisou com desprezo, uma quase fúria, embora não fosse uma possibilidade que ele mesmo não considerasse, a julgar pela desconfiança na própria filha. Antes que pudesse responder, a porta atrás de Robert foi empurrada. Ele firmou as costas, porém um segundo empurrão foi dado. A maçaneta girou e ele pensou ter ouvido vozes irritadas lá fora, cujos donos fizeram outras duas tentativas antes de desistirem. Quando voltou a olhar para Joe, o homem não o olhava mais irritado. Ao invés disso, gritava, aterrorizado, a filha que subitamente havia parado de cantarolar. A fumaça ocultava sua silhueta, mas a voz havia sumido junto com as palavras em inuktitut. Antes que pudessem se aproximar, a garota engatinhou pelo chão até os pés do pai, e naquela mesma posição vomitou novamente. Não foi bílis nem salgadinho que a garota pôs para fora, mas uma substância pastosa e escura, um tom que se assemelhava ao marrom e ao amarelado do pus.

 — O que está fazendo? — Joe gritou ao agarrá-la pelos ombros. — Kaya, o que está fazendo? Continue o ritual!

Ela moveu a cabeça em negação e vomitou outra vez. Quando olhou para o pai, os olhos também estavam desesperados, porém num terror maior e absoluto de alguém que descobre uma verdade oculta, maldita. Ela arquejou palavras, tentou dizer algo, mas, novamente, vomitou. A cada vez que o estômago punha a pasta indesejada para fora, mais ela parecia escura e repulsiva. 

Joe continuou a gritar:

— Continue a porra do ritual!

Kaya não teve tempo de responder. A fumaça que tomou o interior do espaço fechado ficou cada vez mais densa e o único ponto luminoso ainda era a fogueira. Embora o fogo não dispusesse de muito para consumir além dos gravetos, das ervas e do tecido embebido em aguardente, a ausência de janelas tornou o ar cada vez mais rarefeito. Robert estava mais próximo da porta e já prestes a abri-la.

— Joe, acabou. Nós precisamos sair!

— Continue. O. Ritual!

Ela moveu a cabeça, negando com convicção. Robert já tinha as mãos no trinco quando um som mais forte e agudo berrou nos tímpanos de todos os três lá dentro. A fumaça se acumulou de maneira organizada e antinatural. Ao invés de espaçada, ela formou um conjunto quase sólido, depois regressou para o centro do fogo com estupidez e velocidade. Quando atingiu o centro da chama, um segundo som agudo ecoou. O som de um grito. O fogo se apagou e os gravetos que já estavam distorcidos saltaram para todos os lados da sala, como se chutados por uma força arteira. 

As batidas eletrônicas não cessaram. Porém tanto o fogo quanto a fumaça e qualquer outro vestígio de que segundos antes havia uma fogueira ali dentro, não mais existiam. Catatônico, assistindo à mais bruta decepção de sua vida, Joe ainda tinha as mãos nos braços da filha. Quando tornou a encará-la, berrou:

— Kaya, o que aconteceu aqui?! 

Trêmula, Kaya tossiu. Não havia mais vômito nem enjoo, entretanto, a ausência de mal-estar não era boa notícia. Aterrorizada pelo que viu enquanto ministrava o rito, Kaya afastou-se do pai e engatinhou até a parede. Os olhos amendoados estavam apagados, entristecidos. O ritual havia terminado – e malsucedido.

— Não era um tuunbaq — disse ela, incrédula. — Oh, deuses, não era um tuunbaq.

— O quê? Você… você ficou louca… O que está dizendo, Kaya?

— Eu senti duas coisas juntas, pai. Duas coisas juntas, costuradas em carne viva. Uma cirurgia horrenda. Um ritual proibido. Proibido — ela tossiu, com uma ânsia causada não pelo rebuliço do estômago, mas pela repulsa da memória. — Outro angakkuq. 

— Outro?!

— O que, maldito Inferno, tá acontecendo aqui? — Robert gritou. 

Nenhum deles respondeu. Joe olhou uma última vez para a filha antes de revirar a bolsa. Desesperado por não encontrar o que procurava, ele gritou em protesto. Levantou-se e foi até a porta. Exigiu que saísse da frente, mas Robert manteve o bloqueio.

— Precisamos tirá-la daqui, Joe. Você me disse isso. Eu não faço ideia do que está acontecendo, mas temos que tirá-la daqui, lembra?

 — É inútil. Ele já sabe que Kaya está aqui e virá atrás dela. Saia da porra da minha frente, Robert. 

— Que se foda, colega. Só estou cumprindo com o combinado: se o plano der errado, você tira Kaya daqui. Lembra?

A impaciência de Joe alcançou nível caricato. Ele grunhiu como um cão contrariado acostumado a rosnar, mas momentaneamente incapaz de atacar. Então olhou na direção de Kaya, que permaneceu encolhida no chão em uma expressão de pânico e que lhe parecia exagero – no fundo, embora não pronunciasse o que os dentes trincados expressavam, julgava ser pura covardia. Joe apanhou a bolsa que estava no chão e depois os punhos da filha, puxando-a para si e a obrigando a ficar de pé. Via nela apenas uma adolescente incapaz de assumir a responsabilidade que seus ancestrais, todos homens, tiveram durante séculos. Não houve a necessidade de palavras serem ditas ou de repreensões serem cuspidas, pois o olhar baixo e indireto já era suficiente para que Kaya soubesse – não eram as conclusões absorvidas pelo dom divinatório, não precisava ser uma xamã para perceber. Após tomar a dianteira e manter a filha protegida atrás de si, agindo como um escudo humano, o homem sinalizou para que Robert abrisse os trincos.

Ele não reagiu nem interferiu no abusivo dilema familiar, apenas liberou a porta, abrindo passagem para que Joe assumisse a vanguarda com a filha. As luzes inundaram o interior da sala e atingiu-lhes os olhos com violência, já que nos poucos minutos que permaneceram lá dentro as retinas já haviam se desabituado ao padrão pulsante das luzes. Os feixes de luz avermelhados eram disparados por refletores fixados às colunas e às paredes. Eles atiravam raios que ao tocarem o ambiente esfumaçado por outras máquinas davam a impressão de que eram palpáveis. Alguns desses feixes ficavam parados no ar, subindo ao teto e descendo ao chão vagarosamente, enquanto outros piscavam de forma ininterrupta, atingindo os olhos de Joe e dando a ele meio segundo de intenso clarão, como se a retina sofresse um momentâneo apagamento. Enfurecido, ele marchou como um farol ambulante cujo objetivo não era alertar os navios que se aproximavam do continente, mas atropelá-los com os próprios rochedos e a terra em movimento. Empurrou todos que estavam à frente e os arremessou para o lado, derrubando-os com estúpida facilidade. Robert seguiu o brutamontes e a garota enquanto as silhuetas deles ora desapareciam, ora apareciam com a alternância de luzes, em intervalos de um segundo ou menos que isso. 

Ao chegarem no meio do caminho, ouviram gritos generalizados. Como marola que se tornou onda, a confusão veio da entrada do galpão. Não foram todos os adolescentes que perceberam o alvoroço, não obstante alguns deles ouviam os gritos, ficavam alertas, mas em seguida voltavam ao estado de distração e transe iniciais. Outros se esticavam e ficavam na ponta dos pés, à procura da origem do alvoroço. O alarido ganhou força e o cume da marola tragou mais gritos para finalmente tornar-se uma onda arrebatadora: varreu pequenos espaços e abriu visão por entre os pequenos grupos que antes se aglomeravam. 

Como o mar se abrindo ante as forças de Moisés, os adolescentes se afastaram e do espaço e da visão abertos surgiu a figura encapuzada, cuja túnica caía até os pés e cobria todo o corpo. Ironicamente, não era uma fantasia. Havia uma sutileza verossímil naquelas vestes que um mero fantasiado jamais alcançaria. Eram carcomidas e puídas como as de um morador de rua, sofridas e genuínas como as de um velho leproso. Se homem ou mulher, não puderam distinguir a princípio, já que o rosto continha os traços de ambos os gêneros bem delimitados: a rigidez masculina das mandíbulas e a delicadeza no traço dos olhos, bochechas e nariz. Os cabelos visíveis no topo da testa eram grisalhos e profanos, em muito se assemelhavam e se fundiam à coloração da pele, com a branquidão devastadora dos desertos do norte, como a camuflagem dos predadores polares e que, por estar tão distante de seu hábitat natural, soava maldita e hipnotizante. Doentia. Anêmica. Apesar disso, a figura era toda humana: corpo, rosto, membros e estatura mediana. Alguns pontos da face, a exemplo das têmporas, bochecha esquerda e todo o contorno dos lábios, estavam enegrecidos por necrose ou lepra avançada. Os olhos, cobertos por olheiras, eram amarelos e ofuscantes, como os dos crocodilos flagrados na escuridão.

O angakkuq, o xamã-feiticeiro, arregaçou um sádico sorriso quando os avistou. Kaya e ele entreolharam-se por um breve deslizar de segundos e isso foi suficiente para que a garota se recolhesse às costas do pai, tentando escapar da mera visão profanadora do inimigo. Ele, por sua vez, pareceu atiçado, excitado por encontrar sua semelhante, uma garota tão jovem e que ainda não degustara dos prazeres de se cruzar o limite, de se fundir, de se costurar, de formar um elo mágico e absurdo com a natureza. 

Enérgico pela iminência do encontro – e em parte enfurecido pela garota ousar atingi-lo com o ritual –, o angakkuq permaneceu imóvel, fitando os três que o encaravam a uma distância de quase dez metros. As batidas do DJ ainda preenchiam a noite e várias eram as pessoas que não se deram conta nem mergulharam na razão que levou as outras a gritarem e se desesperarem. Como se a festa ainda estivesse longe de seu ápice, lentamente o angakkuq levou as mãos unidas até a boca, que se revelaram nuas e pegajosas, banhadas por um líquido escuro que escorria até os cotovelos. Entre os dedos, revelou o que com orgulho quis mostrar a Kaya: um antebraço esmigalhado, cuja musculatura e os ossos estavam expostos. Ele mordeu o pedaço de carne humana com demasiado e provocativo prazer. Mastigou vagarosamente e, em seguida, como um gato entediado com a presa morta, arremessou-o no chão.

Outros gritos vieram, principalmente daqueles adolescentes que estavam mais próximos do xamã-feiticeiro. Dentre eles, estava o grupo de indígenas caucasianos. Desesperados, partiram em debandada, alguns pelo lado esquerdo do galpão, outros pelo lado direito. O feiticeiro caminhou vagaroso, tão atento aos coadjuvantes apavorados quanto a Joe, Robert e Kaya – acima de tudo a ela. Quando uma das indígenas se afastou o suficiente para não mais ser agarrada, o angakkuq localizou-a com o canto dos olhos. A banal suposição de julgarem que poderiam escapar era em si uma afronta, e por punição, usou-a de exemplo. Ele moveu o pescoço em gesto sinuoso, como alguém prestes a estalar os ossos. No entanto, se de ossos era composta aquela área de seu corpo, eles eram anômalos e alienígenas diante da anatomia e da compreensão humanas, pois pareceu expandi-lo como as serpentes abrindo as mandíbulas, esticando as articulações até que mostrassem seu verdadeiro alcance. Entretanto, não literalmente. Não fisicamente. Translúcido, não palpável, um longo pescoço surgiu no ar, uma projeção ilusória e animalesca de um urso polar deficiente, uma formação maldita e herética, um desenho propositalmente mal projetado pela natureza. Como um truque de mágica, o pescoço quimérico alongou-se até chegar às costas da garota, a mesma ruiva que antes sugeriu canibalizar Robert, o padre. Ela foi pega no meio da corrida e parou como se houvesse se chocado contra um muro invisível. Súbito, foi fisgada pelos ombros, em um golpe que levou frações de segundos e que a arrastou por vários metros até os pés do xamã-feiticeiro. 

Quando, desnorteada e anestesiada, ela parou diante dele, o angakkuq se abaixou e cravou a boca no pescoço da garota. Ela revirou os olhos, incapaz de gritar ou de protestar, sequer tendo a noção do que ceifava sua vida, qual mosquito subitamente esmagado. Em segundos, a massa corporal de seu corpo lentamente se esvaiu como um balão furado que perde o ar interno. A coloração da pele - que não era lá muito corada - foi apagada até que se transformasse na pálida dos cadáveres. No meio do processo, o cocar com as cores vermelha, azul e branca caiu de sua cabeça. Findada a inclemente auto exibição, o Angakkuq arreganhou dentes pútridos e sorridentes e esmagou o acessório com os pés, direcionando o recado a Kaya.

— Ele ainda é humano, portanto ainda morre como um humano. Entendeu? — Joe gritou por sobre os próprios ombros na direção de Robert ao constatar que o angakkuq não lhes permitiria a fuga.

Por hábito, Robert apalpou os bolsos. Apalpou também as costas, onde geralmente costumava pendurar a shotgun embaixo do braço ou do sobretudo.

— Maldito Inferno! — Ele gritou.

Aqueles que ainda estavam ao redor possuíam em seus rostos um misto de diversão e espanto, muitos ainda incrédulos e eufóricos pela apresentação fidedigna de um ataque sobrenatural. Alguns vibravam pela suposta realização admirável de efeitos especiais práticos, os quais imitavam com perfeição a viscosidade e o odor metálico do sangue humano, além da textura e da consistência da carne. Já outros, bêbados ou sob efeitos de outras drogas - como a lerdeza natural e um senso de autopreservação desgastado e ruído -, não se deram conta de que o ataque não compunha parte da festa. Ainda com os copos nas mãos ou estreitando os olhos para admirarem a maquiagem ultrarrealista da ruiva estirada no chão, eles se aproximaram do antebraço em posse de celulares, filmando o show gore com diversão. Foram esses que, destemidos e inconsequentes, tiveram o mesmo destino que a garota: pescados pelo pescoço animalesco e alongado do angakkuq, que se materializava e desvanecia seguindo as batidas do DJ. Do momento em que foram puxados pelo pescoço fantasmagórico ao que foram sugados pela boca infecta e física do angakkuq, os ataques levaram menos de meio minuto.

A música não parou. Sem olhar para trás, sem avisos, alertas ou exigências, Joe soltou o punho da filha e, hesitante, partiu para cima do angakkuq. De repente, o sujeito com quase dois metros de altura parecia inofensivo e inútil frente à ameaça sobrenatural. Robert segurou a garota pelos ombros e gritou mais forte que a música incessante:

— Se afaste, querida! — Ele apontou para a direção do palco, onde um número considerável de pessoas havia recuado e tentava se proteger. — Vai!

Kaya acatou a ordem com rapidez. O instinto de autopreservação, ausente nos adolescentes espalhados pelo chão, era bombeado no corpo da garota pela adrenalina. Ela correu e se juntou à pequena multidão que não compreendia o que assistia.

Quando Joe alcançou o xamã-feiticeiro, agarrou-o pelo pescoço. Fácil demais. Ele permaneceu com o sorriso arregaçado enquanto o homem cuspiu sobre ele xingamentos e gritos ensandecidos. Sádico e inerte, apreciando a agressão, o angakkuq deliciou-se com a fúria do pai. Acima de tudo, não tirou os olhos de Kaya. Mesmo à distância, aquele olhar amarelado de pupilas abissais fitou-lhe através da carne e atravessou-lhe a alma com sede, fome e perversidade.

Quando Robert se posicionou ao lado deles, viu em Joe uma fúria desmedida e finalmente compreendeu o descontrole do homem. Ele projetava no angakkuq as duas possibilidades que dispunha a vida de Kaya: a da morte ou a da corrupção, ambas embasadas na crença de que a filha não seria capaz de seguir o dom que lhe fora destinado. Um desequilíbrio. De repente, o punho direito de Joe se elevou e desceu sobre a face do feiticeiro, que recebeu o golpe sem perder o sorriso profano. No terceiro soco, o xamã corrompido tinha sangue e uma substância preta escorrendo pelas laterais da boca. Não exprimiu dor. Não exprimiu incômodo.

— A pequena angakkuq será minha. Nós seremos três e nós seremos um. O tuppilat será cumprido — disse ele, num sussurro que adentrou os ouvidos de todos no galpão e na área industrial abandonada, palavras que se arrastaram ao interior de suas cabeças como lesmas, arrastando-se vagarosamente, deixando tons, cheiros e gostos obscenos por onde passavam.

O angakkuq finalmente moveu as mãos e levou-as ao pescoço de Joe. O homem não era mais amedrontador ou forte nem a altura empregou-lhe caráter agressivo. Súbito, tornou-se mero corpo maleável sob o toque do xamã, que sussurrou palavras em um perdido e obscuro inuktitut, obtido somente pelo conhecimento proibido de xamãs do norte. Kaya, à distância, reconheceu-as – não pela prática nem pelos estudos, mas pelo medo, pela repulsa, pelo terror de saber que seu pai tão breve estaria perdido diante delas. Ela gritou em desespero e antes que os olhos do angakkuq ganhassem brilho e uma espiral de profanação girasse dentro de sua boca, prestes a sugar o pai, Robert o agarrou pela cintura e os arremessou ao chão, separando-os.

Caído, Joe empurrou Robert e apontou na direção da filha:

— Tire-a daqui!

Kaya deu outro grito a tempo de Robert presenciar o feiticeiro agarrar os pés de Joe e puxá-lo com a fúria de um jaguar. O homem desferiu uma série de pisões com o pé livre, todos no rosto do xamã, que, por ainda ser em parte humano, recuou devido à dor. Apesar da altura mediana e muito menor que Joe, o angakkuq compensava com força física e mágica. Os dois se engalfinharam no chão. Joe desferindo golpes certeiros e potentes nas costelas e ouvidos do xamã, enquanto este tentava se reorientar e abrir a boca, tentando, em vão, fazer com que a espiral sugasse a alma de Joe.

Robert atravessou o galpão até Kaya. A música demoníaca ainda massacrava-lhe os ouvidos. Não havia quem a interrompesse nem quem a parasse, pois o DJ havia sido o primeiro a fugir, escapando na noite escura como um destemido e branquelo guerreiro africano. Sem quaisquer intenções, acabou liderando uma pequena multidão que se esgueirou pelas laterais do galpão, temerosa em ser pescada pelo angakkuq. Apenas o ruído atroz e eletrônico fez companhia aos quatro protagonistas. 

— Vamos embora daqui, Kaya. Agora!

Robert a agarrou pelos braços, mas a garota estancou em negação.

— Ele vai matá-lo, Robert. Ele vai matar o meu pai. Ele vai matá-lo. O angakkuq se fundiu ao tuunbaq e agora quer se fundir a mim. Por isso eu poderia senti-lo e por isso eu não descobri a verdade. Por isso o ritual deu errado… por isso…  — Kaya tagarelou sem pausas. Frenética e desesperada. Os olhos amendoados revezando entre Robert, o pai e o feiticeiro. — Ele vai criar um tuupilat, vai fazer um ritual proibido. Outro ritual proibido. De novo. Comigo. Ele vai matá-lo, Robert. Ele vai matar o meu pai. Ele vai matar a todos nós.

Robert tentou puxá-la, mas a garota resistiu e se debateu, arrastou os pés para trás como uma criança chorosa ao ser levada embora do playground. Ele forçou as mãos, consciente do ato a ponto de não a machucar. Arrastá-la à força, carregá-la nos ombros como uma Sabina, uma donzela em perigo ou qualquer outra obscenidade moral seria fácil, mas o ato exigiria força e brusquidão. Acima de tudo, o ato exigiria certeza e subserviência às palavras de Joe.

— Kaya, nós temos que ir.

— Não! — Ela gritou e desferiu um golpe no rosto se Robert, que riscou-lhe a pele da têmpora ao queixo esquerdo. 

Ele a soltou para levar as mãos ao rosto. Irritado, gritou. Não aguentava mais aquela música. Não aguentava mais aquela noite. Não aguentava mais aqueles rituais e palavras e criaturas e detalhes que ninguém o explicava até antes de tudo ir para o Inferno.

A garota correu, mas ele a agarrou pela cintura. Quando ousou levantá-la, ouviram o berro de Joe. O homem havia sido arremessado contra uma das colunas de concreto, onde bateu como um boneco sem peso e pousou no chão, imóvel. Kaya gritou. Tentou por instinto ir até o pai para socorrê-lo e foi contida por Robert. Do outro lado do galpão, o angakkuq se recompôs do duelo, o capuz estava caído e revelando a totalidade do rosto e da cabeça. A lateral da cabeça exibia regiões onde o cabelo não crescia, uma careca com escaras apodrecidas. Mas a obscenidade estava na semelhança antinatural ao urso polar, principalmente na parte de trás do crânio, que se fundia às costas num disforme e musculoso torso. A brancura predatória pareceu ainda mais anômala e sobrenatural, sobretudo em alguém com traços inuítes. De pé, ele sorriu e caminhou na direção deles.

Encurralado, Robert a agarrou pelos pulsos e correu de volta para a área noroeste do galpão. Checou cada uma das demais salas em busca de uma janela ou duto de ventilação, entretanto todas possuíam a mesma planta. Sem saídas. Por fim, retornaram à sala onde o fracassado ritual foi realizado. Ele fechou a porta com os trincos. 

— Maldito inferno, garota! Porra! Eu não sou seu inimigo, eu só tô querendo ajudar — apontou para o próprio rosto avermelhado pelas marcas de unha. — Que merda! Que Inferno de música! Que Inferno de noite!

— Foi mal, Robbie. Eu não fiz de propósito. Eu…

Robert passou as mãos pelo cabelo, assentiu devagar e esticou as mãos, em súplica. Levou alguns segundos para se recuperar – breves, urgentes. Não possuía o luxo do tempo.

— Não precisa se desculpar, querida — ele respirou fundo e aproximou-se dela, compassivo. — Me desculpe — pousou as mãos na lateral de seus ombros em sinal de trégua.

Ele retirou o sobretudo e enrolou a roupa em um canto da sala. Desabotoou a camisa até o peito, arrancou o amito por debaixo dela e amassou o acessório, jogando-o no chão como quem desiste de uma piada de mal gosto. Inferno de fantasia, Inferno de noite.

Em tom urgente, ele se voltou para Kaya:

— Escute, garota. Aquele pescoçudo esquisito está vindo até aqui e, que Deus me perdoe por isso, mas eu vou dar ouvidos a você e não ao estúpido do seu pai. Nenhum dos planos dele deu certo até agora. Nenhum — ele engoliu em seco e se surpreendeu quando recebeu uma leve confirmação em resposta. Apesar da adrenalina e da ameaça, Kaya estava mais recomposta. — Então, preste atenção. Você é a xamã aqui, você é a única que pode chutar o rabo daquele desgraçado pescoçudo. Por isso, pergunto: o que nós fazemos agora? 

Kaya absorveu as palavras com calma e piscou rápido, a fim de acatar ao pedido com rapidez.

— Existe um ritual.

— Outro? Ótimo. Continue.

— Antigos sacerdotes o realizavam, certo?

— Certo — ele a acompanhou, embora não fizesse a mínima ideia ao que a garota se referia.

— Eles faziam parte de uma ordem de sacerdotes guerreiros… obedeciam aos antigos angakkuqs, aos antigos xamãs. Eles…

— Querida — Robert a interrompeu com um sorriso envergonhado. — É um pouco tarde para explicações. Você consegue realizar o ritual? 

A princípio hesitante, Kaya engoliu em seco. Depois se recompôs e, convicta, balançou a cabeça afirmativamente.

— Sim.

— Perfeito.

— Mas você tem que prendê-lo. Ele precisa estar preso ou imóvel… eu preciso que ele fique parado…

Robert concordou com um movimento de cabeça. Não pareceu surpreso. Já enfrentara condições piores em percalços mais infernais. O coração martelava como em cada noite ou em cada ritual de improviso que havia realizado ou ajudado alguém a realizar, e a pulsação acelerada no pulso, o nervosismo e o medo significavam que ainda estava vivo, que ainda estava quente e respirando. E o fato de ainda respirar implicava que lutaria para sair dali.

A bolsa que carregava consigo estava agora no chão. Ele a revirou, esvaziou-a daquilo que não precisaria e dos ingredientes pertencentes ao ritual falho, pegou a garrafa de aguardente. Deu um longo e violento trago. Ofereceu a bebida a Kaya.

Ela negou, desconcertada.

— A não ser que não seja exigência para o seu ritual, você vai precisar. Beba.

Hesitante, ela bebeu com um trago envergonhado e fraco. Sentiu o líquido queimar a garganta e fez uma careta engraçada. Depois, encorajada pela cena do pai desacordado ou morto no chão, bebeu mais três goles.

Robert sorriu e se levantou. Dobrou as mangas da camisa até os cotovelos, segurou os trincos e respirou fundo.

— Preparada?

Ele é apenas um homem, né? — Ela repetiu as palavras do pai. Ficou de pé e o aguardou. — Depois que eu terminar o ritual, você… você precisa… desfazer o desequilíbrio. Você tem que… tem que…

Robert compreendeu. E lembrou, acima de tudo, o porquê Kaya ainda era apenas uma garota.

— Relaxa, querida. Eu faço o resto — respondeu ele, friamente.

Então puxou os trincos e a porta se abriu.

 

III.

O canto na garganta

 

O galpão estava completamente esvaziado. No centro dele, a menos de quinze metros de Kaya, o angakkuq ficou parado, aguardando com curiosidade. Ele possuía expressão compenetrada e sádica, os olhos amarelados não desviavam da garota. A mesma sede escorria-lhe pelo canto da boca junto com o sangue escuro das vítimas mais o líquido enegrecido. Era o que inchava seus órgãos, era o que consumia pequenas regiões da esclerótica e o que parecia consumir sua pele, nos pontos em que a lepra maldita necrosava a carne.

Robert subiu no palco. A música eletrônica era em grande parte barulho ritmado que esmagava os ouvidos. Poucas delas continham letras ou cantores. A presença de vozes não era humana e sim metálica, robotizada. Quando eram humanas, cumpriam o simples papel de chamar um público agora inexistente, lançando a ele frases que o motiva a pular, a dançar ou a dizer que o livro, o cachorro, a garota e todo mundo estavam sobre a mesa.

— Que se foda esse Inferno — Robert sussurrou e quebrou a mesa onde antes o DJ controlava a noite. Ele esmigalhou cada botão e controle, certificou-se de que a música pararia assim que tivesse transformado tudo em meros fragmentos espalhados no chão. Fez aquilo por pura satisfação. Acima de tudo, fez aquilo para chamar atenção. Quando a música parou de preencher a noite e apenas os flashes coloridos de luz tomaram o galpão, o xamã-feiticeiro olhou para ele, curioso. 

Robert arrancou uma das correntes presas na parede. Brilhante e enrolada num jogo de luz, ela pareceu quase infantil, um chicote estranho e caricato. Em posse do que dela, desceu do palco e a enrolou no pulso direito, com a mão esquerda segurou a outra extremidade, deixando-a pendurada num semiarco entre os dois braços. Kaya ficou para trás, na beira do palco, aguardando pelo plano improvisado Robert se aproximou do angakkuq, mantendo os dois xamãs a uma longa distância. 

Cauteloso, balançava e rodopiava a corrente no espaço entre as mãos. O metal reluzia nas luzes da noite. O feiticeiro sorriu com deboche, observando o homem que se aproximava no mesmo ritmo espaçado dos flashes, ora vermelho, ora azul, ora verde. Ao contrário dos adolescentes capturados, Robert sabia o que esperar do feiticeiro. Ainda assim, aproximou-se mais que qualquer um deles, carregando um sorrisinho no canto dos lábios que estava ali em resposta ao deboche do xamã. Que partilhassem da mesma animação.

— Robert — anunciou o xamã.

— Pescoçudo.

— Seu lugar não é aqui — ele levantou um dos braços e Robert recuou por reflexo, assustado. O feiticeiro riu e continuou o movimento, apontando para o leste. — O que procura não está aqui esta noite. Seu pecado está longe demais de você. 

Robert ignorou. Balançava a corrente com cautela.

— Eu posso vê-la. Sei onde ela está. É o que você quer, não é? Informação.

A corrente cessou o movimento. Apesar disso, os olhos escuros de Robert não vacilaram, sequer pestanejaram. Se o movimento o entregou, as expressões no rosto não. 

 — Você está mentindo.

— Poderia, sim. Mas não estou. Veja — ele anunciou novamente numa voz gutural que ressoou nos ouvidos da noite. Palavras arrastando-se pelo cérebro, invadindo os ouvidos sem pedir permissão, ecoando nos confins da mente como um vírus, como um câncer intruso. — Eu sou aquilo que Kaya e todos os xamãs antes de mim temiam. Eu fiz o que poucos deles tiveram coragem, pois quebrei as regras, preceitos que nos tornam pequenos, limitados. Regras que mantêm os deuses no lugar de deuses e humanos inebriados por falsas esperanças. Eu vejo o que os animais veem. Sinto o que eles sentem. Farejo os aromas desconhecidos e imperceptíveis. Eu vejo verdades escondidas — os lábios se dobraram num pequeno deleite. — Eu me tornei apenas um com o tuunbaq. Dobrei a vontade da deusa Sedna. Eu vejo quem você é, Robert Werle. Vejo através de seu sorriso manso e de sua polidez contida. Eu vejo o que você fez. Eu vejo o que você quer. Eu a vejo: vagando por entre os planos com asas em chamas. Ela está em agonia. E ela precisa de você — o braço que continuava estendido apontou com mais ênfase para o leste e para muito além das paredes e dos muros da fábrica, para muito além dos limites do condado, da cidade ou do estado. Para muito, muito além de onde os ventos do outono sopravam. 

A corrente caiu. A ponta arrastou-se no chão.

— Mentiroso.

O angakkuq sorriu e abaixou o braço. Inclinou-se na ponta dos pés para alcançar Kaya com o olhar num gesto teatral e dramático. Desta vez recuou, embora a mera presença de Robert não significasse o menor obstáculo.  Agia assim por pura diversão. Agia assim, acima de tudo, porque podia. Seus rituais, suas exigências. Levianos caprichos.

— Deixe-me passar. Deixe-me absorver Kaya e dar a ela um vislumbre da fusão e da comunhão. Deixe-me passar e a informação sobre Evangeline será sua.

Robert rosnou à mera menção ao nome, furioso por escutá-lo ser proferido de uma boca não merecedora dele. Nomes tinham poder. Nomes invocavam forças bem como poderiam ser evocados. Em bocas erradas, alguns nomes tornavam-se heréticos, esvaziados e amaldiçoados.

— Entregue-me a garota. Façamos isto de forma pacífica, Robert.

— Por que simplesmente não passa por mim? — Ele fez um gesto convidativo, arrastando a ponta da corrente pelo chão. — Você não precisa da minha concessão. Só passe.

O angakkuq riu. Os dentes eram um conjunto repulsivo de muco preto e escorbuto avançado.

— Porque não seria divertido. Seria apenas… violento, como apanhar uma criança apavorada entre os dentes — inclinou a cabeça para referenciar os corpos no chão. — O tuunbaq fica faminto e o preço de sua estadia é o alimento. Eu o mantenho aqui, eu o sustento e ele me retribui — estreitou os olhos, olhando-o de maneira tão profunda que o desconforto foi imediato. — Todos temos o hábito de trocar favores, não é?

A corrente rangeu no chão.

— Eu não sou um selvagem, Robert. Nós dois não somos selvagens, só não podemos fugir de nossos compromissos diante do inevitável. E o inevitável, neste caso, é uma informação. Quer ou não quer saber onde ela está?

Por segurança, Robert recuou a fim de olhar para trás. Apesar da distância, Kaya também escutava o que o xamã-feiticeiro dizia, graças ao eco e à intromissão com que a voz desumana invadia a mente.

— Prove — Robert afrouxou a corrente na mão.

O angakkuq riu, vitorioso. Apontou outra vez para o leste, convicto que a ambição de Robert era tão parecida quanto a sua. Xamãs enxergavam coisas. Sabiam de coisas. E sobre elas tinham poder.

— Quando o demônio bater à porta, um doce coração o abraçará. Só então asas em chamas você vai encontrar — o dedo indicador em riste insistiu em ser apontado. — Leste, Robert Werle. Leste.

Robert seguiu com o olhar na direção apontada. Brevemente, perdeu-se nela.

— Já basta de sangue por hoje. Tuunbaqs são criaturas violentas e indiscretas. Deixam rastros pelo caminho. Chega de tanta confusão, não concorda? — Ele caminhou por entre os corpos de almas sugadas. — Deixe-me passar. Entregue-me a garota. Não seria a primeira vez que você faz isso, não é? — E sorriu em posse da acusação.

Mais uma vez, Robert ousou olhar para trás com o canto dos olhos. Kaya estava novamente hesitante e amedrontada, a esperança arrancada de sua posse, temerosa que aceitasse a proposta, já que parecia inevitavelmente propenso a isso. A ingenuidade com que o interpretou se desfez e a verdade exposta pelo angakkuq fez com que finalmente descobrisse coisas que antes não enxergava: quem Robert de fato era. Em posse da revelação, olhando o homem que afrouxava cada vez mais a corrente, viu o menininho de 13 anos atrás, o quase-sacrifício a que padre Mallory e o jovem Robert o submeteram, viu também trocas e concessões que ele havia realizado ao longo da estrada, sozinho, sem testemunhas, sem amigos, tudo com o objetivo de perseguir tais asas em chamas. 

Kaya planejou correr pelas laterais como todos os outros fizeram, mas por quanto tempo conseguiria escapar do angakkuq? Até onde ele a perseguiria, agora que farejara o aroma de sua alma e descobrira nela mais uma alma em potencial para sugar e se unir, no ritual proibido para se tornar um tupilat nunca antes visto? Quando a encontrasse, quando devorasse sua essência e dela tivesse posse, ambas as almas dos xamãs seriam costuradas ao espírito do tuunbaq. Tornar-se-iam um tuupilat poderoso. O mais profano.

Em um suspiro, Robert balançou a cabeça afirmativamente e abriu espaço para o angakkuq. Triunfante, o xamã-feiticeiro passou por ele. Na face, uma expressão altiva de vitória. Robert se afastou. Não ousou olhar para Kaya. Não quis encará-la. Ao invés disso, enrolou a corrente de volta na mão e no punho, três longas voltas que fizeram a ponta do metal recuar e ficar na altura de seu joelho. Ele impulsionou o braço para trás e projetou o metal em uma explosão que nem o próprio angakkuq esperava. A extremidade alcançou a lateral da cabeça do feiticeiro, atingindo-o o flanco esquerdo da cabeça até os maxilares. Ele caiu, desnorteado.

Robert partiu para cima do angakkuq assim que ele despencou no chão. Imobilizou-o entre as pernas e usou as duas mãos com a potência de um touro, desferindo uma sequência de golpes no rosto decrépito do xamã profano, enquanto o sangue da própria vítima misturava-se ao líquido preto que dele escorria e ao sangue do próprio agressor, pois tinha a pele dos nós dos dedos cortada quando lhe rachava os dentes. Robert o acertou com a mão esquerda livre e a direita enrolada na corrente, esmagando as bochechas do feiticeiro como um soco inglês improvisado. 

Em resposta, o angakkuq agarrou o agressor pela lateral dos cabelos, arrancando um emaranhado junto com sangue e o arremessou para o lado. Ergueu-se sobre os joelhos, tonto, furioso por ter sido pego de surpresa em dissimulada traição. Cambaleou até Robert e o impediu de se levantar, usando a força descomunal do tuunbaq fundido ao seu corpo. Ele desferiu um tapa com as costas das mãos. Agora de pé e recuperado, rugiu com a voz e a garganta do espírito-animal, projetou o pescoço quimérico sob os feixes de luzes coloridas. O espírito do tuunbaq cravou a boca na perna de Robert, que urrou quando sentiu os dentes afundarem na carne. Ele girou uma só vez sobre os próprios pés e arremessou a presa no ar. Ao contrário de Joe, que ainda permanecia no chão, morto ou desacordado, Robert passou a menos de um metro de uma das colunas de concreto.

Desnorteado, manco, tentou levantar. Ao contrário do angakkuq, era todo e apenas humano, sem atribuições divinas ou espirituais que lhe conferissem vantagens. Robert desistiu de levantar quando percebeu que o feiticeiro vinha em sua direção. Graças ao silêncio no galpão, pôde prever e contar os passos do xamã à medida em que se aproximava. Aguardou com os olhos comprimidos enquanto a cabeça parava de girar. Quando, finalmente, o angakkuq o alcançou, Robert já estava sobre os joelhos, a tempo de segurar o chute que o feiticeiro o desferiu. Ao invés de ser lançado, Robert suportou o golpe, utilizando o próprio tronco e o tórax para conter a fúria animalesca do chute. Preso à perna do angakkuq, Robert girou sobre os pés e inverteu a posição, derrubando-os de volta ao chão.

Com o xamã embaixo dele, Robert recorreu mais uma vez à chuva de socos. Não o atingiu de maneira transversal nas bochechas, têmporas ou canto dos lábios. Ao invés disso, desceu os punhos como martelos afundando pregos na madeira. Os pregos eram os dentes. Já a madeira era o fundo da garganta, por onde os incisivos, caninos, molares e pré-molares que não saltavam para fora da boca caíam e o engasgavam. Enquanto grunhia, o angakkuq utilizava as unhas para afundar nos ombros de Robert e arrancar não somente a roupa, como também lascas de pele que saíram com esguichos de sangue. O golpe fez com que gritasse, mas a cada grito outra martelada de punhos era empregada. O angakkuq continuou a desesperada reação não só pelos ombros, como também pelo peito e pelas costelas de Robert.

Com a pele rasgada, ele desistiu e saltou para trás. Os rasgos ardiam, como se pequenos fios de metal em brasa fossem colocados sobre a epiderme e em seguida movidos num vai-e-vem que afundavam até a hipoderme. Caso permanecesse por mais segundos, as unhas animalescas do xamã teriam alcançado a carne e depois os ossos com desmedida banalidade. O homem arquejou, aflito pelos fios de sangue que lhe escorriam a pele e encharcaram a roupa. Ziguezagueou para o meio do galpão, trôpego como um bêbado. Ao olhar para trás, viu a figura do angakkuq se levantar como se nada lhe houvesse ocorrido. O xamã-feiticeiro, também era acometido pela dor - mas para ele, era um processo natural, uma consequência ínfima diante de tudo o que havia feito, negado e vilipendiado para alcançar a comunhão proibida com a natureza e hospedar o tuunbaq dentro do próprio corpo. Súbito, moveu o pescoço e novamente o vislumbre do urso branco surgiu, o pescoço prolongou-se no ar e caiu como uma pedra sobre Robert. 

Ele rolou para o lado, a tempo de ter a perna direita salva do golpe. Tentou levantar, mas antes que se apoiasse nos pés, mais uma vez o pescoço fantasmagórico caiu sobre ele, tentando abocanhá-lo pela coxa. Robert saltou para o lado, rolando de maneira desengonçada e perdida. Ele tateou o chão, sempre atento ao angakkuq vindo em sua direção. Os olhos estavam inchados, um deles já inteiramente tomado por hematomas e abscessos de sangue que deixavam a pele fina como uma bolha de sabão prestes a estourar no ar. Marchava com imponência, mantendo o sorrisinho debochado na obra de arte horrenda que lhe era o rosto.

Robert escapou mais duas vezes do ataque do tuunbaq, desviando do pescoço a poucos segundos de ser fisgado por ele, mas a cada salto perdia o fôlego. Arquejava devido à frequência cada vez mais insana com que o angakkuq projetava o animal quimérico e tentava açoitá-lo no chão. Quando olhou para trás, ofegante, viu que o dorso do angakkuq já havia se movido e a imagem semitransparente do pescoço animalesco já projetava um arco no ar. As luzes piscaram em todas as suas cores: vermelhas e verdes e amarelas e azuis e tudo de novo. Quando Robert reagiu e saltou para frente, já era tarde. O pescoço do animal o atingiu nas costas, descendo com as presas fantasmagóricas dos músculos do trapézio até a cintura, tecendo na pele outro rasgo, semelhante àqueles que tinha nas laterais dos braços, ombros e costelas. Não foi capturado em cheio como os adolescentes haviam sido, mas o simples golpe tangencial fez com que ele caísse no chão e gritasse. Ele apertou a corrente na mão. Trincou os dentes. Estava de peito para baixo. Desesperado, tentando escapar do angakkuq, rolou no chão. No entanto, o feiticeiro já estava sobre ele. A boca aberta. E do fundo da garganta, a espiral mágica: a atroz feitiçaria que sugava vidas e devorava almas.

Robert foi abocanhado no pescoço, mais apavorado pelo que aconteceria do que por qualquer dor ou sensação. Por segundos, sentiu o peito ser abatido por uma titânica sensação de perda, um vazio abissal e impalpável. O ar subiu pela laringe, os pulmões momentaneamente se esvaziaram. Então teve a certeza de que seria naquela noite, tão banal e tão improvável: a certeza do dia seguinte foi arrancada de quaisquer planejamentos e pensamentos. A estrada pela qual seguia, antes de receber o telefonema a mando da jovem xamã Kaya Akna, de repente se encurtou, desapareceu ante o ticket de ônibus perdido. O mapa riscado que trazia consigo – não o daquela cidade, mas o do país inteiro – com inscrições, anotações e marcações em X de todos os locais, médiuns, sensitivos e falsos profetas visitados, ficaria para trás, apenas mais um item na bolsa que serviria de provas para as autoridades no dia seguinte ou de espólio de guerra para o angakkuq. Tudo aquilo que perseguia, tudo aquilo que procurava, tudo aquilo que dava a ele um senso de obrigação, de justiça e de vingança – todos movidos pela paixão desvairada, pelo insano amor que nunca havia sentido antes – ficavam para trás, meros feitos não realizados de um desconhecido que morria em uma cidade desconhecida. As asas em chamas e os cabelos castanhos e o trailer em outra beira de estrada e memórias de uma viagem frenética à procura de um bar, de porcos milenares, dos filhos de Cirse… tudo ficava para trás conforme a espiral na boca do angakkuq o abocanhava e dele consumia a alma. Robert morreria ali. Naquela noite. A contragosto de suas próprias certezas. Contradizendo a mais sólida de suas convicções. Contrariando a mais vil de suas arrogâncias.

Esteve a ponto de revirar os olhos e de se entregar ao inevitável revés da noite, quando uma terceira força o separou do xamã-feiticeiro. Ele caiu enquanto o ambiente ao redor girava. Piscou em desespero, tentando se recuperar da sensação de desalento, de impotência, de fraqueza - os ossos pareciam frágeis, os músculos das pernas adormecidos e o sangue mal circulava nas extremidades dos dedos dos pés e das mãos. Ele levantou, mas pensou levantar. Ele se apoiou com as mãos, mas pensou se apoiar. Não tinha controle sobre o corpo. Não possuía sequer vontade para apertar as mãos e sentir o toque gélido da corrente enrolada entre os dedos. Zonzo, tudo o que ele viu foi Kaya de pé, interpondo-se entre ele o angakkuq. 

— Levanta, Robbie. Levanta — ela sussurrou.

E como a voz do feiticeiro-xamã ressoando em seu ouvido e dentro da cabeça, Robert soube que assim o foi com a voz da garota. Em contraste ao outro, ela tinha a voz rouca. Não havia medo nem repulsa carregados naquele som. Não pareciam vermes rastejando para dentro dos ouvidos. Ao invés disso, a voz era melódica. Aprazível. Curandeira. 

Não foram apenas essas as palavras que entraram nos ouvidos e na mente de Robert. Kaya começou um recital suave, palavras repetidas incessantemente e que, ele sabia, dançavam apenas dentro dele, pois o angakkuq não parecia surpreso, tampouco tomado pelo som. Kaya caminhava para trás e Robert a acompanhava, atrás do escudo que agora a garota representava. Ele apalpava, incrédulo, o local onde o feiticeiro havia lhe sugado um pedaço da alma – ou pelo menos tentado –, procurando vestígios de sangue, de carne exposta, de morte certeira. No entanto, a pele estava intacta. Embora próxima dos demais rasgos feitos pelas unhas do xamã, aquela região continha senão respingos de sangue. A peleja não era física. Não era na carne. Não era na pele. Era mais profunda. 

Eles continuaram se afastando. À medida em que Kaya recitava as palavras, Robert sentia a força pouco a pouco reassumir o corpo. Os ossos se enrijeciam e os músculos se retesavam. Com o ar de volta aos pulmões e o vazio no peito sendo preenchido novamente, ele levantou. Quando a sensação de perda foi aliviada, Kaya terminou de recitar suas preces. 

O angakkuq perdeu o riso nos lábios. Prostrou-se nos pés e articulou os joelhos para outro golpe. Lado a lado, Robert e Kaya se puseram na frente dele, a um braço de distância. Quando o tuunbaq surgiu diante deles com o pescoço alongado, Robert gritou uma ordem e correram cada um para um lado, enganando tanto feiticeiro quanto criatura. Kaya seguiu para o fundo do galpão, novamente em direção ao palco. Robert contornou o feiticeiro e ousou se aproximar pelas costas. Por ser mais alto que ele, foi fácil passar o braço direito por debaixo do pescoço do feiticeiro-xamã e aplicar nele um mata leão. Robert ergueu as costas e o levantou do chão. Ele se debateu e lutou. Rasgou o antebraço de Robert com as garras, afundou-as na pele e tentou dilacerá-lo, mas o golpe apertava-lhe a garganta e o obrigava a respirar ao invés de planejar contragolpes sujos ou inteligentes. Enquanto as luzes ainda piscavam, o dorso se contorceu, os ossos estalaram e o pescoço do angakkuq foi projetado, roçando a menos de dois centímetros o queixo de Robert. Todavia, o espírito animal se tornou inútil ante a tática de autodefesa, pois era incapaz de girar como o pescoço das corujas ou de alcançar as próprias costas como um gato.

Robert o arrastou consigo até a coluna de concreto. Afrouxou o golpe, fez duas voltas com a corrente no pescoço do angakkuq, distanciando-se dele.  Antes que o feiticeiro compreendesse o ocorrido, já estava preso à coluna como um São Sebastião desonroso, lutando para desfazer o aperto que o prendia pelo pescoço. Na parte oposta do pilar de concreto, Robert manteve a corrente apertada, comprimindo e quase esmagando as próprias mãos ao tentar conter o xamã de se soltar. Engasgado pelo metal a uma distância de dez centímetros do chão, o angakkuq deslizava e se mantinha de pé com dificuldade. Ofegante, eram apenas os dedões esticados que o mantiveram respirando. Arquejante como um animal capturado. Desequilibrado. Inseguro como uma bailarina amadora. O tuunbaq se manifestou, porém o pescoço era longo demais e pouco flexível para alcançar presas tão próximas. O animal rugiu em agonia, o mesmo rugido desesperado que o angakkuq soltava – eram dois, e, portanto, se unidos estavam, em simetria sofreriam. 

Nesse ínterim, Kaya reapareceu, contornando o caminho para se distanciar da envergadura do tuunbaq. Ela se aproximou dele e o encarou com desprezo. O feiticeiro implorou pela misericórdia dela. Clamou para que o soltasse, pois ensinaria a ela segredos que nem os mais antigos povos do norte foram capazes de descobrir. Citou sonhos xamânicos e visões deslumbrantes que apenas um poderoso, como eles, seria capaz de tocar. Falou, falou e falou, mas a voz se perdia e falhava em meio à agonia e à corrente que lhe apertava o pescoço.

O angakkuq continuou tagarelando, falho e desconexo. Kaya utilizou as duas mãos para abrir a boca dele. Com a direita, enfiou os dedos no lugar onde antes deveria existir uma linha de dentes superiores. Fez o mesmo com a mão esquerda, abrindo-lhe o maxilar inferior como se ele fosse o leão de Neméia. Do fundo da garganta do angakkuq, a espiral devoradora de almas surgiu – uma última tentativa de fuga ou de golpe atormentado. Atenta ao ardil, Kaya não se amedrontou. Viu o redemoinho espiritual se formar ali dentro e o encarou profundamente. Era belo e ao mesmo tempo arrenegado, maléfico, o mais vil dos desequilíbrios que um angakkuq inuíte poderia exercer sobre o mundo. 

Quando a espiral ganhou força, Kaya moveu os lábios. Lentamente, recitou palavras no idioma inuktitut. Palavras que ela havia aprendido com o avô. Palavras que sua mãe lhe contara e com ela repetira em dias de longo estudo e ensinamento. Palavras que não eram malditas nem proibidas, mas muito antigas. Palavras que aprendera por obrigação, mas jamais julgou um dia poder utilizar. Um canto quase perdido, melodia única que poucos guerreiros entoaram na história de seu povo – apenas aqueles que se dedicavam a capturar tuunbaqs, e em posse dos antigos costumes, devolvê-los à deusa Sedna. A espiral cresceu, avolumou-se. Kaya usou as mãos para arregaçar a boca desdentada, gosmenta e babada do feiticeiro – estava grata por Robert ter previamente eliminado prováveis infortúnios. A ânsia de vômito novamente a acometeu, dessa vez não por estar perto do tuunbaq nem por um enjoo ritualístico, mas psicológico. Era repulsivo sentir a saliva enegrecida escorrer por entre seus dedos e tê-los acariciados pela língua do feiticeiro. 

Gradativamente, ele perdeu as forças dos braços. Não foi capaz de movimentá-los nem para protestos. Os pés pouco a pouco pararam de se mexer, e já sem forças, quase não foi capaz de sustentar o peso do próprio corpo na ponta dos dedões.

O canto entoado por Kaya invadiu somente a cabeça do angakkuq, e lá dentro, no lugar onde o xamã corrompido e o tunnbaq estavam fundidos, a canção atuou como uma agulha que desfez o laço desarmônico, descosturando a alma do urso da alma do homem, invertendo o laço espiritual e quase umbilical que o homem havia realizado. O cântico permitiu que lentamente eles se afastassem. As palavras adocicaram a fera e deram a ela a compreensão de que havia sido aprisionada, e muito embora houvesse se alimentado de várias pessoas ao longo de milhas, não era culpa dela os rastros de sangue e morte deixados para trás. O tuunbaq era um espírito raivoso, criado por Sedna. Mas a raiva era tão natural no espírito-animal quanto era no coração dos homens, e desde que compreendida e saciada pela harmonia, pelo equilíbrio, ela poderia retornar para casa, a fim de vagar nas ventanias das geleiras de forma adormecida e silenciosa.

O tuunbaq que rugia lá fora, projetando-se através do corpo do feiticeiro, lentamente foi acalmado. O pescoço se contraiu, retraiu-se e voltou para o interior do corpo do angakkuq para nunca mais voltar. Kaya ainda cantarolava. Perdendo forças, o corpo do feiticeiro finalmente parou de se movimentar por completo. Os pés relaxaram. A espiral que a tudo sugava se desvaneceu dentro da garganta para enfim se transformar num longo e fino fio de fumaça esbranquiçada, que se dissipou no ar, densa como fumaça de cigarro. Em seguida, fraca como o bailar dos incensos. Por fim, dispersa como a mais cruel das raivas controladas. A fumaça desapareceu. O tuunbaq havia partido junto ao domínio que o xamã-feiticeiro tinha sobre ele.

Quando Kaya finalizou o canto na garganta, ordenou que Robert afrouxasse as mãos e o libertasse. A corrente afrouxou, desfez o abraço em volta da coluna e o homem caiu sentado no chão. Não estava morto. Talvez sobrevivesse à série de golpes que havia recebido ou ao tormento de doenças devido à união com o tuunbaq e a todos os feitiços aos quais utilizou para auto mutilar sua alma e seu corpo.

Robert avançou para terminar o serviço, mas a jovem xamã o deteve com um breve balançar de cabeça. Catatônico, o angakkuq corrompido permaneceu de olhos abertos em estado vegetativo. Afinal, era o preço a se pagar pela afronta à deusa Sedna e, acima de tudo, ao equilíbrio natural do mundo. Robert resmungou e deitou-se no chão, exausto. 

Ao longe, ouviram o som de sirenes.

Ao lado deles, mais alguém reagiu emitindo um gemido fraco de dor. Era um sinal de vida.

Era Joe.

 

IV.

Favores

 

Às onze da manhã o corredor do hospital estava vazio. O alvoroço que a noite de Halloween causara havia cessado: os policiais não andavam mais de um lado para o outro colhendo depoimentos e as enfermeiras descansavam aliviadas, longe da histeria que os adolescentes em choque proporcionaram horas antes. O hospital era pequeno, igualmente à beira da estrada como quase tudo na cidade. Apenas uma médica fazia plantão. A equipe de enfermagem era limitada e um recepcionista cerrava as unhas no balcão. Cinco garotos haviam sido pisoteados, mas não tinham tantos ossos quebrados como Joe; três garotas caíram na confusão, ganhando luxações e escoriações e um casal aguardava no corredor em busca da cura para a ressaca. 

Apenas uma viatura da polícia fazia vigília na frente do hospital. O resto dos agentes contava corpos no necrotério e a outra metade tentava, em vão, interrogar o suspeito em estado vegetativo, acusado pelo confuso ataque de canibalismo na festa clandestina de Halloween - sobre a qual a polícia estranhamente não ouvira falar. O evento e seus desdobramentos seriam o fato mais importante ocorrido na cidade desde a galeria na beira da estrada. 

Da janela no corredor, Kaya observava o pai em recuperação. Ela sorvia um copo fumegante de café. Robert se aproximou com dificuldades, já que o pé estava enfaixado e ele fazia uso de duas muletas. Se a fantasia de padre lhe caía bem na noite anterior, o mesmo não poderia ser dito da vergonhosa imitação de múmia: tinha faixas por ambos os braços para esconder e cicatrizar as feridas, outras tantas pelas costelas, ombros e costas. Apenas três dos vários rasgos exigiram pontos. Ademais, ele ainda se sentia zonzo devido ao ataque do angakkuq, uma espécie de trauma prolongado, como se todo o açúcar do sangue tivesse sido roubado e apenas a fraqueza recaía sobre o corpo. 

Ele se sentou ao lado de Kaya. 

— Ele vai ficar bem. 

— Eu sei que vai. Eu sou uma xamã. Às vezes eu sei das coisas, lembra? — Ironizou ela. Ficou ali por mais alguns segundos, então se deu por convencida e sentou ao lado dele. 

Robert fechou os olhos e deitou a cabeça na parede, do mesmo jeito que estava quando Kaya e o pai o encontraram na noite anterior. O silêncio que recaiu sobre eles foi incômodo. Kaya bebericou o café, aguardando pelo esperado. Robert prolongou o silêncio, reunindo, talvez, coragem.

— Não à toa eu sei o que você quer me perguntar — ela concluiu.

— Eu não disse nada, querida.

— Obrigada por nos ajudar essa noite — ela desabafou. — Você nos retribuiu com um favor maior que aquele que cobramos. Então, é, nós te devemos uma. É o que você quer perguntar, não é?

Você me deve uma — ele respondeu em um sorriso, vitorioso.

— Também devo agradecer por não ter me entregado ao angakkuq?

— Acha que eu faria isso?

— Eu não sei.

— Você é uma xamã — ele reabriu os olhos, fitando o teto. — Você sabe das coisas.

Às vezes — ela corrigiu. — Se quer um favor de volta, peça. 

Ele se remexeu na cadeira. Dobrou as costas e olhou para ela.

— Você não sonhou comigo por acaso, não foi?

— Sim e não. Eu sabia que precisava de alguém, então utilizei um feitiço para localizar a pessoa mais próxima ao tuunbaq. Eu não sei de tudo, Robbie. Não sabia que quem eu encontraria seria você. Também não sabia que um angakkuq havia realizado um ritual para se juntar ao tuunbaq.

— Mas você usou um feitiço de localização em ambos os casos.

Ela suspirou, impaciente.

— Sim. 

 Robert balançou o dedo indicador.

— Um feitiço de localização. É o que eu quero. É o favor que eu cobro de volta.

Kaya riu em negação.

— Você quer encontrá-la, não é? Evangeline.

— Eva — ele a corrigiu, suavemente.

— Eu não posso fazer isso por você. O feitiço de localização que você procura está muito além do meu povo, Robbie. Está muito além de mim. Sinceramente? Está além de qualquer um de nós.

— Mas o angakkuq…

— Talvez ele estivesse mentindo. Ou talvez você devesse ter me entregado. Por que não me entregou? Teria sua resposta.

Kaya levantou, contrariada. Voltou à posição onde antes estava: de pé e olhando para o pai. 

— Desculpe, querida.

Ela deu de ombros.

Robert também se levantou, menos ágil e mais debilitado. Deu as costas à garota. Antes que se afastasse, ela disse:

— Eu não posso ajudá-lo, Robbie. E se eu pudesse, não faria por uma troca de favores. Se eu pudesse localizá-la, eu faria. Disso eu sei. Talvez exista alguém por aí que seja capaz. Se houver, cê tem que saber que tanto Eva quanto as formas de encontrá-la requerem um poder muito grande. E forças muito grandes sempre tendem a ser desarmoniosas. 

— Que forças?

Kaya sorriu, compassiva.

— A noite inteira e você não entendeu nada do que eu disse, né, Robbie? Só um desequilíbrio muito grande pode forjar um feitiço pra localizá-la.

— Você disse que não conhecia nenhum feitiço.

— Eu não conheço. Não um específico, pelo menos. É só algo que todo mundo sabe, saca? Um grande desequilíbrio: forte e estúpido.

— De que tipo? — Ele se aproximou.

— Um sacrifício, Robbie. Um sacrifício.

Se informações eram preciosas, essa foi a informação que Robert precisava. E se essa era a informação necessária, eis o favor que Kaya o retribuiu sem se dar conta. Ele balançou a cabeça e seguiu pelo corredor. Tão logo o corpo se recuperasse, voltaria à estrada. Muito além da rota 33 ou de quaisquer outras rotas.

Às antigas estradas. Às estradas de sempre: em busca de asas em chamas. 







 

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