And I
went downtown to look for a job
I had
no training, no experience to speak of
And I
looked at the holes in my jeans
And I
turned and headed back.
(Story
of my life – Social Distortion)
Eram
quatro e cinquenta e três da manhã quando excluí o PDF do meu diploma. Suspirei
com pesar, porém com desencargo. Toda a frustração de mais de uma década havia
sido incinerada do computador e de uma pasta no Drive. Excluir
arquivo>esvaziar lixeira e em seguida>limpeza de disco para apagar
qualquer vestígio dos 174kb que reduziam um terço da minha vida a fracassos e
arrependimentos.
Engraçado.
Antigamente, não há muito tempo e antes de uma pandemia, os diplomas eram
impressos e entregues pessoalmente aos sobreviventes das egóicas guerrilhas
acadêmicas. Dizia-se que um ex-veterano ou uma ex-veterana aguardava por até um
ano para receber um pedaço de papel, mesmo depois da cerimônia de maquiagens
bem-feitas, roupas bem alinhadas e fotografias profissionais que jamais
ganhariam álbuns ou visões, pois os preços eram exorbitantes e
quem-em-sã-consciência-consegue-pagar-tudo-isso-nessas-fotos? Os tempos são
outros. Hoje em dia, tais quais os diplomas, as fotos eram enviadas através da
nuvem, em pastas com tempo limitado, sem teor físico e perecíveis ao à tecla
delete.
Em profunda e sábia análise, para que aquele PDF serviria? Era meados de julho, exatamente um ano antes daquela madrugada, quando cadastrei meus dados na recepção do Parque Office e fizeram o registro da minha biometria facial. Na mensagem de texto recebida no dia anterior, indicavam-me a sala comercial 907, mas o entrevistador nos encontrou no chique hall e nos conduziu até a sala 109. A entrevista foi rápida, fácil até: quais os seus objetivos? quais os seus sonhos? Como você se enxerga daqui a cinco anos – e essa, confesso, foi a emboscada mais cruel, sobretudo para mim, um sujeito meio Charles Bovary. Todas aquelas perguntas foram vencidas na boa base da mentira e da quase-impecável oratória. Não é sobre dicção. É sobre oratória. Escolhas lexicais. Quais verbetes utilizar e quais palavras encaixar. Concordância nominal. Concordância verbal. Conectivos bem-dispostos, não os incomuns que quase não se escuta, não aqueles utilizados em textos acadêmicos e estrategicamente escolhidos para evitar repetições e não tornar a produção redundante, mas os preciosos de se escutar, que te amaciam os ouvidos e impressionam aqueles que não estão tão habituados a encontrá-los. Não. Não é sobre dicção, pois a minha é péssima, um fiasco - sequer desenvolvida em mais de dez anos num curso que deveria durar apenas quatro.
Não,
não é sobre uma oratória impecável.
É
sobre mentiras.
— Quantos
anos tu tens? — perguntou-me o entrevistador.
— Trinta.
— Trinta?
Mentira.
— [Risos cansados, porém dissimulados] é
verdade.
Essa
era uma verdade, uma das poucas.
— Me deixa
ver tua identidade — pediu ele.
[Entreguei
o documento]
— Caramba,
nem parece — respondeu-me o rapaz que certamente deveria ser 43 anos mais novo
que eu. — Bacana. Muito bem. Podes me acompanhar? Vamos à sala onde o [nome
fictício] vai te explicar como vai ser nossa semana de treinamento. Dependendo
do teste de hoje, vocês serão chamados para retornarem amanhã.
— Certo.
Somos
conduzidos, eu e outro candidato, a uma sala no andar de cima onde vários
outros candidatos estão sentados. Todos impecavelmente vestidos com suas
melhores roupas para uma entrevista ou seleção de emprego: camisa social
branca, calça preta e sapato social. Naquela sala, o [nome fictício] nos
apresenta o funcionamento do negócio, o regime de trabalho PJ e a altíssima
porcentagem de 0,007% de comissão em vendas que variam entre 100 mil e 1 milhão
de reais. Nosso negócio de consórcios de moradia é garantido e, melhor: não
trabalhamos com regime CLT (é claro, não estamos dizendo dessa forma, não tão
explicitamente assim), aqui sua comissão depende inteiramente do seu esforço e
do seu trabalho!
— É
CLT? — Pergunta outro entrevistado, tão mais novo que eu e superiormente mais
maduro. De longe, parecia ser o mais esperto entre nós, já que não voltou nos
dias seguintes de treinamento.
Eu soube
da idade dele porque quando minha foi perguntada por [nome fictício], não pude
inventar mentiras e a isso vieram as respostas corriqueiras de sempre, que me
soam mais como lembrete de fracasso do que elogio à uma aparente juventude.
No entanto,
diante da pergunta, [nome fictício] ignorou com o mais sagaz dos dribles de
vendedor. Por outro lado, [nome fictício]
também era um cara legal. Homem alto, bonito, simpático e de pose madura e
desenvoltura que, aos 30 anos, eu jamais conseguiria. Ele só tinha 26. Pai de
família. Casa própria. Contou-nos que começou com um negócio na feira, cujo
aluguel a locadora cresceu os olhos ao menor sinal de sucesso. Sem
perspectivas, sem carteira assinada quando foi apresentado àquele ramo. Ele começou
no mesmo lugar onde estávamos: naquela sala, primeiramente como consultor de
vendas, com a única e exclusiva tarefa de passar o dia inteiro fazendo ligações
a prováveis clientes que deixavam seus números pela internet, agendar com uma
reunião em que eles, os gerentes como o [nome fictício], fariam o restante da
negociação.
— Se fecharem
negócio, vocês terão os seus 0,007% de ganho. Estão vendo o [mais um nome
fictício] aqui? Só no mês passado ele realizou seis vendas que totalizaram um
milhão e cem mil reais. Fizemos uma festa pra ele — [nome fictício] mostrava
fotos em um slide. — Ele recebeu a comissão de 0,007% e mais uma televisão de
43 polegadas. Fantástico, né? Esse é o caminho que vocês podem alcançar.
Mas
como eu disse, [nome fictício] realmente parecia um cara legal. Ele se afeiçoou,
contou que me emprestaria livros de perseverança e de estratégia de negócios,
parecia ter enxergado em mim (não nas entrelinhas, pois nas entrelinhas, mesmo
casado, havia oferecido carona para uma das colegas entrevistadas) algo
promissor, um pupilo ou uma isca cega para o negócio de consórcios, sobretudo depois
daquela redação eliminatória que escrevi: um amontoado de mentiras inflamadas
por um discurso sonhador e embebedado de meritocracia barata. Viu? Não é
questão de escrever como Nelson Rodrigues ou como uma Clarice Lispector, não é
sobre falar com a eloquência e a cadência de uma Érika Hilton. É sobre mentir.
Introdução, desenvolvimento e conclusão. Coesão e coerência. Conectivos bem
encaixados. Escolhas lexicais certeiras (aqui, sim, faça uso das palavras
incomuns!). Concordâncias nominal e verbal. E só para finalizar, um toque
muito sutil e impactante de poesia. Sem teor artístico. Apenas teor mercenário.
Você precisa de um emprego. Seja ele qual for. Mesmo um em que a você, dia após
dia daquela semana, sem auxílio de transporte ou de alimentação, ensinem a
espalhar fotos irreais de casas na OLX ou em grupos de Facebook.
— E
apenas em uma delas — ensinou-nos [nome fictício] no terceiro dia de
treinamento —, em apenas uma dessas fotos vocês colocam, em uma fonte muito
pequena, quase imperceptível, a legenda “imagem ilustrativa”. Não
estamos vendendo casas. Somos um consórcio. Vendemos a oportunidade da compra
da casa. Quando o cliente fechar negócio com a gente, liberamos o dinheiro e o
cliente vai atrás do terreno. Entendem?
— Então
não somos, tipo, corretores? — perguntou a [moça de nome fictício] a
quem [nome fictício] havia oferecido carona.
— Não,
não somos.
— E se
questionarem de que empresa somos? — perguntou o [outro rapaz de nome
fictício], que acabara de sair de uma famosa pizzaria da cidade e enxergava
naquela oportunidade um caminho rápido para o sucesso absoluto, coisa que um
regime CLT jamais proporcionaria. Não que ele estivesse errado sobre a segunda
parte.
— Vocês
não respondem. Nem começam a ligação informando que pertencem à [nome fictício
da empresa de consórcios]. Isso não importa. Os clientes já deixaram o número
deles com a gente através de tráfego pago.
— Ok —
todos respondemos.
E
enquanto toda essa ladainha nos era explicada, e enquanto eu avancei até o
terceiro dia naquele estranho ambiente que cheirava ao mais puro coach e
iniciava, desde oito da manhã, uma rotina exaustiva de ligações com discursos
eloquentes e decorados, gritos ritmados à la super palestras de RECUPERE
SUA MASCULINIDADE E SEU LEÃO INTERIOR, e enquanto até o bater de um sino dentro
daquela sala minúscula com 20 pessoas espremidas, para motivar a [nome fictício
da equipe que sinceramente não lembro mais o nome], eu pensava:
isso
até parece com esquema de pirâmide, mas eu preciso de um emprego.
Tudo
isso para dizer que, durante os dias de treinamento, todos os líderes de venda me
perguntaram uma e duas e até três vezes de o porquê eu estar ali:
o [primeiro
nome fictício], o cara legal; o [segundo nome fictício] também era professor
por formação. Um sujeito igualmente legal e que teve, em algum momento, pela
mais pura necessidade ou ingenuidade ou falta de senso crítico ou todas essas
coisas juntas, o destino de seguir aquela profissão, editando fotos
ilustrativas pela internet e atraindo pessoas que sonhavam com a casa própria,
custe o que custasse, com a mesma necessidade ou ingenuidade ou falta de senso
crítico que me levou até aqueles três dias de treinamento; e o [terceiro nome
fictício], este homônimo ao meu, era um sujeitinho chato, com a clichê arrogância
das bichas-más orbitando o umbigo, sempre fazendo questão de esquecer o nome de
todos os candidatos, inclusive o meu, que era o dele também, e de não nos
deixar falar até o final, exceto o rapaz que trabalhou na pizzaria, por quem
desenvolveu instantâneo interesse puramente profissional, claro.
A todas
as perguntas deles, eu respondia:
— Eu
só dou aulas de reforço. Tenho um único aluno e embora a família dele seja
muito generosa, amiga e parceira comigo, já estamos em julho e eu tô sem
dinheiro. Eu ganho dinheiro quando ele precisa ter aulas ou às vésperas das
provas. Em meses de férias escolares eu fico quebrado e não quero depender
disso, o que eu quero mesmo é
depender
de um regime de trabalho CLT. Repetitivo. Massivo. Um emprego, qualquer um,
que não exija de mim a formação de cidadãos pensantes ou o comprometimento
mental com crianças e adolescentes e adultos que vão me olhar com desprezo e
questionar “por que é que eu preciso estudar isso? eu nem gosto de português”. Mas
nenhum desses empregos me aceita. Desqualificado demais. Sem experiência
demais. Sem nada a provar. Sem nada a oferecer. Sem sequer o tempo de vida a
ser vendido valendo a pena. Eu só queria um emprego CL...
— Mas,
lembrem-se — ecoou a voz do [nome fictício em minha cabeça] —, não trabalhamos
em regime CLT — Era o que sempre respondiam nas entrelinhas. — Somos um regime
PJ e isso garante mais autonomia de tempo e liberdade financeira a vocês.
Combinado?
—
Combinado — respondíamos em desespero.
No
quarto dia de treinamento, ignorei o despertador do celular. Quando me
questionou por mensagem, respondi ao [nome fictício]: desculpa, mas não vou
mais poder ir. De antemão, agradeço pela oportunidade e por todas as coisas que
aprendi nesses últimos dias.
(percebe?
outra mentira bem contada).
O que
aprendi naquela semana foi que a minha formação não valia de nada. O [segundo
nome fictício] também era professor e havia optado por aquele caminho, porque a
experiência na docência não é feita para todos e nem todos a desejam. Minha
capacidade de escrever e de dizer boas mentiras nem era tão boa assim, não para
aquele ofício de vendedor e de ludibriador via-celular.
Incapaz
de passar a perna,
incapaz
de professorar.
E,
acima de tudo,
honesto
demais para fingir qualquer uma dessas tarefas.
Até
Charles Bovary tinha suas próprias utilidades.
Esta
formação não tem me servido sequer para algum emprego na cidade: recepcionista
& vendedor & vendedor interno & vendedor externo & vendedor
porta à porta & atendente & atendente em regime temporário (mês de
julho > com necessidade de contratação urgente!) & atendente de motel
& home office & auxiliar administrativo & auxiliar administrativo
home office & auxiliar de cozinha & auxiliar de serviços gerais & call
center & vendedor & vendedor de artigos esportivos (candidatos com
1,80m de altura e com interesse por esportes) & consultor da alegria &
estoquista & caixa (com experiência mínima de setenta e cinco anos) &
vendedor & mais vendedor de novo & seja lá o que Deus não reservou para
mim.
Eram
quatro e cinquenta da madrugada quando eu ainda tinha na tela diante de mim o
diploma aberto em arquivo PDF (deuses, eles nem mais entregavam impresso pra
que você pendurasse seus desperdícios numa moldura):
O
Reitor da Universidade [nome fictício do estado fictício], no uso de suas
atribuições e tendo em vista a conclusão do Curso [nome fictício] em 09 de [mês
fictício] de [ano fictício] e a colação de grau em 21 de [mês fictício] de [ano
fictício], confere o título de Licenciado em [nome de curso fictício] a
[meu
nome não-fictício]
Carteira
de identidade [nº não-fictício] [órgão não-fictício/sigla de estado fictício]
de nacionalidade brasileira, nascido(a) em [dia & mês & ano fictícios],
natural do [estado fictício]
e
outorga-lhe o presente diploma, a fim de que possa gozar de todos os direitos e
prerrogativas legais.
[capital/estado
fictícios], [dia & mês & ano fictícios]
[nome
fictício]
Reitor.
Não
estou gozando, senhor Reitor. Não estou gozando desde os meus dezoito ou vinte
anos de idade e não tenho gozado muito por aí. Exceto, é claro, neste
momento:
já são
cinco em ponto da manhã e um peso imenso parece ter sido retirado dos meus
ombros após excluir o PDF. O mesmo peso que me foi retirado naquele mês
fictício de um ano fictício. Quer saber de algo que não é mentira, senhor
Reitor? Pois bem, aqui vai: contra todos os meus esforços, eu fiquei feliz na
tarde daquela cerimônia de maquiagens bem-feitas, roupas bem alinhadas e
fotografias profissionais que jamais chegaram a ganhar álbuns ou visões, pois
os preços foram exorbitantes e
só-um-trabalhador-CLT-em-sã-consciência-consegueria-pagar-todo-esse-preço-exorbitante-naquelas-fotos-perdidas.
Contra
todos os meus esforços, naquela tarde de um dia fictício de um mês fictício
& de um ano fictício, eu estive feliz. E esta não é uma mentira bem
elaborada com porca oratória ou boa coesão e coerência. Embora você, caro
Reitor, não seja capaz de ver nas fotos que nunca existirão nem serão
divulgadas por aí, eu estive feliz. Não porque houve a promessa de um diploma
físico ou digital. O diploma pouco importa. Não fiz pelo diploma. Ele existe
apenas no lixão digital ou na burocracia acadêmica que não farei questão de ir
atrás, nunca mais.
O
diploma importa tanto quanto um autor que nunca terá seu livro publicado por
alguma editora que aceitou o original, porém jamais enviou qualquer contrato,
mesmo sob ingênuos pedidos. O diploma + a obra não publicada, tendo existido
uma única vez, já cumpriram com sua função; não são coisas para se estampar ou
para se esbanjar, sequer para serem comemoradas.
São
coisas que existiram e por terem existido, bastaram.
É como
escrever:
você
não escreve para ser eterno ou para provar algo a alguém. Você escreve por
desencargo, bem como exclui diplomas pela mesmíssima razão.
Nem
tudo precisa existir para ter algum valor.
Às
vezes, e bem frequentemente,
as
coisas existem e não possuem valor algum.
A
única coisa valiosa que deixei para trás, infelizmente, foi aquele emprego em
regime PJ de consórcio imobiliário com fotos de casas meramente ilustrativas.
Era o emprego dos sonhos. O único que me aceitou, que cagou para a minha inútil
formação e me chamou mesmo assim. O único a me dar o devido valor.
E isso
não foi uma mentira.