7 de julho de 2018

Lavinha






Um dia desses, encontro Lavinha.
Ela está descendo do carro após estacioná-lo. Coloca as chaves na bolsa, olha-se no reflexo e atravessa a rua. Na verdade, corrijo: é ela quem me encontra. Grita meu nome, abre os braços – os dentes, enormes, agora corrigidos. Não que fossem errados antes. Retribuo o abraço. Eu amo o sorriso das pessoas que passeiam ou que passearam por mim, porque nunca fui muito de exibir sorrisos, evito-os ao máximo: o rosto transfigura, os olhos somem, o desalinho odontológico evidente. Nos outros é mais bonito, coisa linda de se ver. E embora eu já achasse naqueles tempos Lavinha um belo pedaço de alegria e formosura com seus quatro milímetros de espaçamento entre os dentinhos da frente, ela permanece igualmente linda. De um jeito diferente, mas irônica e igualmente linda.
Ela me esmaga. Os braços mais fortes, o quadril mais firme e a quentura dos braços sempre um travesseiro bom. Pergunta por onde tenho andando e digo que por esta mesma rua, quase todo santo dia. Tenho uma sacolinha de pães carecas nas mãos. Ela continua sorrindo – em suma, este relato é sobre o sorriso e sobre o pé direito de Lavinha.
O sorriso, estenderei. Quanto ao pé, já chego lá.
Ao lado dela, voltamos à padaria. Ela olha para minha sacolinha rala, diz que acabei de sair do trabalho e por coincidência parei aqui. Todo santo dia, menino, eu passo na frente dessa padaria e o cheiro do pão parece tão bom, até os salgados me chamam de dentro do carro. Lavinha é dessas que fala sorrindo ou que floreia enquanto fala. Aponto para a estufa, digo que tem um lanchão com creme de frango que é do cacete. Então, sem rodeios, ela compra três daqueles lanchões – dois de frango e um de queijo com presunto – e mais uma porção farta de pães. Enquanto esperamos o resto da sacola, ela me pergunta sobre o que ando fazendo. O de sempre, tu sabes. Escrevendo aquelas coisas lá? O “aquelas coisas lá” de Lavinha não soou desdenhoso como soa na boca do resto do mundo. Agora sou eu que estou rindo, mas não com a mesma desenvoltura ou transparência que Lavinha. A parte boa, claro, é que ela sabe disso, e continua: Eu vi as tuas fotos nos eventos e na divulgação. Estás em algum projeto agora, escrevendo alguma coisa? Alguma coisa?, pergunto, retoricamente divertido. Sempre. Dou de ombros. Lavinha pega as sacolas e finalmente faz a pergunta: me conta mais, posso tomar esse café na tua casa? Ela levanta a sacola com os salgados e os pães, e finalmente compreendo o porquê.
O caminho até minha casa é uma porção de releituras do passado e comentários sobre metade das pessoas do colégio. Lavinha não fala muito sobre os defeitos de outras pessoas, na verdade está mais centrada nos nossos: o cabelo ressecado que batia na cintura, a franja esquisita, as unhas pretas, os cadarços pretos, os cílios pretos, o rímel, as sombras pretas e os batons em sete diferentes ramificações de preto ou cinza. E não termina nela: continua pelas coisas esquisitas que eu escrevia na parte de trás do caderno, os desenhos aleatórios nos cantos das apostilas de física e os cadarços vermelhos logo após as aulas de literatura sobre Álvares de Azevedo ou a castrice de Canastrão Alves.
Estamos sentados no chão da sala, as xícaras fumegantes no calor da tarde de agosto, os pães cortados e recheados de margarina em excesso ao lado do terceiro lanchão (o de queijo com presunto) que decidimos dividir em partes iguais.
Em retrospecto, rimos mais de nós mesmos do que dos outros, e talvez eu até esteja menos resistente ao pensamento de como meu rosto ficará ou o que meus dentes demonstrarão. No centro da minha sala, Lavinha parece me parece um velho guru que há muito poderia ter partido para o nirvana no interior da caverna, mas deliberadamente permanece no centro da vila para receber peregrinos e guiar os nativos e nutrir as raízes do povo. Nesta posição, com pernas dobradas e pés descalços, Lavinha é a mulher da qual detém verdades não absolutas sobre questões inconstantes. Lavinha é aquela que pouquíssimos de nós se tornaram.
Olhando para os pés dela, especialmente para o direito, onde há uma trilha levemente espessa, uma cicatriz com a largura de um dedo anelar, iniciando-se do flanco esquerdo do calcanhar, circundando a dobra dele e estendendo-se até quase tocar o dedinho. Lavinha acompanha meu olhar, percebe meus três segundos de silêncio e abre um sorrisão, após ter certeza de ter mastigado todo o pedaço do lanchão. É ela quem primeiro diz:
– Sinto falta daquela época.
– Eu também.
– Tô falando especificamente da época do hospital, na verdade.
– Ah.
– “Ah” – ela repete, brincalhona.
– Tu nem de longe foi o meu melhor namoradinho.
– Tu nem de longe foi a minha primeira melhor namoradinha.
Nesse momento gargalhamos. Ambos de boca cheia.
No meio de cabelos esquisitos, cadarços coloridos e apreço mais pelo romantismo do que pela tão aclamada escola que viria em seguida, há as memórias “da época do hospital”. Entro nele e Lavinha está cercada pelas irmãs, o irmão e a mãe.
– Lembra do olhar que mamãe te deu? – ela pergunta sorrindo, é claro.  Divertindo-se da memória com os olhos lagrimando.
– Tua mãe ainda me odeia?
Ela balança a cabeça freneticamente, enfatiza que não e ressalta:
– Só que até hoje ela me pergunta se tu ainda escreves “aquelas coisas doidas”.
Rimos novamente.
Reponho o café em nossas xícaras.
Repartimos o terceiro lanchão.
Quando entro no apartamento do hospital, no auge de meus dezessete anos, a família de Lavinha me encara com os olhos pesados. Somente a irmã mais velha, provavelmente aquela a quem os reclames de Lavinha mais esquentam os ouvidos, é quem quase salta sobre mim com unhas preparadas e bicudas engatilhadas. Julga-me má influência. Já a mãe contorna a situação, beija a testa da filha com ar de repreensão zelosa, sorri para mim (lembro do sorriso porque o sorriso naquela família é característica ímpar, talvez pelos dois, três ou quatro milímetros de afastamento entre os dentes, dependendo da predisposição genética que você recebeu).
Às vésperas dos dezessete e, portanto, no auge dos dezesseis (perdoem-me a redundância, mas o faço por vias propositais), lá pelos céus de escorpião, após exaustiva ingestão de Pais e Filhos, do Legião Urbana, e demasiada exposição às páginas de O Apanhador no Campo de Centeio, Lavinha decide pular a janela do quarto, num mergulho final do terceiro andar até o chão. Os relatos são diversos, as testemunhas aos montes, com destaque para o de dona Néia do 23: “a menina gritou uma coisa esquisita, acho que era um recado de suicida, minha filha. Falta Deus no coração dessas crianças”.
Quando questiono, ali mesmo no apartamento do hospital, o que havia gritado antes de pular, Lavinha responde que foi uma frase do Holden, ora bolas. Ora bolas era uma expressão aceitável aos dezesseis. Tentativas de suicídio, para alguns, também era. Mas é tarde da noite e por isso rimos baixo para que o resto da família Medeiros não escute, rimos escondido porque não podemos transbordar diversão ante situação familiar tão trágica, vergonhosa e constrangedora.. No chão desta sala, entretanto, gargalhamos com olhos lacrimejando.
– Eu tenho dezesseis anos agora – Lavinha imita a mesma frase que disse aos dezesseis – e só posso morrer uma vez aos dezesseis.
As redundâncias, ressalto, tanto as minhas quanto as dela, são deliberadamente propositais.
– Essa foi a frase? – Pergunto.
– Não, não, besta.  
Então Lavinha dos dezesseis anos, e não a Lavinha de agora, me repete exatamente a epifania de Holden, vírgula por vírgula, e da qual não transcrevo agora por deliberada intenção também.
Que Apanhem-na.
– Por que tu fizeste isso, porra? – pergunta meu Eu insensível de dezessete anos à primeira melhor namoradinha da época.
O Eu sensível de dezesseis anos de Lavinha responde:
– Por todos os irmãozinhos perdidos.
À época, muitos anos antes de entendê-la e imitá-la à minha própria maneira, o meu Eu de dezessete não a compreende e opta por manter-se calado. Afinal, Lavinha sempre fora o velho guru parado no centro da praça, mesmo quando não agia como tal.
Por isso aos dezesseis Lavinha pula do terceiro andar. Desce estabanada pelo ar após um cálculo equivocado e tem o pé dilacerado pela grade no muro.
– A dor doeu mais que a dor – diz a menina chorosa na cama do hospital. – A dor do corte, sabe? Não a da queda.
E pelos meses seguintes, até muito depois do natal, do fim do ano e da viagem definitiva para outro estado, ela faz fisioterapia. Mas é mastigando uma banda de pão que gesticula as mãos, divertidíssima, para que eu preste atenção:
– Posso confessar uma coisa que não conto pra ninguém?
– Claro.
Ela se inclina, suavemente. As mãos em concha sobre a boca, a voz baixa para revelar o segredo:
– Até hoje eu manco. Quase ninguém percebe, só minha irmã.
A tarde prossegue até o zênite crepuscular, quando ela anuncia sua partida com um abraço e promessas de vamos marcar, embora saibamos que nada será marcado no final. Antes de calçar os sapatos, entretanto, espio uma vez mais a marca rosada e camuflada no pé dela.
Dessa distância, olhando para a Lavinha de agora, a cicatriz quase parece imperceptível, exatamente como os quatro milímetros entre os dentes dela que sumiram e que continuam a radiar um baita sorriso fraterno.
Ela se despede com um forte abraço e buzina, expansiva, enquanto acena, deixando a sacola inteira de pães sobre minha mesa em forma de presente.



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