II.
Umbral
O movimento era fraco naquela manhã de
terça-feira. José aguardava no lado de fora do prédio de perícias científicas com um copinho descartável de café preto e amargo fumegante nas mãos. Apenas uma
viatura esteve parada com as portas traseiras abertas quando ele chegou, mas
não demorou para que logo retirassem dois caixotes compridos, subissem a rampa
e os fizessem desaparecer no interior do prédio. A viatura voltou para, talvez,
outra ocorrência.
Ele sorveu um gole de café quando Silvia
finalmente apareceu. A touca escondia os longos cabelos cacheados. Vestia o uniforme
azulado, a máscara hospitalar sob o queixo. Ela sorriu para José e o entregou
um envelope pesado e lacrado com o logo do instituto.
– Tudo aqui? – Ele perguntou ao apanhar o
envelope.
– Tudo aí. Enviei uma cópia por email pro teu
chefe.
– Ele que pediu?
– Foi.
– Ok – ele deu de ombros e finalmente sorriu de
volta para ela. – Oi.
– Oi – ela se colocou na ponta dos pés para
dá-lo um rápido e contido abraço. – Tu estás bem?
– Tô, tô sim – ele mentiu, tentando soar
convincente.
– E a Clarinha?
– Ela tá ótima.
– Ah, que bom – Silvia estava meio atrapalhada
por conta do abraço.
– Acho melhor eu ir.
– Tá certo.
Antes de se virar e descer a rampa, Silvia o
chamou.
– Ei, Zé.
– Hum?
Ao longo dos anos, Silvia já havia descoberto
muitos indícios quase invisíveis e indetectáveis nas entranhas de cadáveres.
Redigira uma infinidade de relatórios solucionando mortes aparentemente
naturais e outras que de naturais nada tinham. Enfrentara cinco grandes casos
de comoção estadual e esteve envolvida em pelo menos dois que ganharam atenção
da mídia nacional. Não duvidava das próprias suspeitas, por isso todas elas
apontavam para uma direção muito clara e identificável. Era um trabalho que
buscava indícios. Os indícios levavam a causas e as causas clarificavam as
provas. Não à toa sabia que José estava mentindo. Não estava tudo bem. Mas suas
averiguações terminavam aí.
– Sabe, eu já vi muita coisa estranha por aqui.
A maioria delas só é estranha, então logo a gente acaba esquecendo. Não sei se
eu vou esquecer dessa, porque isso... – Ela apontou para o envelope. – Isso é
uma das mais estranhas que eu já vi.
– É, né? Nem me fale, doutora.
José enviou uma piscadela para Silvia e desceu a
rampa.
Ele entrou na viatura da polícia civil e dirigiu
à divisão de homicídios. Quando o carro parava em um semáforo, José encarava o
envelope sobre o banco do carona com um incômodo pulsante. As últimas cinco
semanas foram tomadas por aquela sensação esquisita – a de olhar para um rosto
passageiro na rua, ser cumprimentado por ele e cumprimentar de volta por pura
educação, já que você não se recorda a quem ele pertence. Qual o nome dele? De
onde nos conhecemos? Quando nos vimos?
Desde que atendeu a chamada em uma madrugada
vazia de sábado e precisou arrombar a porta da casa para encontrar aquele
cadáver desfigurado, iniciou-se a tal sensação esquisita. O rosto desconhecido,
que te acena e te conhece, que de você jamais permitiu-se esquecer, embora a
recíproca tão pouco tivesse de verdadeira. Não era exatamente o rosto, muito
menos a vítima, mas as características do crime. José já havia visto aquilo
antes, não é? Ou, pelo menos, tinha ouvido falar. Tinha sido em algum caso não
solucionado nos últimos 12 anos em que trabalhava como investigador? Não. A
peculiaridade obscena do crime não o faria esquecer tão facilmente. Algum boato
soprado por um colega de delegacia? Talvez. A semelhança do rosto desconhecido,
ou melhor, as características do crime esquisito soavam como um sussurro, uma
voz flutuando no fundo de um salão barulhento e da qual você luta para querer
escutar, para prestar atenção. Uma fofoca fraca relatada no meio da multidão, um
nome esquecido no fundo da memória que persiste em se esconder por trás de
brumas densas. Que merda era aquela que não o deixava dormir direito há mais de
um mês?
Quando chegou a delegacia, torceu para que as
últimas horas de seu plantão fossem calmas. Que nenhum corpo surgisse nas valas
ou nos terrenos baldios do bairro e das regiões em volta. Que nenhum casal
equilibrado resolvesse colocar as desavenças em dia e que nenhum sujeito de bom
caráter se sentisse ofendido pelas reclamações infundadas de uma esposa
saturada. Que nenhum drogadinho resolvesse cruzar o caminho do dono da boca,
implorasse pela vida antes de a vizinhança escutar os disparos e relutasse em
ligar para o CIOP, embora cedo tarde alguém sempre o fizesse. Que nenhum
daqueles casos diários e corriqueiros fosse transferido ou solicitados para a
Divisão de Homicídios e exigisse que o investigador José Alvarenga por lá
aparecesse, a menos de quatro horas para o final do plantão.
Ele se esticou por trás da mesinha que dividia
espaço com outras cinco. Abriu o relatório e o leu de cabo a rabo, embora já
soubesse de cada conclusão – na verdade, inconclusões –, extraoficialmente.
Então ligou o computador e criou um novo arquivo, nomeando-o com o código do
caso em caixa alta. A partir dos pontos que leu no relatório da perícia,
assinado pela Dra. Silvia B. Costa, médica legista, complementou com as lacunas
do que havia observado na noite em que arrombou a casa e viu a cena do crime,
além de toda a investigação que fizera ao longo das últimas semanas.
Embora a vítima fosse mulher, jovem, 26 anos,
caucasiana e com um vasto círculo social, nada indicava feminicídio. A vítima
não possuía desavenças ou relacionamentos com quaisquer homens. José,
inclusive, logo percebeu que a mulher possuía uma longa lista de casos afetivos
com outras mulheres, o que o levou a investigar pelo menos quatro delas. No
entanto, todas possuíam álibi incontestável e pareceram verdadeiramente
consternadas com a trágica morte da amiga.
Não há explicações sustentáveis, por exemplo, para
quando alguém topa com uma pessoa e automaticamente por ela sinta antipatia ou
desconfiança. Alguns atribuíam isso a causas sobrenaturais e espirituais, coisa de santo. José e a maioria de seus
companheiros também seguiam essa linha. Você bate o olho e percebe algo
incomum: uma escolha lexical diferente, uma pequena expressão em desacordo com
o sentimento do momento (um olhar frio, um sorrisinho de desprezo, uma
piscadela nervosa, um movimentar de mãos desalinhado com o resto do corpo). Em
mais de uma década tendo de revirar, cavar e averiguar gente assassinada, José
conhecia o desespero e a dor de alguém que encontra um ente querido ou um
amante morto, e o quanto essas pessoas desejam,
com o mais profundo lamento, remediar a situação e fazer com que tudo seja
diferente. O quanto desejam acordar do pesadelo real, modificá-lo como faria um
autor bem-sucedido a um parágrafo mal escrito.
Mas a vítima era amada por todos e todas. Na
inconclusão inicial de um caso que não parecia levar a lugar algum, José pediu
auxílio da delegacia virtual à procura de ameaças que a vítima poderia ter
recebido, mas não havia nada. Estudante de Medicina e com claros sonhos de
seguir na área da Neurocirurgia, a vítima era a cidadã ideal. Defensora das
causas progressistas e bem relacionada, as fotos mostravam muitos amigos,
dezenas de comentários elogiando sua beleza e centenas de curtidas.
Mas havia um detalhe, um único detalhe
incondizente com o que José descobrira durante as investigações. Dentre os
incontáveis atributos socialmente creditados a ela – tanto nas redes sociais
quanto nos inquéritos com testemunhas e improváveis suspeitos –, havia a
alcunha de protetora das causas animais. A vítima utilizava a imagem dos
próprios gatos na capa de pelo menos duas mídias sociais, além de uma
quantidade absurda de vídeos e fotos dos bichanos. Mesmo na rua em que morava,
os vizinhos eram capazes de defender e corroborar tal imagem, embora houvesse
alguém para discordar disso – geralmente uma velha carrancuda e fofoqueira que
jurava de pé junto escutar os miados dos gatos com fome e solitários, afirmando
que a vítima passava dias e dias sem aparecer em casa.
– Que diabos de plantões são esses? – Questionou
a velha, enquanto José anotava e se questionava se valeria o esforço de levar
em consideração o que a velha fofoqueira dizia. – Tenho um sobrinho que veio do
interior pra cidade na época em que fez medicina, seu policial. Ele vivia pra
estudar, que Deus o abençoe. Ele também fazia plantões, mas os plantões não
duravam dois, três dias seguidos. Alguns eram nos fins de semana, sim. Mas
nunca vi um que começasse quinta à noite e terminasse segunda de manhã. Nunca
vi isso, seu policial. Eu sei bem onde essa menina devia fazer plantão...
José anotou tudo. Em menos de uma semana de
investigação, concluiu que a velha tinha oferecido mais informações relevantes
do que os demais vizinhos. Também a incluiu na lista de suspeitos, é claro. Mas
era uma senhora com artrite em ambos os joelhos que vivia para cuidar das
próprias plantas e de dois cachorros. Além disso, morava a três casas de onde
residia a vítima. A velha jamais teria tempo de fugir quando os vizinhos
escutaram o último da série de gritos desesperados emitidos pela vítima,
conforme relataram na ligação à emergência.
Quando
entrou na casa da vítima naquela madrugada, o cheiro de urina entrou no nariz
como um soco. Como se injetassem ácido pelas narinas, José precisou recuar,
dobrar a camisa de cima sobre o rosto como uma máscara e acender as luzes. A
casa possuía seis compartimentos: sala, banheiro, dois quartos, cozinha e área
de serviço nos fundos. A mulher estava na cozinha, estatelada no chão com as
mãos na altura do rosto. A expressão escondida era de terror: a boca
entreaberta num grito seco, os dedos esfarelados e os olhos comidos, uma gosma
vermelha e branca escorrendo, ainda fresca, pelo buraco das órbitas.
Todo o corpo da vítima estava triturado no que
pareciam pequenas mordidas. O pé direito estraçalhado. Pele e meia tornaram-se
uma camada só de sangue e carne. Um buraco no calcanhar, irregularmente aberto,
já começava a atrair as moscas. Toda a parte coberta por peças de roupa fora
igualmente mordiscada e consumida. De dignidade, nada restara da vítima.
Porém duas coisas absurdas chamaram a atenção do
investigador, da equipe de policiais militares (que o ajudaram a arrombar a
casa) e das equipes de perícia que chegaram à cena posteriormente:
A primeira foram as pequenas patinhas felinas
que salpicavam a geladeira branca, a mesa e o fogão. Tais registros também
existiam pela pia e alguns elevavam-se das paredes até o teto, como se os
animais que ali estiveram corressem em pavorosa, ignorando a existência da
gravidade. Muito além de impressões felinas carimbadas a sangue pelo corpo da
estudante, haviam as marcas das unhas: rasgos finos e profundos que mergulharam
na carne dos braços, das coxas, da barriga e do pescoço, como gatos a afiarem
as unhas num arranhador de papelão. Os indícios de dentinhos estavam nos
orifícios abertos com mais profundidade. Nenhum dos golpes realizados era de
maneira limpa ou clínica. Todos a esmo, irregulares, sem a menor consciência ou
planejamento.
Já a segunda foi o miado dos gatos presos em um
dos quartos. Quando tentou abrir a porta, José notou que ela estava trancada
por dentro. Precisou, novamente, arrombar a porta para encontrar os bichanos.
Àquela altura, parou de digitar o próprio
relatório. Respirou fundo e coçou a cabeça. Que merda, a sensação esquisita
continuava. Um rosto desconhecido o cumprimentando, dizendo olá, há quanto tempo não te vejo, Zé. Como
tu estás?
– Bem – ele respondeu em voz baixa, sem que
ninguém na sala percebesse. – Bem pra caralho.
Levantou para buscar mais café. Julieta, do
balcão, o alertou para os perigos do consumo excessivo de cafeína em horário de
almoço. Ele se espantou com a informação, já que não percebeu as horas
passarem, agradeceu a preocupação da senhorinha e retornou com a xícara cheia.
Quanto mais lembrava do corpo da vítima, mais o
rosto desconhecido sorria para ele. Então redigiu seus complementos para com o
relatório de Silvia. E, finalmente, mencionou os gatos: cinco deles estavam
naquele quarto. Acuados e confusos, mal sabiam se permaneciam na defensiva e
caminhavam para trás à procura de um lugar onde se esconder, ou se engoliam o
medo em nome da carência e da fome que sentiam. Eles não estavam esqueléticos,
isso era certo. Mas clamavam por comida. As vasilhas, sabe-se lá há quanto
tempo, vazias. Os miados eram fracos e sofridos, mas suficientemente audíveis
no objetivo de comunicarem a fome. Havia uma gata preta com manchas alaranjadas
que tomou a frente. Ela chiou na direção de José, mas parecia confusa com a
resposta atenciosa que obteve dele. O segundo gato, aquele que estampava metade
das fotos nas redes sociais da vítima, tentou levantar, mas cambaleou e caiu
atrapalhado da cama. Ruivo, peludo e charmoso, seria naturalmente mais gordo se
não exibisse tanta fome e desorientação.
Já os outros gatos eram menores, três filhotes
em uma caixa. Duas gatinhas brancas estavam aninhadas com os olhos piscando,
fracos. Ao menor toque da mão gigante de José, parecia que se desfarelariam.
Ainda estavam vivas, mas em uma situação alarmante. E havia o último: um
filhote acinzentado de orelhas pretas. Estava duro, morto há talvez mais de um
dia, porém deitado em uma posição que curiosamente parecia a de vigília, de
frente para as irmãs branquinhas, como se até o último suspiro estivesse ali
para assegurá-las de que tudo ficaria bem.
O quarto, que claramente pertencia a vítima,
estava abafado. As janelas fechadas, as cortinas em posição para bloquear a luz
solar e o cheiro de mijo e de merda ali dentro era duas vezes mais insuportável
que no resto da casa.
Estranhamente, os dois gatos adultos que ainda
possuíam forças para ficar de pé, não fugiram nem com a porta do quarto
escancarada. Se por medo dos policiais que ali entravam ou se desesperados para
receberem alimento, José não soube explicar. Antes de lembrar que havia um
corpo na cozinha, ele procurou ração para os bichos. Buscou nas estantes do
quarto, no guarda-roupas e nos armários. Os legistas e os PMs
estranharam a prioridade do investigador, mas ele revirou os móveis,
descumprindo no mínimo três protocolos para cenas de crime. Fracassado,
misturou água com leite em pó em uma vasilha e fez com que os bichos tomassem.
Eles afundaram os rostinhos e melecaram boca e bigodes no leite.
E foi aí, só aí, olhando os bichanos mais de
perto, que José percebeu o quanto eles estavam limpos, apesar de abandonados.
Não estavam sujos de sangue, não mostravam quaisquer indícios de terem tido
contato com o corpo. Todas as saídas da casa, sobretudo as grades da frente e
as grades que cercavam a área dos fundos, possuíam telas e redes de proteção.
Não foram rasgadas, sequer estavam com buracos abertos por onde animais externos
pudessem invadir ou por onde os internos pudessem escapar. E, a julgar pela
ausência de muitos insetos e pelo cheiro de sangue ainda fresco (aliados aos
relatos dos vizinhos de que a vítima gritava em desespero), José concluiu, já
de antemão, que a mulher estava morta há pouco mais de uma hora.
Todas as conclusões prévias daquela noite
estavam certificadas no relatório. A
vítima foi atacada por um grupo de animais, contabilizando, no mínimo, quinze
ou mais felinos, dizia um trecho dele.
O investigador não colocaria suas impressões
mais pessoais no relatório final – nem da maneira mais polida, sugestiva ou
técnica. Não discorreria sobre o quanto o gatinho morto parecia proteger as
irmãs ou o quanto os outros dois confiaram no primeiro desconhecido que
arrombou a porta para buscar comida a eles. Também não mencionaria a
negligência da dona dos gatos, afirmando, em tom de denúncia, o quanto a casa
era infestada por baratas ou fedia a fezes e mijo, tampouco citaria a ausência
de cuidados para com os gatinhos – e o quanto isso contrastava com a imagem que
dela defendiam e que dela possuíam. Ela já estava morta, de qualquer jeito. Era
uma estudante promissora de medicina, socialmente bonita e caucasiana. Mas estava morta. De
que adiantava que soubessem a verdade, num caso em que nem mesmo a polícia e
os peritos conseguiram solucionar?
– E aí? – Alguém por sobre os ombros de José
perguntou. Era Marcos, outro colega investigador. – A galera fez um bolão pra
esse caso.
– Ah, foi? – José tomou outro gole de café. – Apostaram
o quê?
Marcos deu de ombros.
– Uma grade de Brahma. Metade acha que foi crime
passional.
– Mas como ele levou uns cinquenta gatos pra
dentro da casa?
Marcos ergueu os ombros com uma expressão de
esperteza.
– Pois é, não faz sentido. Por isso eu apostei
na outra alternativa.
– Qual que foi?
– Gatos assassinos.
José riu com tamanho absurdo. Um rosto
desconhecido ainda batendo na porta dele, dizendo olá.
– Eu não tô brincando, Zé. Olha só, tu lembras
daquele antigo conjunto habitacional nos limites da cidade?
– O conjunto Icamehí?
– É. Esse aí.
– Eu morei lá.
– Porra, e tu não lembras daquela história do
velho que matava gatos?
José largou a xícara sobre a mesa e girou na
cadeira.
– O quê?
– Porra, Zé. Como assim? – Marcos começou a rir
com a eloquência vitoriosa de um bufão que descobre saber mais sobre um assunto
que os outros. – Tinha um velho no conjunto, lá pela década de 70. Ele amava
gatos, sempre colocava comida pros bichentos
na frente de casa. Aí os gatos da rua todos iam até lá, comiam, entravam pela
grade.... Aí o velho parou de aparecer, os vizinhos começaram a sentir um
cheiro forte e chamaram a polícia. O homem tava era morto lá dentro, todo dilacerado
com marcas de mordidas e de arranhados. Mas o pior de tudo: descobriram que o
velho colecionava olhos de gatos em uns recipientes de vidro com formol. Isso
aí não é mentira não, pergunta pro povo da nossa idade, eles vão tudo confirmar.
– Como tu sabes disso? Como era o nome do velho?
– Ah, vou lá saber? Essa história não tem na
internet, é antiga, Zé. Me admiro é de ti não saberes isso – Marcos deu um
tapinha nos ombros do colega e acenou, distanciando-se. – Mas não me conta
nada, não. Quando tu entregares o relatório, a gente descobre. Vou ganhar esse
bolão. Gatos assassinos. É.
José ficou ali, parado, vendo o colega se
distanciar como um adolescente fanfarrão. Buscou a xícara de café, mais um
gole, precisava de só mais um gole, mas ela já estava vazia.
Ele girou na cadeira, encarou as quase dez
páginas de relatório complementar e demorou a digitar novamente. Concluiu com
palavras secas e mais diretas que o normal. Não checou os erros ortográficos,
ninguém fazia aquilo em relatórios da polícia. Imprimiu a papelada, grampeou e
anexou ao envelope da perícia com um clipe de papel. Bateu na porta do delegado
e entregou a papelada. Respondeu algumas perguntas, todas realizadas de forma
breve e pouco compromissadas. A particularidade do caso pesava mais do que a
solução em si. Algum barulho seria feito, já que a vítima era uma mulher branca
com boas amizades, mas pelo pouco vínculo com a família, ninguém faria caso e
tão logo os bons e verdadeiros amigos deixariam de se importar. Ninguém mais
lembraria. Talvez virasse uma história, um mero boato estranho na divisão.
José saiu da delegacia naquela tarde com o
incômodo finalmente solucionado – pelo menos alguma coisa haveria de ser
aliviada. O rosto desconhecido que dera olá para ele por mais de um mês
finalmente fora descoberto. Era um rosto antigo, dos tempos de infância, uma
história que foi contada a exaustão em sua alameda e em todo o conjunto. O
velho que amava gatos e de repente foi encontrado morto revelou-se não ser tão
agradável como aparentava. Muitas histórias foram contadas a respeito depois
que a polícia esteve lá: de que ele ainda estava vivo, de que pegaria as
crianças que ficassem depois das dez da noite na rua, de que era ele caçando os
gatos quando esses gritavam lá fora em cima dos telhados, de que ele possuía um
cemitério de bichanos no quintal ou, pior, de que dentro de casa muitos
gatos-zumbis eram alimentados com os corpos daqueles que ele matava.
Todas aquelas histórias eram surreais, exageros
infantis de uma época em que medo e inocência eram bons irmãos. Mas se havia
algo do qual José finalmente lembrava agora – desfeito o véu do bloqueio que
estivera sobre seus olhos durante as últimas semanas e, certamente, durante as
últimas décadas –, era o par de olhos de seu gatinho naquela época. Como ele se
chamava? Ah, sim. Stalone. Stalone e seus olhos de cores diferentes – um azul,
outro verde. Stalone que nunca saía de casa e, na primeira vez que o fez, jamais retornou.
Como uma certeza clarificada, José tinha acesso
às memórias da infância. Morava na rua do velho assassino de gatos? Era esse
tal velho o senhorzinho que sempre cumprimentava seus pais e ele? Encontrara
Stalone a porta do velho assassino, na vez em que ousou pular muros e telhados
pela primeira vez? José tinha a resposta, mas não quis se debruçar sobre ela.
Já eram três da tarde e precisava retornar para
casa. A filha, Clarinha, o estaria aguardando. Mas havia algo mais a ser feito.
Só uma coisa a mais.
Por isso, naquela tarde, ele não dirigiu de
volta para casa.