6 de janeiro de 2022

Destino



Para estes fins, retomei aos gregos. Voltei aos anos de relapso estudo para embasar, talvez, a primeira linha destas palavras. Desejei me alongar sobre o determinismo grego ou sobre a inexorável vontade das Parcas. Mas o Destino, ah, este cruel impetuoso, está sempre a me espreitar. Foi em Sobre estar doente, de Virgínia Woolf, que encontrei abre alas perfeito. Assim quero falsamente iniciar-me:


"Mas solidariedade é o que não obtemos. O sapientíssimo Destino diz que não


O Destino me saúda agora com um beijo. Esgueirou-se há cinco anos por sobre os olhos, um pequeno vestígio sobre a pálpebra direita, para então alastrar-se como praga. Mas não é praga. É fatalismo. 


Pois agora o Destino me saúda com um beijo. Oscula-me sobre o lábio superior, no canto direito, ironicamente onde tudo começou. Está aqui, cravado e santificado, prestes a alastrar-me como a autoimune praga que bem é. Visto, de repente, num reflexo casual da face, bem como foram todos os outros beijos e todas as outras nuvens e todas essas maldições da pele. 


Retomo aos gregos. Tinham eles um determinismo invejável, embora salpicado pela insatisfação. Bravejavam os deuses o quanto quisessem, bem como eu o faço e nunca o deixarei de fazer, mas no fim eram elas que os comandavam. Três distintas senhoras sentadas e de tudo sabedoras: das coisas que foram, das coisas que são e das coisas que um dia serão. E nem é Átropos quem me aflige, pois desde a infância convivo com sua iminente tesourada, mas sim Láquesis distribuindo os vis fios de meus entrelaces.


Pois o Destino assume muitas formas. Na Literatura, velho homem cego com o livro da Vida em mãos, tragédias, ironias piadas e labirinto: muitos caminhos, um só final. No Amor, uma escolha. No Sangue, a infinita combinação de proteínas e códigos genéticos aleatórios que não hesitarão em me alcançar. E por fim a Doença, a mais fatalista e inevitável dos Destinos.


Mas o Destino, sob a alcunha da Doença, sendo de maneira súbita e trágica, mais leve e menos sádico me parece ser. Ruim é quando vagarosamente te destrói, primeiro no anúncio da iminência de uma longa vida – cheia de privações, revoltas e impossibilidades –, em seguida limando a mente, destruindo, enfraquecendo, sugando o vigor e por fim a autoestima. 


"[...] o corpo desfaz-se em cacos e a alma (é o que se diz) foge",


escreveu Virgínia sobre a fixação da Literatura em apoiar-se sobre a mente adoentada, ao invés do corpo, tão carecido de odes em rimas ou de monumentos em prosas. Muito se sabe sobre o amor, sobre a saudade ou sobre a dor, pouco sobre as alcunhas destinadas ao que passa o corpo quando, fatídico, olha-se no espelho, vendo a pouca beleza ser desfeita em nuvens alvas de feiúra crescente. Que sobra da vontade de ver o mundo, quando o mundo te olha diferente, distinto, sorrateiro em uma (frequente) pergunta que finges não escutar:


— O que é isso?


— É o Destino — ao que outro alguém responde em teu lugar.


ou 


— É pele de bufo, faceta de vaca — ao que a resposta sai da tua boca, carregada de sátira doída, piada desgostosa.


Que sobra de vontade de ver o mundo, de sair e de viver nele? Que sobra? 


Uma lista de discursos de perseverança, falidos, todos, em seu próprio cerne?


Inspirar-se na guerra alheia sustentada por estimas que já tinham o sucesso ao lado, por nascerem esteticamente bem aventuradas? Belos rostos, belas linhas, belos corpos e belas estaturas. Que é a pele de bufo, as manchas de vaca senão um toque adicional e exótico na modelagem dessas vidas?


E quanto aos rostos esquecidos, aos corpos desajustados referenciados sempre como piadas ou chacotas? A pele de bufo não cai bem nesses tolos. A guerra já nasce fadada ao desastre, aos poucos espólios e às carniças.


Aqui a guerra é outra. 


Não a dos belos. Não a dos sortudos. Não a dos servidos com fios de ouro por Láquesis.


Querem te empurrar sessões semanais em salas estreitas, conduzidas por agentes igualmente quebrados. Querem te convencer a aceitar o Destino, ao invés de Odiá-lo, de Praguejá-lo. Querem convencer tuas crianças de que, para serem lindas, elas primeiro necessitam aprender a lutar, a descobrir-se diante da guerra como guerreiras, ao invés de combater ou praguejar o próprio mundo que as jogou nessa guerra.


E assim não te dizem, e te escondem, que a autoaceitação não vem de dentro, não de um estado natural. Ela  vem do cansaço, da mente exaurida da própria guerra que te jogam desde criança. Pois não é o mundo quem há de ser corrigido, é a tua mente diante dele: para que se acostume, para que se adapte, para que se convença de uma verdade que será de poucos, e não comum a todos os homens e a todas as mulheres.


Que sobra dos discursos falidos de perseverança quando são, finalmente, despidos e desvelados? Fajutos, todos eles fajutos.


Que sobra da vontade de sair ao mundo quando a cada mês o Destino cresce mais centímetros na tua pele? E mais? E mais?


Que sobra dessa rala vontade de vida que sempre foi franzina, franzina, fadada a discursos de esperança igualmente falha?


Que sobra diante do olhar no espelho senão a clara crença de um Destino pré-determinado, tecido talvez não pelas olímpicas mãos de três senhoras, mas pelo código herdado ou pela soma de todas as escolhas tomadas — tal qual Laio julgando fugir do fatalismo com suas próprias ações?


Que sobra da existência senão a clareza de que, mês que vem, no dia seguinte ou nos próximos anos, o teu Destino terá avançado e destruído qualquer coisa que ainda exista dentro de ti?


Um frangalho de espírito.


A fuga da alma.


Que sobra?