10 de março de 2018

queimados, kiara




  
A doença evolui muito rapidamente, diz a endocrinologista. Em seis meses talvez (ênfase no talvez), muito provável, ela tenha evoluído bastante, diz o doutor que é o especialista destas retinas, mas também há outro doutor que trata as dores neuro-

lógicas de kiara que, francamente

(o mais amigável e compadecido de todos eles até agora),

diz que a doença (a causadora de todas as outras,

inclusive da primeira que iniciou estas linhas-versos) queimou todos os seus nervos por dentro, inclusive dos olhos.

kiara suspira.

não possui mais tempo para sentenças regulares ou letras maiúsculas após os pontos ou vírgulas devidamente posicionadas como aprendeu na infância, já que toda a infância futura e passada parece perdida. todas as noites agora os quartos ficam mais escuros, especialmente os quartos da casa dos avós e por isso tanto evita visitá-los e tanto evita passar longos dias e não-mais-belas-noites lá

com eles, embora nem sequer desconfiem da verdadeira razão, acham que kiara está fechada em si mesma nos últimos anos por conta de uma solidão crescente ou de uma mudança magnânima de todas aquelas coisas boas que um dia foi e pelas quais a família sempre se orgulhou, porém que agora não é mais. infelizmente ela não mais os visita com frequência porque tem medo dos dias (devem ser uns quatro a cinco por semana) em que acorda com todas as coisas escuras ou com os contornos da lajota piscando sob seus pés em um tom negro de um branco já perdido ou durante as noites quando não consegue enxergar as feições no rostinho da irmã de pele-jambo ou os próprios olhos ou o

próprio rosto na frente

do espelho.

mas se há algo que conforta a pequena kiara de olhos futuramente deficientes, cegos,
queimados, escuros e, talvez, muito provavelmente em seis meses ou menos, é que até com as piores coisas você se acostuma. kiara sabe disso porque hoje, nos dias em que acorda abrindo as janelas para a luz das setes horas iluminar o quarto, iluminar a visão e dar conforto diante das lajotas piscando e dos contornos indecifráveis, ela espera de trinta a quarenta minutos porque já sabe que em 1hora os olhos estarão quase-normais novamente e tudo,

tudo com certeza,

voltará ao normal. pelo menos por enquanto, quando ainda consegue enxergar os documentários do National

Geographic sobre Truques da Mente às oitoemeia contando como funciona o cérebro

– esta máquina incrível –

e como funcionam

a visão humana

e as córneas

e as retinas

e os nervos

que talvez,

com sorte,

não estejam queimados,

se você não for kiara

e se tiver mais
sorte ainda.


Nenhum comentário:

Postar um comentário