23 de julho de 2022

Pretéritos malditos




 

Today I followed daddy down to church

And listened to the preacher read God’s word

We sang his favorite hymn but daddy didn’t make a sound

This afternoon we’ll lay him in the ground




A dor dos pretéritos não é arrebatadora. É dor sorrateira. Vem em uma fotografia, vem na menção às palavras férias, veraneio, Joanes. A dor dos pretéritos não é de todo dolorosa. É melindrosa. Vem em estalar de dedos, surge em distração banal. É olhar para a parede sem nada pensar e, de repente, está lá. É o plano do próximo dia seis, é o preparo para o próximo dia seis. É vagaroso, é o e agora, como vai ser, como faço, como fingir, como lidar? O desacerto dos pretéritos é a noção de que esta é a dor mais antiga dos homens, embora a minha primeira. A dor dos pretéritos é a consciência de todas as leituras de mundo que antes foram feitas, alertadas e ouvidas. E que agora escrevo para que outros, desavisados, inexperientes, também as possam ler a fim de, um dia, infelizmente, igualmente venham a compreender. A dor dos pretéritos é a milenar e ocidental guerra contra todos os deuses, a batalha travada por Orfeu em busca de Eurídice, com a diferença de que nossas Eurídices são muitas, são muitos, possuem outros nomes e outros papéis, às vezes amantes, às vezes Pais Criadores. A dor dos pretéritos é não ter a capacidade mítica do herói grego, é ser incapaz de enfrentar Hades e ser submisso a Cronos Magnânimo, que a tudo, todas e todos os entes queridos, um dia irá nos tirar. Ou, quem sabe, se assim desejar, um dia, deles nos tirará. A dor dos pretéritos está, mais além do luto, na forma verbal proferida. É a dolorosa necessidade do fez e do fazia, do disse e do dizia. É a sutil lamúria do costumava e do gostava, do foi e do praticou. A dor dos pretéritos é a escolha lexical, a inadequada adequação temporal, é a certeza de que a presença está no peito, porém não no toque nem à vista. A dor dos pretéritos, malditos, malditos, é a inconformação com a realidade, a impotência de não ter sido mais, de não ter estado mais, de não ter feito melhor, de não ter sido maior, embora, ao mesmo tempo, seja sabido que tudo o que foi feito, foi feito — ao seu próprio jeito e no exato modo que tinha de ser. A dor dos pretéritos reside em uma quinta-feira à noite, na última ligação realizada, no último tchau escutado, na saudade não preenchida, no novo significado de uma canção há muito conhecida, porque daddy doesn't pray anymore ganha dolorosa compreensão. Porque pretéritos são necessários: distinguem tempo, distinguem distância, alegam vazio aos espaços deixados, atribuem significados que desejamos, em suma, renegar: o que já não é, quem já não está. A dor dos pretéritos é tamanha que até nestas palavras evitou-se utilizá-los ao máximo — com desastroso fracasso, é claro. Que a tarefa fique aos poetas calculistas. Aqui, só há uma dor serena. Latente, suave e revoltosa na vã tentativa de negá-los. Uma negação inútil. Como se fôssemos Deuses, poderosos e imortais.

Imortais.

Imortais.

Como não ousam ser os pretéritos.



But daddy doesn’t pray anymore

I guess he’s finally walking with the Lord.