e não vêm com sabedoria elementar nem com uma bagagem de grandes sucessos. Miséria, miséria, três vezes miséria é uma citação que não sei se existe, se parafraseei ou se inventei. Só sei que uso. Uso-a aqui porque Social Distortion cantou que misery can be a heavy load.
Veja,
não uso estas referências para galantear minha imagem ou para engrandecer minha
estima. Até porque, se há algo que preciso dizer ao chegar nestes últimos 20, é
que estou cansado de sujeitos que muito sabem e que sobre tudo conhecem. Estou
cansado dos sujeitos muito ponderados que têm opinião sobre tudo, que sobre
cada assunto dispõem de informação na manga – pedantes, abarrotam as esquinas e
as salas de aula e os eventos culturais e eloquentes encharcam cada canto da
cidade. Estou farto. Não os suporto. Pra mim, são todos uns cagalhões
intelectuais pretensiosos. Engraçado, certa vez citei isso no distante conto
sobre Ariadne. Patético. Agora estou me repetindo e me
autorreferenciando. À época, compactuava da opinião, mas hoje eu a compreendo
melhor, porque suporto menos esses sujeitos e porque eles sempre te olham de
cima, sempre supõem que você não sabe. E mesmo que eu saiba, fico farto de alertar
informação. Se eles se sentem garbosos por escutarem o som de suas próprias
vozes explicando o óbvio, então eu é que não impedirei vossos ímpetos de auto
apreciação.
Meus
últimos 20 são marcados pelo silêncio. Estou cansado. Não de viver, nada disso.
Pois se o desejo me faltasse, eu seria um suicida. E se suicida eu fosse, então
vocês estariam em posse de minha reles obra-prima acompanhada de minha ausência.
Neste momento, entretanto, estão em posse de um desabafo acompanhado de minha
mais enfadonha presença. Estou cansado mesmo é de conversar. Dos diálogos. Da
necessidade de sempre ter algo a dizer sobre qualquer que seja a coisa, qualquer
coisa. Sou dado a silêncios, sobretudo ao lado dos que muito sabem, dos que
são exímios detentores do conhecimento do universo, os sujeitos deveras
ponderados, sempre muito educados, sempre muito polidos, que falam para que
você julgue que eles te estimam, quando na verdade estimam os elogios que
recebem, as comparações que a eles fazem, e no fundo, no fundo mesmo, não
conseguem esconder as intenções por detrás do tom de voz, do olhar. Nos últimos
20, uma coisa que não mais me escapa é o olhar. Olhares ainda entregam tudo.
Coisa que nem o mais dissimulado dos pilantras consegue esconder. Aliás,
pilantras dissimulados possuem o olhar mais transparente do mundo. É o que me
faz desgostar deles. Sobretudo quando tentam ser ponderados.
Mas
isso aqui foi um longo devaneio. Estou cansado de tanta coisa nestes últimos 20
que quase fiz disso uma lista. Perdoem-me. Não estou cansado de aprender, de
descobrir, embora não tenha sede insaciável pela descoberta nem pelo
aprendizado – até tal estereótipo me irrita, trinca-me os dentes. Tenho, na
verdade, é preguiça. No entanto, quando ambas as coisas me batem à porta,
acolho-as com extremo carinho. De referências, gosto de me encher.
Recentemente, assisti meu mais novo filme favorito da vida: Chungking
Express. Ainda dá pra conhecer coisas novas à margem do último dos 20. Mas
sobre o filme nada tenho a falar no momento, que fique para outro texto, para
outro dia. Pois isto não é um ensaio intelectualizado a respeito da agonia
psicológica na jovem-sociedade-contemporânea, é apenas um
desabafo.
Pois não gosto de mim. Não gosto de quem eu sou. Sou a voz da
crítica. Quem tem que gostar de mim são os outros e agradeço por haverem
outros. Mas essa auto-antipatia me consome e me revolta. E quanto mais
revoltado, mais enlouqueço. Quanto mais louco, mais me torno eu mesmo pra que
me odeiem, pra que não gostem de mim, pra que de mim nada esperem senão risadas
e piedade. Não quero ser visto pelos vossos filtros. Quero ser visto pelo meu.
É autopunição. Estou me autopunindo por ser eu mesmo. Insuportável. Patético.
Gozado. Pouco merecedor das poucas coisas que tenho. No último dos 20, você já
sabe quem é, você já se conhece. Não há muito o que mudar. Vai se tornar o quê?
Começar tudo de novo? Em uma nova cidade no interior de sua persona? Arriscar uma nova vida no
subconsciente como as inverossímeis tramas hollywoodianas? Tudo isso para que,
ao fim da noite, o passado te bata à porta após a mera exposição no espelho?
Balela. No máximo, uma máscara. Um personagem. Um falso reflexo pra esconder o
bastidor da piada, a chacota por trás da chacota. No último dos 20, você não é
mais interessante, não é mais novo. Tudo o que queria ser era alguém como “Mais bicho que fruta”, escrito por uma Cassiana Maranha. Queria me enxergar sob
aquele filtro. Queria me ver através daquela poesia, mas temos todos
caminhos diferentes
e olhos diferentes
e visões diferentes
e retinas
e filtros
e últimos 20 diferentes.
No último dos 20, você não passa de uma prosa-pouco-poética de um
Felipe-qualquer. Quem é esse? O que ele fez? O que construiu? O quanto cresceu?
O que se tornou? Vai saber. A plateia urra em risadas. À sua volta, apenas a
saturação. Aqueles que te amam escolheram ficar por hábito ou por que se sentem
obrigados? Por favor, o questionamento é retórico. Não responda. Lentamente,
estão aqui e daqui talvez partam. Se até tu te cansas de ti, é natural que os
outros também o façam. Vai só te sobrar o sangue e esta jaula que te é o corpo,
a casca obsoleta, sem atrativos. Nem através da beleza a futilidade existe. A
futilidade seria um alento, um refúgio, o vazio dos corpos, da burrice, da mera
casca bonita. Até pela beleza fui vilipendiado. E da saúde fui expulso. Os
médicos chamam de suicídio passivo o que a população de terceira idade,
com o tempo, escolhe fazer quando a solidão e o cansaço batem à porta. Escolhem
deixar de tomar o remédio regular. Uma consulta esquecida. Um tratamento
ignorado. Um fim premeditado com a sorte do certeiro acaso. Optam por, lentamente,
não anunciarem as dores, deixam de se importar com o autocuidado. Certo dia, um
rim que para de funcionar sem solução para a cura ou, ocasionalmente, um ataque
fulminante. É isso o que estou, conscientemente, fazendo desde os 12 anos de
idade, não é? Quando aquele avião-UTI atravessou uma baía para me buscar, como
se minha vida valesse a pena. Quando uma criança precisou crescer ouvindo que
se não fizesse isso e não comesse aquilo e não agisse dessa forma e não
seguisse todos aqueles passos indicados por médico 01, 02 e 03, então
conseguiria viver uma vida longa e próspera, sem pensar no rim que falharia, nos
olhos que se cegariam e toda a sorte de males que uma criança não deveria
escutar. Foi isso o que estivemos fazendo em todos esses anos? Ignorando e
cuspindo e negligenciando esses enfadonhos conselhos de saúde? Foi isso o que
fizemos? Esse suicídio passivo? Foi isso o que meu velho avô fez? Meu velho avô
que até ano passado comigo compartilhava essa data e que este ano comigo não
mais estará? Foi isso? Ou foi só a mais pura e imbecil teimosia masculina (em
mim igualmente existente) de ignorar especialistas, tratamentos, consultas e
todo aquele blablablá médico? Não o culpo por isso. Aliás, só o respeito. É
preciso coragem para viver assim e lidar com as consequências. A perda. A
insuficiência. A ineficiência. A ausência. As possibilidades perdidas. O terror
da intubação e o assombro da cama de hospital. E o próximo dia 06 com um dos
lados sozinho, sem o outro, sem o par que gostava de festas e de presentes e de
bolos e de palmas e se alegrava com as ligações recebidas e disputava quem
ganharia mais presentes.
Olha só, vô. Não sei quando nem como entraste neste texto, embora
ele tenha propositadamente nascido por tua causa. Estas palavras escolho aqui
depositar pois aqui poucos me conhecem, só algum admirador desvairado ou
admiradora sem jeito que acha que sabe o que sou, quem sou, que me vê apenas
através do filtro da idealização, fingindo, forçando, nada genuíno. Até isso é
ofensivo, a falta de sinceridade – não que dela eu precise agora. O
curioso é que até isto aqui ficou obsoleto, este depósito mesquinho para
palavras ordinárias, não lidas. Isto aqui que me era um refúgio. Uma
distração para os dias ruins. Para o cansaço dos outros lugares onde todos
sabem quem eu sou, como eu sou: uma pilha de frustrações, de revoltas,
de chatices, de palavrões e de um amontoado de verbetes sobre os quais ninguém
mais liga, ninguém dá a mínima. Até os que me conheciam se foram, estão indo.
Os que ficam, são os que valem. É outra coisa que você ganha no último dos 20:
caso não tenha sucesso, terá os que valem a pena. Poucos, bem poucos. Exceto, é
claro, se seus olhos forem os olhos de pilantras dissimulados. Então, neste
caso, estarás cercado por uma infinidade de gente. É o que chamam de sucesso no
último dos 20.
Parabéns.
Qualquer dia desses até daqui vou sumir – e não se preocupem,
nunca fui partidário a ameaças, já avisei no início que isto seria um desabafo,
não minha reles obra-prima. Odeio, por exemplo, falsos suicidas. Eles mancham a
causa. Com as pílulas, foi assim: primeiro fiz. O comunicado da tentativa
fracassada veio depois. Qualquer dia desses, até daqui vou sumir – não é uma
ameaça, é só uma metáfora. Com um aceno, sem um aceno ou (na pior das
hipóteses) na apatia do cotidiano, na covardia da sobrevivência, na morte
lamentável que é a aceitação da vida. No marasmo. Na modorra.
Chego
ao último dos 20 meio aquém, meio sei lá. Dez anos atrás, meu peito clamava por
amor, por romance. Agora que o tenho, meu peito clama por ser alguém, por ser
alguma coisa, por ser algo melhor para merecer o que possuo, para merecê-lo, para não parecer
nem ser ingrato. Porém tenho sido vacilante como as boas histórias românticas
raramente nos mostram. O desânimo do eu, o desânimo de mim. O aprendizado que
se esvai, os hábitos que se empilham, que te cegam, que te tornam gradativamente desinteressante, apático, sem atrativos, sem graça, o-sujeito-que-deveria-agir-que-nem-o-outro-sujeito-pois-o-outro-sujeito-é-um-sujeito-bacana – até os livros paraste de
ler e até aquela veia artística deixaste morrer. É o silêncio do cansaço que te
toma quando os sujeitos muito ponderados e sabedores de tudo começam a falar a
falar a falar e a tomar conta do mundo e diante de ti são comparados e louvados
e adorados e tudo isso de novo.
Tudo
vai piorando
no
último dos 20,
caso
não tenhas olhos de pilantra dissimulado e caso não tenhas, ainda, alcançado
sucesso e emprego e um pedaço de papel que digam palmas e parabéns,
finalmente
és
alguém!
Até as
nuvens na pele, por exemplo, estão piorando. Sabias? Estão no couro cabeludo,
nas costas, onde meus olhos e o reflexo da vergonha não alcançam. Nos cotovelos
e nas extremidades das extremidades, nos ossos dos pés e nos joanetes não crescidos.
Mais que isso, nem sei como andam as retinas, que anos atrás, no auge do
desespero da cegueira, até me renderam bons textos sobre kiara. Nem sei
como andam os rins. Nem sei como caminha este pâncreas inútil. Ruim nascer
defeituoso. Pior que isso é não saber lidar com os próprios defeitos e ter de
viver a todo instante com as mazelas deste Destino piegas. Destino foi
um ótimo feito. Não um dos meus favoritos, mas um dos meus mais bem tecidos.
Chego
ao último dos 20 cheio de lamentos. Sem conquistas. Sem vitórias. Sem sequer a
chance de produzir herdeiros – não que eu os queira, pois assim como Brás Cubas,
de minha miséria tenho consciência e minha miséria não ousarei transmitir.
Chego ao último dos 20 sem o único sujeito que me fazia enxergar alegria nesta
data. Mas vale lembrar que, apesar das derrotas que moldam esta psique em
frangalhos, foram os melhores vinte e oito anos que pude ter, e agora serão
vinte e oito próximos anos esquisitos, solitários sempre nos dias 06, sem o par
da dupla que adorava bolos e refrigerantes e palmas e parabéns e assoprar velas
e disputar quem ganhava mais presentes. Vai ser só solitário, vô. Porém só mais
um tranco no caminho, certo?
Só
mais
um.
Que
miséria de data. Que carga pesada a se carregar. Juro que esta será a última
vez que sobre isto escrevo, pois será a última vez que recordarão desta data. E
só para cumprir com o prazer da contradição, e só para ser essa eterna
incongruência discursiva, citarei, sim, Chungking Express:
“Na
verdade, nasci às 6:00 da manhã. Então eu realmente terei 25 anos daqui a dois
minutos. Em outras palavras, já passei um quarto de século neste planeta. Para
celebrar esse momento histórico, decido ir correr. Me livrando do excesso de
água no meu corpo. É uma sensação boa. Ao deixar a pista, eu decido me livrar
do meu pager. Porque eu sei que ninguém vai me ligar hoje”.
Mas até em Chungking Express há um desfecho satisfatório, meio minuto depois. Os desfechos satisfatórios ainda podem vir. Aliás, não são os desfechos. São as realidades boas o que me mantêm e manterão aqui pelos próximos 29 anos – os pouquíssimos amigos, o amor, o círculo e também o fodido orgulho de não ser um cagalhão intelectual pretensioso de olhar dissimulado. A tudo isso dedico um pequeno parágrafo de seisepoucas linhas, porém é o que aqui me segura. É o que faz valer a pena.
E por fim, se este texto for uma comparação, então tais palavras são como suor. Todos os
escritores suam para que as lágrimas não caiam. Se todos chorassem ao invés de
escreverem, seria um mundo mais triste e menos poético. Não que isto seja
poesia. Não que eu seja um escritor – só um sujeito se valendo de coesão para
formar alguma vil coerência. Qualquer um é capaz de escrever um texto bem
alinhado e bem arrumadinho.
Até
porque isso não é arte.
É só desabafo.
E só pra nunca esquecer:
parabéns, vô.
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