17 de março de 2022

Tem um nó na garganta e uma sutil corda no pescoço


        


         — Aqui — ela disse, entregando o celular.

— O quê?

Na época, aplicativos verdes de conversas instantâneas em aparelhos móveis seriam ainda novidade. Naqueles tempos onde tudo era mato, o mundo vivia os últimos fragmentos de conversas em computadores ou em SMS.

A garota acendeu um cigarro enquanto o esperou reagir à tela. Era uma imagem: a ilustração de um sujeito sombrio, também com um cigarro na boca, de braços cruzados.

— "Tem um nó na garganta e uma sutil corda no pescoço" — ele leu em voz alta.

— É.

— Hum.

— Achei a tua cara.

Ele coçou a cabeça, meio sem jeito. Estavam nus. Haviam visto, tocado e sentido um o corpo despido do outro. Ela conhecia o cheiro do suor com perfume que ele exalava, ele conhecia o suor frio e os pés compridos e esqueléticos com que ela o roçava. Mas o verdadeiro embaraço vinha mesmo era daquele toque de observação, quando ela o analisava pela alma.

— É, né? 

— A cada dia essa corda aperta mais — disse ela.

— Parece isso.

— Parece — a fumaça escapou pelo nariz. A garota tinha aparência apática. Traços retos, linhas angulares tanto no rosto, quanto nos ossos. Comprida, muito comprida, maior que ele em quilômetros e em vida. Uma escultura de beleza fria e elegante.

— Relaxa, eu não vou despencar do banquinho.

— Aí é que tá. Tu pulas do banquinho todos os dias.

— É?

— É.

— Isso não é bom.

— Não. Mas eu gosto.

— Por quê?

— Por causa dessa melancolia.

— Ah, é?

— É.

— Por quê?

— É poética.

— Ah.

— Inocente também. Eu não acho que tu tenhas vivido muito, mas sabes falar sobre.

— Não vivi, mentir só faz parte disso.

— Bom, estás vivendo agora — ela tragou e ofereceu o cigarro. Ele, novato no tabagismo, aceitou por aparência. Negar, além de insensível, soaria como amadorismo. Tinham cinco anos de diferença. Mas ela era alta, muito mais alta, em tragos e em estragos.

Ele devolveu o celular. Não sabia como encarar aquilo. Era verde demais para compreender, decerto por prestar mais atenção nas tantas cordas em volta do pescoço e focar no nó da garganta do que necessariamente em enxergar a verdade.

A verdade era só uma: despida ao lado dele com um cigarro entre os dedos, mais acessível do que ele imaginava, mais calorosa que os pés gelados que o roçavam as canelas. 

Se mentira ou se verdade, ela continuou tragando. Enquanto, a cada ano, nele o nó desafrouxava. E a corda também.