4 de setembro de 2019

Lições de banho n.5





Aqui os conhecimentos científicos e técnicos não terão lugar – embora sejam, de suma, importantíssimos para a conclusão das tarefas, e se os leitores (aqueles específicos a quem estas palavras serão endereçadas) dispuserem de tempo, dedicação e interesse... lume! Tal relato cabe somente ao ato do fazer, ao ato de pôr as mãos na massa como os jovens interessados aprendem, quase de berço, o sagrado ofício. E de sagrado, o ofício a seguir alça como nenhum outro, quiçá até mais, sendo o maior dos ofícios sagrados delegados a homens e mulheres, embora seja mais forma de entretenimento, alegria, amor e completude, longe das diretrizes pragmáticas do léxico. Ofício, ressalta-se aqui, não pela obrigatoriedade ou modorra da obrigação, mas pela habilidade à qual todos deveríamos domar para fins recreativos e afetivos.
Tecida passageira introdução, dá-se início à lição número-alguma-coisa-e-da-qual-chamarei-de-número-cinco (por razões meramente particulares): como manusear um chuveiro.
Que fique claro: há pela imensidão prismática do mundo uma infinidade de chuveiros. Alguns maiores, alguns menores; oriundos do oriente, do mediterrâneo ou do velho mundo. Outros nascidos das gerações do novo mundo, carregando consigo os traços de seus primeiros habitantes (que possuíam técnicas de um bom-banho relativamente escassas, se comparados às técnicas milenares de determinadas tribos e localidades da África ou do centro das Américas). A fartura em suas dimensões, rica. O dégradé de suas cores, magistral. E bem como sua diversidade, há igualmente maneiras diversas de fazê-los funcionarem como devidamente (todos eles) assim o deveriam. Cada qual com sua particularidade, às vezes mais velozmente que alguns, às vezes, mais paciente e vagarosamente que outros – e as razões para eficaz e pleno funcionamento são também as mais diversas. Por isso, determinadas lições podem funcionar para alguns e para outros, não para todos – e a questão, lógico, é encontrar o ponto.
Encontrando o ponto, o banho ocorrerá como as antigas divindades femininas enterradas pelos deuses dos homens sabiamente aconselhavam. Por isso, estas palavras servirão de mero exemplo para os demais chuveiros que por aí, talvez, ainda não tenham porventura encontrado o ponto certo (e não se engane em enfática e convictamente julgar o contrário). A lição a seguir advém do chuveiro que a mim faz companhia e que a mim dá-me o prazer de ser banhado.
O começo da jornada, pouco importa. Talvez ela surja numa manhã de quarta-feira, às cinco e cinco da manhã, quando ambos se reviram nos lençóis abarcados ainda nos mares dos sonhos. Completamente despertos ou não, quem sabe ambos se enlacem em movimentos inicialmente calmos; quem sabe, uma das partes lentamente desperte com as engrenagens já funcionando, rijas como sólidos calcários. E então uma coisa leva à outra: uma carícia, um entremeio, um suspiro ainda sonolento ou um par de mãos já despertas, sábias do que virá a seguir. Outro começo pode ser, talvez, aquele jamais precipitado e que inicialmente nasce com dois pares de lábios tenros, calmos e desprovidos de malícia, para em seguida atenderem ao chamado das correntes interiores que clamam para, novamente, o passo seguinte. Outras formas de se começar podem ser encontradas nas noites dos bares ou das luzes frenéticas, do álcool na veia ou no álcool para incitar o desejo há muito fundamentado nos confins da mente ou do peito. Casuais ou não, premeditados ou não, os começos pouco importam. O que há de importar nestas lições é a ocorrência do banho, e se ele virá depois, antes ou durante das formas iniciais e preliminares, pouco importa – debruçar-se sobre isso levará a outro assunto que agora não nos diz respeito. Em momento desejado ou não, esperado ou não, também pouco nos importa. Faça o banho acontecer – com mãos, dedos, engrenagens ou libidinosas línguas.
Faça-o ocorrer. Ligue o chuveiro em seu máximo potencial.
Não importando o começo (se num dia de semana ou se numa noite de sábado), o que tende a me levar ao meu particular chuveiro é a facilidade com que ele me recepciona: sempre ligado, apto a me receber, seja qual for a parte de mim. Não no ponto (e é importante que você o leve gradativamente, pouco a pouco, carícia por carícia, beijo por beijo, lambida por lambida, ao ponto). Por vezes, e dependendo das necessidades em que ele se encontra, começará pronto; por vezes, demora para chegar lá – e quanto mais tempo todo o processo do banho levar, melhor. Prolongue-o. Estique cada espasmo de prazer à máxima potência, dobre o tempo e triplique o ápice do quase banho total, mas se ele vier logo, retarde-o, acalme os movimentos, descanse o vai e vem dos dedos ou o deslizar da língua, sinta quando o entorno do chuveiro tenta expulsá-lo: quanto mais ele inchar, dilatar e parecer cuspi-lo para fora, mais perto do banho máximo ele estará. É quando você para de suavizá-lo (ou de massacrá-lo, no bom e pecaminoso sentido lexical do momento) e espera que volte ao estágio anterior, aquele onde ele está quase para explodir. Quanto mais dilatado, mais próximo ele estará, e quanto mais dilatá-lo e retroceder, antes do banho total, mais insano e desesperadamente afoito por prazer o chuveiro ficará. Quando você parar, quando você diminuir os movimentos, talvez ele ria para você, talvez ele o xingue:
– ...desgraçado...
Ou talvez (embora esta lição de banho não seja para mulheres, pois já são sabedoras):
– ...desgraçada.
Não será de todo maldição, mal agouro ou xingamento. Será perverso elogio, demasiada volúpia desesperada escapando ante letras e adjetivo. Será ótimo sinalizador de um quase sucesso. Confirmados os achismos, você continua.
Excite o chuveiro. Permaneça nos movimentos que te levam a este banho derradeiro. Prolongue. Prolongue (mas não muito, pois a recompensa, que ele terá ao fim do dia ou da noite, é tão ansiada quanto o sacana prazer que o levará até lá). Não esqueça de entregar a recompensa. Apesar da demora (e prefiro chamar de total controle, quase uma manipulação deveras articulada que com o tempo, e com o seu devido chuveiro particular, saberás como lidar), não se distancie do real objetivo: o banho, ao final deste prazeroso ato, deverá vir de uma maneira ou de outra. É sua questão de honra – como homem, como mulher, como amante ou como solidário ser humano meramente disposto a fazer o bem ao próximo. Alguém disse uma vez: amai-vos uns aos outros ou ama-te como ao próximo. O que quer que que façam contigo, faça de volta com desmedido empenho, paixão e excitação, faça melhor. No fim do banho, saberás: o prazer daqueles a quem te dedicas será, também, o teu prazer.
A esta altura, meu particular chuveiro já está aos respingos. Tudo o que há em volta dele está molhado, úmido: lajotas, paredes, lençóis, travesseiros, dedos, boca, bochechas e talvez meu rosto inteiro. Estamos há tempo suficiente nisso, e o medidor ideal para tal certeza é ninguém menos que o próprio chuveiro: em seus suspiros, em seus gritos contidos, em sua face eufórica escondida entre os travesseiros para que a euforia de seus fôlegos não ultrapasse paredes e vizinhança. O chuveiro respira e inspira num frenesi quase ensandecido. Unhas agatanhando paredes, unhas apertando couro cabeludo (os meus ou os dele), mãos frenéticas arranhando costas e as próprias pernas. Talvez este seja o exato momento em que o banho máximo, o banho potente, deverá vir.
E eis o segredo (pelo menos para com o chuveiro que tantas vezes há de me banhar): criado talvez pela ocasionalidade magnífica da evolução ou pelas mesmas divindades femininas supracitadas no início, há um dispositivo inerente ao chuveiro que fará o resto do serviço (mas não esqueça: sua participação para isso é de suma importância). Como bem alertei no início, não tratarei de termos técnicos ou científicos, pois o aprendizado aqui alcançado não veio de livros ou de aulas em universidades. O conhecimento aqui adquirido e repassado (aos que o desconhecem) foi empírico. Não que haja eu conhecido inúmeros chuveiros por aí, pelo contrário. Aos pouquíssimos que me deram a dádiva do convívio, da paixão e do tempo, aprendi de maneiras distintas seus funcionamentos. Com outros, pouquíssimo tempo estive junto. E como ser humano – como homem redundantemente – falho não para todos pude dedicar empenho, pois bem pouco os conheci. Assim como funcionam eles de maneiras distintas e particulares, acredito que funciono eu de maneira igualmente distinta e particular: para alcançar o máximo deles, para alcançar o ponto, meu ofício precisa de tempo, de dedicação e de uma porção magnânima de paixão. Quanto mais eu conhecer o chuveiro, melhor o manusearei.
No que diz respeito à obra esculpida por forças superiores – o tão “secreto” segredo –, todos os chuveiros (sem exceções) possuem um especial dispositivo acoplado a eles. Uma terminação nervosa exposta, extremamente sensível aos mais diversos e devotos estímulos. Cabe a você saber lidar com tal maravilha da evolução divina-humana-feminina. Aliás: é sua obrigação (agora sim, com a obrigatoriedade pragmática do léxico) saber onde ele fica. Quando seu chuveiro estiver no estado de frenesi e de excitação extremos, prestes a te expulsar em função de sua máxima dilatação, é o momento no qual acaricias o dispositivo, de melhor maneira com dedos indicador e médio unidos, num veloz e preciso movimento frenético de um lado para o outro. Acaricie-o com rapidez. Da esquerda para a direita. Da direita para a esquerda. Escute o som da superfície molhada. Escute seus dedos massageando o dispositivo molhado (a esta altura todos os lugares estão úmidos e escorregadios). Sinta-o dilatar, dilatar, dilatar, dilatar como se ousasse colocar tudo o que há lá dentro para fora.
Neste momento, é aconselhável que digas algumas palavras ao chuveiro.
– Vai, explode pra mim.
Palavras de incentivo.
– Vai, assim. Isso, isso. É assim que eu quero ver.
Palavras de apoio.
– Goza pra mim, vai.
Palavras edificantes.
– Goza.
Faça-o ansiar pelo momento. Faça-o escutar tua voz enquanto teus dedos movimentam-se firmes e devotos no processo.
Dilatando... inchando... com teus dedos mixando o dispositivo sensível ao prazer da maneira correta e adequada, o chuveiro finalmente explodirá (assim o meu funciona). O jorro de água sairá para cima como um chafariz; para os lados como um balão cheio d’água estourando na parede. O esguicho orgástico levará tudo o que antes estava molhado a um estado de encharque total. Lajotas, paredes, dedos, língua, rosto, lençóis, panos de cama e travesseiros. Até a superfície da cama não escapará, independentemente de estar forrada por camadas de proteção. Em seu esguicho final, o chuveiro parará de se retorcer para buscar mais desesperadamente um bolsão de oxigênio com o qual se abrigar. Talvez suas estruturas tremam – e é bem provável que isso aconteça, e não se espante se todo o corpo não parar de tremer por três minutos inteiros. Ele estará quase morto, porém não é um fim-vida desastroso ou maldito, mas aquele do qual todos querem terminar em seu último instante de arfar.
– Se isto for como a morte – talvez te diga o chuveiro –, então não quero morrer de outro jeito.
Quem sabe este seja o fim ou quem sabe seja o primeiro banho total de uma série de outros banhos totais. Se ainda houver fôlego, nos segundos seguintes seu chuveiro poderá ser capaz de explodir mais uma ou duas vezes. E caso sejas tão bem-sucedido, perderá as contas no terceiro – é possível, sim. Talvez (e aqui irá uma advertência aos desavisados de estômago fraco e imbecil), nas próximas vezes seguidas não apenas água santificada e clarinha de magnífico aroma sairá de seu chuveiro, mas outro tipo, mais amarelada e forte, e isso dependerá do total descontrole corporal de seu chuveiro. Caso aconteça, sorria: foste longe, és um felizardo. Apenas o jogo de cama reclamará.
Ao fim (agora sim, juro) da aventura voluptuosa, não se importe caso seu chuveiro te deposite um beijo ou outro antes de cair em intenso e profundo sono – conheces a sensação melhor que ninguém! Compreenda, sorria, e deixe-o dormir. É a hora que talvez duas ou três palavras sejam ditas, agora mais leves, mais engraçadas, quem sabe as famosas palavras sinceras. Acompanhe seu chuveiro no sono. Acaricie sua estrutura corporal com a ponta dos mesmos dedos insaciáveis com que fizeste o trabalho, agora, no entanto, de maneira lenta e afetuosa, com todo o amor e admiração que tens para com aquele corpo. Observe-o cair no sono. Observe-o respirar lentamente. E também durma junto com ele.
Talvez, daqui a quinze ou trinta minutos, quiçá apenas cinco, vocês voltem a repetir tudo de novo. Jamais há tempo ruim para um (verdadeiro) ótimo banho.



8 de junho de 2019

As coisas pequenas são mais fáceis de entrar







Sofia era jovem quando veio até mim. Era pisciana, alguns vários anos mais nova que eu e tinha uma bunda do tamanho do mundo.
O modo como aquele tipo de pessoa vem aconchegar-se ao seu lado é sempre tão misterioso: porque você, sendo um estabelecimento chinfrim de beira de estrada, sem muito a oferecer, com pouquíssimas vagas no estacionamento, nunca compreenderá o que leva certas visitas e certas manobras de calhambeques daquele tipo a estacionarem em você e decidirem ficar.
Ela ficou. Contradizendo décadas de experiências frustradas com tipos daquele tipo (mas acima de tudo enriquecedoras e construtoras de caráter). Quero dizer, o colegial fora para mim um inferno, uma selva de macacos selvagens portadores das mais agressivas e corrosivas doenças neurológicas. Eram Bonobos, aqueles primatas da África Central que resolvem tudo à base da fricção: esfregam-se uns nos outros, sempre excitados e dispostos a cometerem relações sexuais com quem quer que fosse – irmãos e irmãs, filhos e filhas, cônjuges, primos e primas, pastores da universal ou terraplanistas. Qualquer que fosse o parceiro, desde o mais avançado ao mais mongol, os Bonobos estavam sempre preparados para uma friccionada.
Acontece que o colegial era um mar deles: rapazotes de cabelos bem arrumados, uniforme impecável e relógios que mudavam de cor nos pulsos, escalados pelos times de basquete ou de futebol e sempre à procura das boas moças tão impecavelmente maquiadas que andavam em grupos e de braços entrelaçados, umas com as outras, desfilando pelos corredores e pelas ruas com cabelos esplêndidos, com gostos refinados e majoritariamente autodenominando seu próprio grupo de amigas com algum apelido deveras criativo: Meninas Atentadas, As Valquírias, As Maldosas, As Escamosas, As Irmãs, As Maudites Suffragettes etc, etc, etc. O resto era apenas um nicho composto de pessoas que você mal conseguiria lembrar o nome, todos aqueles que não faziam parte do bando dos Bonobos, as pessoas normais, os sujeitos e sujeitas comuns que, um dia, talvez, você perceberia que teriam sido uma bela companhia durante aqueles dias de penitência existencial caso os chimpanzés-friccionistas, com seus pulos, com seus gritos e com seus quadris roçadores não estivessem ocupados demais deixando-os acuados e esquecidos em algum canto da instituição.
Tais relações sexuais entre os chimpanzés-pigmeus eram frequentes, diárias, semanais e sempre tão rigorosamente avaliativas: um parceiro ou uma parceira sempre recebia uma nota ao final do coito, cuja qual tornar-se-ia pública já na manhã seguinte. Caso você fosse macho, havia um critério muito específico e especial ao qual estaria fadado a ser avaliado, aquele do qual todos os garanhões da macacada acotovelavam-se para receber as devidas notas: o tamanho do manjolo, o certificado de prolongamento, o RG – Registro Grandão –, o tamanho do documento etc, etc. O critério era um show à parte e as informações sempre vinham a público, fizesse ou não você parte do nicho.
Então se você fosse um animal que não possuísse um RG tão bom, digno das melhores notas e avaliações das fêmeas-bonobo, sua reputação estaria fadada a piadas por três razões muito óbvias:
1. Bonobos-machos que tinham manjolos pequenos e que submetiam-se à avaliação estavam loucos demais para friccionarem-se apesar dos comentários, ou não tinham consciência da destruição à qual renegariam suas reputações;
2. Todos os indivíduos machos que não se submetiam à avaliação, porque não eram Bonobos, porque eram Bonobos do tipo não-louco-por-fricção, com certeza possuíam um RG pequeno, e a não predisposição voluntária à avaliação tornava claro a todos os outros (machos e fêmeas Bonobos) que você não possuía um manjolo lá dos maiores e, portanto, era inseguro quanto ao ato do coito e nascera para ser uma piada – sim, a culpa era sua;
3. Por fim e mais importante: fosse Bonobo ou não, fosse desse ou de outro nicho zoológico, você precisaria aceitar que sempre seria avaliado e alvo de piadas graças ao seu baixo e mixuruco RG, pois a vida é assim, macacada!
Ter consciência dessa condição corporal e social, de um RG tão irrisório, definia de certa forma um impecável caráter para as vindouras relações em sociedade, fosse a vida de chimpanzés-pigmeus, fosse a vida de outros bichos.
E por isso era sempre estranho quando um tipo como o de Sofia estacionava em minha porta e decidia ficar – você tentava se convencer de que talvez fosse pela jovem idade, de que, tão imatura e empolgada pelas aventuras da vida, houvesse ela enxergado em você um parceiro em potencial digno de compreensão e de companheirismo. Talvez fossem suas piadas. Talvez fosse sua consciência de possuir um RG tão abaixo da média e ainda assim garantir ao prazer dela certos confortos e certos truques que a maioria não domava tão bem – você aprendia a se virar com as outras partes do corpo e tocar os lugares certos. Ou talvez fosse algo mais que você não soubesse. Mas uma coisa era certa: se uma fêmea-bonobo daquele porte, com longos cabelos longos e com um corpo de ninfa clássica já aos vinte, em detrimento e em companhia de você e de seu corpo tão ralo já na praia dos trinta, estivesse ao seu lado por seus dotes humorísticos ou de personalidade, e não pela impecável beleza da qual não dispunha ou pelo manjolo que não era clássico, galante e gigante e veiúdo como dos outros machos, então algo haveria de ser verdade – no mínimo. Talvez as fêmeas-bonobo realmente possuíssem coração. Talvez nem todas fossem iguais como os bandos da sociedade levaram-me a crer.  
Sofia, vinte anos e do signo de Peixes, com uma bunda do tamanho do mundo que confortava toda minha cara desfigurada quando nela decidia sentar (ou quando assim eu pedia), estava ali em meu estacionamento, dizendo palavras sinceras e jurando lealdade, jurando fidelidade e amor e todas as outras coisas que você não espera receber de tipos como aquele. Então não haveria de ser outra coisa a não ser a mais pura verdade.
Alguns meses depois de muita estadia e de companheirismo e de truques e de calores e de gritos, Sofia veio a mim com a tão ousada proposta que esclareceu, em certo aspecto, algumas de suas razões de estar por ali ao meu lado:
– Quero que você coloque na minha bunda.
– Colocar o quê?
– O seu RG. Quero que coloque o seu RG na minha bunda. Eu te amo e nunca dei ela pra ninguém. Quero dar pra você, quero que você coloque tudinho porque eu te amo.
Foi desta maneira que resignificamos atos meramente bonobais sob a nova e universal ótica do amor: com carinho, com zelo, com paixão e compreensão. O único entrave, no entanto, era o tamanho colossal da bunda de Sofia. Era maior do que todas as outras pelas quais eu já havia passado – pequenas, inexistentes, medianas e até algumas grandes, mas nenhuma delas tão gigantesca como aquela. Às vezes, a obra de arte chegava a me amedrontar e constantemente era fruto de dores de cabeça, pois nem mesmos os outros homens de minha família eram imunes a ela: olhavam-na com indiscrição e encaravam-me como incapaz do serviço, sempre com piadinhas aqui e risadinhas ali, palmadinhas no ombro e frases como: “que cara sortudo”, “que orgulho”, “isso aí, hein, filhão?”. Em suma, os genes bonobais estavam impregnados na maioria dos sujeitos de nossa sociedade, um certo hibridismo genético que compelia sobretudo os indivíduos do sexo masculino das mais diferentes espécies, raças, crenças ou ideologias – todos afogados no mais roçador instinto dos saltos, descontroles, línguas tendenciosas e dados a comentários nunca medidos, nunca planejados, nunca discretos e sempre tão animadinhos.
Sofia nunca escutava aqueles comentários, estava sempre tão distante e imune à compreensão daqueles olhares ou tons de vozes, fato que nos aliviava das situações. Vez ou outra, quando percebia certo incômodo vindo de mim (do qual eu nunca reclamava ou nunca de fato revelava), ela me acariciava os ombros e dizia para irmos embora, pois estava comigo e seja lá o que houvesse acontecido, tudo passaria. Então nós partíamos e ela nunca, nunquinha percebia os olhares animalescos e carnais em cima de suas pitorescas nádegas celestiais.
Nossos problemas com a gestão do ato vieram logo após o convite: o traseiro de minha amada Sofia era muito grande, mas mais que isso, o problema não era de fato esse, mas a combinação de uma gigantesca bunda com tão minúsculo RG. Usávamos todos os tipos de lubrificantes possíveis, dos mais vastos aromas e sabores, das mentoladas, das frutas cítricas às vermelhas até à boa e velha saliva, mas a entrada no recinto era sempre prejudicada por um fator de suma simples: a curta extensão de meu documento.
Sofia ficava com as mãozinhas e o rostinho afundados nos travesseiros, o a face meio vacilante e temerosa devido a dor, mas esperando amorosamente o momento de entrada. A imensa bunda arrebitada para cima, aberta e chamando-me; a pele lisa, magnífica e reluzente graças aos produtores-beneficiadores-de-recepção-anal para facilitarem minha entrada, mas era tão difícil! O problema era que a cabeça de meu instrumento ficava perto demais da base dele, sobrando-me minúsculos centímetros de espaço para colocar as mãos e apoiá-lo, o que facilitaria o sucesso na pontaria e na precisão do alvo. O problema foi recorrente nas primeiras vezes, e foi inevitável não imaginar a pouca ou inexistente dificuldade que os Bonobos monstruosos espalhados por nossa sociedade deviam possuir, pois a cabeça de seus instrumentos era separada por centímetros de distância da base, onde seguravam com segurança, rijos e prontos para o ataque, acertando com precisão o tão almejado alvo.
O meu, no entanto, pelo pouco comprimento, tornava toda a tarefa complicada: quando a ponta da arma estava prestes a entrar, eu aplicava medida e carinhosa força de encaixe, mas tudo era frustrado porque o espaço (tão irrisório) entre cabeça e base comprimia-se, tornando-se um só espaço achatado, apesar de rijo, e consequentemente dificultando o ato.
– É difícil isso aqui, Sofia.
– Tenta mais um pouquinho – e ela geralmente dizia isso gastando mais um bocado de loção deslizante. – Vai, tenta mais um pouquinho, meu amor.
– Ok.
E eu tentava. Mudávamos a posição, esticávamos joelhos, respirávamos e nos acariciávamos de novo para que a vontade não amornasse. E então ela empinava sua colossal bunda para cima e dizia:
– Enfia tudinho na minha bunda, meu amor.
– Tudinho?
– Tudiiiinho.
O diminutivo era a pior escolha lexical para tal ocasião, especificamente para minha anatômica situação. Mas ela não fazia por mal e eu relevava sua compreensão e vontade máximas de insistir no desejo.
Mais algumas tentativas frustradas (aquela já devia ser a terceira ou quarta noite de tentativa), mais lubrificantes de cereja, de limão e de chocolate depois, muita saliva e muita força de vontade também, a cabeça de meu instrumento finalmente penetrou-a com carinho e com amor. A princípio vagarosamente, regulando sempre a intensidade da entrada de acordo com os gemidos que ela soltava – se eram mais próximos à dor, eu maneirava; se eram mais próximos ao prazer, intercalados por murmúrios de “vai, vai, vai, amorzinho”, então eu continuava.
Com o meu pequeno RG (todinho) dentro de Sofia, a sequência de movimentos foi mais fácil. E mesmo quando a intensidade era maior e ele acabava escapulindo para fora (o que era frequente de acontecer, pois era ele mixuruca demais, apesar de duro como o capeta, e quaisquer movimentos mais longos no retrocesso faziam-no sair da bunda dela). Colocá-lo de volta foi mais fácil, pois a santa e redundante eulogia do espaço que era seu orifício anal aparentava estar mais receptivo e aberto para minha estadia, muito diferente do primeiro contato, sempre tão ríspido e resistente.
Assim, maneirando nos movimentos de retrocesso e intensificando nos movimentos de entrada, tornando-os mais fortes proporcionalmente aos gemidos prazerosos de Sofia, continuamos pela noite inteira. Mudamos até de posição – ora com a bunda maravilhosa arrebitada para cima, ora com ela deitada de costas e com as pernas torneadas abertas como um belo frango assado na mesa de família para louvar o nascimento do menininho Jesus, ora em cima de mim, acocada e ignorando a dor (que, sinceramente, não sei se de fato sentia devido ao meu patético tamanho). De um jeito ou de outro, Sofia parecia satisfeita, e se assim ela estava, eu três vezes mais estaria também.
Ela gritava:
– Ai, ui, ui, ui, caralho. Ai, amor. Ai, ai, ai, ui. Isso, assim. Coloca tudinho...
“Tudinho”.
– Coloca tudo em mim. Assim. É. Assiiiiim. Ui, ui, ui...
Melhorou.
– Coloca tuuuudo.
“Tudo” é bom.
– Tudinho meu amor. Tudinho em mim, isso. Ai, ai, ai. Ui, ui...
“Tudinho” não.
– Tudiiinho.
“Tudinho” é mal.
– Ui, ui, ui. Tuuuudo!
“Tudo” é sempre melhor.
– Ui, ui, uiii. Tudinho, ui, ui...
Diminutivos não. Diminutivos são...
– Tudiiiiiiinho...
...maus, muito maus.
– Eu te aaaaaamo.
Quando terminamos e preenchi seu interior com toda minha forma fluida e fértil de amor, atenção e suporte, ela virou para mim com o rosto num misto de dor e prazer e beijou-me. Disse-me que só faria aquilo comigo e que só havia feito comigo e que fora incrível.
Repetia várias vezes:
– Foi incrível, meu amor. Eu te amo.
– Eu também te amo.
Assim desmistificou-se (ou desmistifiquei) a bunda de Sofia que era tão grande e linda e redonda e bela quanto o mundo. Assim voltei lá em várias e várias ocasiões, às vezes com as mesmas dificuldades iniciais (a cabeça tão próxima da base era algo que sempre traria problemas), às vezes muito mais fáceis de se lidar, pois quanto mais me conhecia, mais a bunda de minha amada tornava-se uma boa anfitriã acostumada com minha presença.
Então os meses e os anos vieram, e com eles o resfriamento inevitável de todas as relações humanas. Sofia disse-me insistentemente que não queria partir e que estava disposta a buscar soluções que nos mantivessem presos um ao outro, mas o cansaço e o desgaste (não apenas o anal) eram destino implacável, irrefreável. Despedimo-nos de maneira amigável e nos amamos pela última vez com o que quer que restasse do sentimento que tanto dedicamos um ao outro. No fim de tudo, não éramos como eram todas as fêmeas-bonobo e todos os machos-bonobo. Ela, acima de tudo, não era como a imagem que tão erroneamente eu construíra ao longo da vida. Sofia me fez acreditar através de todo o seu amor e sua fidelidade e sua sinceridade que, ao menos para ela, eu pude ser único para alguém, apesar do RG.
Alguns anos depois, em uma mesa no aniversário de Laís, filha de meu primo Carlos, com sujeitos desconhecidos e baforentos e familiares Bonobos (todos Bonobos, diga-se de passagem), um do sujeito do qual eu não sabia o nome bateu na mesa com punhos fechados e sorriso triunfante de bebum no rosto:
– Agora eu tenho que contar uma pra vocês – ele disse –, deem uma olhada nessa belezinha aqui.
E mostrou uma foto no celular para todos da mesa, esbanjando-a como o troféu da Liga de Pelada do bairro.
– Eu tô pegando esse filézinho aqui, ó – fez um sinal de “ok” com a mão direita e todos assentiram, alguns boquiabertos, outros descrentes. O celular rodou por muitas mãos antes de chegar até mim, mas não quis pegá-lo. Do jeito bonobal como o sujeito agia, eu não o pegaria nem se não conhecesse o “filézinho” da foto. Infelizmente, era Sofia. Clara e nitidamente, Sofia. Meus tios e primos sorriam, meio sacanas, meio desconcertados. 
– Acho que meu sobrinho aqui tem propriedade pra falar disso aí, né, filhão? – Tio Cláudio, um velho barrigudo e desdentado que sofria com problemas de ereção e sonhava em ter uma arma de fogo de baixo do travesseiro (para compensar algum tipo de carência, presumo) bateu em meus ombros com o mesmo tom de voz e com o mesmo olhar que, anos depois, não mudara em nada.
O filho dele, primo Carlos, acompanhou-o de imediato:
– Isso daí é uma bandida de primeira.
Tio Cláudio deu-lhe um pontapé.
Os outros riram.
Algum deles disse “foda-se”.
Outro disse “É, foda-se!”.
– Que porra que vocês estão falando? – Questionei, voltando-me sobretudo ao primo cuzão.
– Bandida pra cacete. Quando tava contigo, a gente olhava praquele rabão e ela se fingia de desentendida, isso quando não ria nas tuas costas e dava mole pra todo mundo.
– Tá ficando doido, porra? – Levantei da cadeira.
– Ela se fazia de desentendida, mas adorava um elogiozinho.
– Ela só é pisciana, filho da puta!!
– Ela gostava, isso sim.
Saltei da cadeira. Tio Cláudio pôs-se no meio de nós dois.
– Cala a boca, Carlos.
Primo Carlos sorriu e continuou:
– Não fica puto, primo. Isso já passou, não tem mais nada a ver, né? E aliás, todo mundo sabia como ela era, tu devias saber também, né? Né? Hehehe.
Avancei um passo.
Tio Cláudio me segurou pelos ombros.
– Vai com calma, filhão.
E o primeiro sujeito, o do celular, abriu os braços e bradou:
– Vão brigar por causa de mulher, porra? Que é isso? Esse rabo é grande e vale a pena, mas vocês são parentes. Família é tudo, porra!
– Família é tudo! – Primo Carlos disse.
– Graças a Deus – piscou-me tio Cláudio. – Não esquece que família é tudo.
– O importante é que tu pegaste esse avião aqui, não pegou, amigão? – Continuou o sujeito do celular que agora mexia-se como um Bonobo. “Bonobo do Celular” foi como passei a chamá-lo. – Senta aí e sossega esse ânimo, parceiro. Agora, deixa eu contar...
Tio Cláudio fez com que eu me sentasse de volta. Primo Carlos não voltou a me encarar nos olhos, porém de propósito, desdenhoso, pois o olhar de Bonobo líder do bando estava triunfante.
Família é tudo.
– Sabe qual é a boa? – Insistiu o Bonobo do Celular com sorriso estridente. – Tão vendo essa rabeta aqui? Ela disse que nunca deu pra ninguém. E sinceramente, do jeito que deu pra mim? Do jeito que fez aquilo, camaradas...? Ah, rapaz... Ah... Com certeza ela nunca deu mesmo. Uma maravilha só.
Primo Carlos riu:
– Hehehehe.
– Estraçalhei a moleca inteirinha com o tamanho do meu monstrão. Deixei a menina mofina.
– Hehehehe.
Todos vibravam de rir.
Tio Cláudio prendeu um riso, não fez a menor questão de impedir reações animadas. Assim como ele, todos os outros assentiram com a cabeça, duvidosos ou invejosos.
– Posso ver a foto? – Pedi ao Bonobo do Celular.
– Tu já passaste por aí também, parceiro?
E entregou-me.
Era a boa e velha e tão linda Sofia, com seu sorriso largo e com aspectos mais marcantes de mulher adulta. Não era mais uma jovem recém-saída da adolescência. Estava tão linda quanto anos atrás.
– E ela te deu? Ela deu esse rabo aí? – Carlos instigou-o a continuar, jogando lenha na fogueira que era a língua e voz baforentas daquele picareta exibido e desgraçado.
O celular ainda estava em minhas mãos quando o dono dele respondeu, fez um gesto de balanço com as mãos, estalando os dedos e sinalizando dever cumprindo.
– Ora se não!? Estraçalhei.
Todos riram. Até tio Cláudio riu.
Era aniversário de três anos de Laís, filha de primo Carlos, então crianças corriam e gritavam ao nosso redor e todos confraternizavam com risadas e piadas. Apenas naquela mesa, talvez pelas várias cervejas, talvez pelo instinto animalesco e gorgolejante de Bonobos quando unidos, a conversa tomava qualquer outro rumo destoante de festas de aniversário e rodas civilizadas de animais civilizados.
Ali, os Bonobos berravam e provavam o porquê eram o que eram.
O celular ainda estava em minhas mãos.
– Assim que se faz, mano – gargalhou primo Carlos. – Esse rabo aí é grande demais pra ser de um só. Todo mundo tem que tirar uma lasquinha.
– É.
– Isso!
– É, isso aí!
Concordaram os outros.
Olhei para a foto. Sofia parecia feliz com aquele sorriso, parecia estar bem. E ainda estava linda. Era o que importava. Admirei-a uma última vez antes de respirar fundo, quase aparentemente apaziguado. O Bonobo do Celular disse que havia dezenas de fotos dela, “toda perfeitinha e peladinha”, e assegurou a todos que as mostraria para o resto de nós. Então pediu-me o celular de volta, ressaltando:
– Sem ressentimentos, cara. Já passou e não tem nada a ver, né?
– Pois é, não tem nada a ver – Tio Cláudio continuou dando-me tapinhas em meu ombro.
– É – concordou primo Carlos –, tu já passaste por aí também, bora aproveitar e passa logo esse celular que é. Bora ver as fotos aí, primo. Compartilha o pão.
Continuaram os outros:
– É!
– Isso aí.
– Passa aí.
Abri um sorriso e igualmente assenti. Segurei o celular firme na mão e o devolvi ao seu dono Bonobo, mas ao invés de apenas entregá-lo, arremessei-o direto e no meio do nariz como um pequeno meteorito num grande mar de bosta entulhada. Um rio de sangue jorrou e o sujeito caiu para trás, quebrando uma das pernas da cadeira de plástico. Algumas pessoas gritaram, crianças choraram e a música parou.
Tio Cláudio tentou me segurar, mas já era tarde. Àquela altura, minhas mãos já estavam no colarinho de primo Carlos e o bico do meu sapato acertando-o entre as bolas. O manjolo do primo, notei, era gigante e volumoso – um verdadeiro Bonobo bemdotado. Se as coisas pequenas eram mais fáceis de entrar, então as grandes eram mais fáceis de acertar.
E eu acertei.
Família era tudo.




22 de maio de 2019

Am*r




Texto feito durante uma atividade de escrita em aula de Literatura.


Monstro, atroz criatura. Esquivo no poço, residente no peito e detentor do ouro:
ouro fosco,
ouro pálido,
ouro gélido,
ouro com éons de existência, com demônios dançantes, ousado, covarde, de Deus inimigo, com verbo proibido.
Inutilizador.
Incapacitado.
Sem ouro, sem musas, sem nada.
Sem amantes.
Sem amor.


23 de fevereiro de 2019

A melhor sensação do mundo





Cinco e vinte e seis da manhã.
E aí o despertador grita no silêncio da madrugada.

Acorda.
Acorda.
Acorda.

Naquele carnaval, compartilhamos meu segredo estranho. Chamava-o de “A Melhor Sensação do Mundo”. Amanhã você me conta, foi o que ela disse logo depois de revirar-se na cama entre reclamações e protestos dizendo que não conseguia aguentar um instante a mais de curiosidade. Vai ter que aguentar, respondi em meio a risos sádicos. Eis aí um dos mistérios que eu não compreendia nas pessoas, especialmente nela: a fraqueza por curiosidade, o espírito que se move e se debate ante um segredo adiado, ante uma revelação tardia. Astrólogos diziam, com certa eloquência em seus dinamismos excêntricos de pedras e cristais, que a configuração das estrelas fazia com que as pessoas nascidas naquele período de mês – e ao qual ela pertencia – não resistiam às informações guardadas às sete chaves, que de preferência as guardássemos com uma oitava chave ao invés de anunciar quaisquer vislumbres ou pistas de sua existência já na primeira. Segredos a reverberavam de maneiras ruins e a bem da verdade a informação a consumiu pelo resto da madrugada, chegando a me acordar duas vezes para que eu desesperadamente anunciasse o que, diabos, era a melhor sensação do mundo.
Enrolei-me e enrolei-a entre lençóis, resmungos, adiamentos e desculpas, beijos, carícias e truques que eram a melhor sensação do mundo apenas para ela, algo que momentaneamente não reclamou, pelo contrário. Dela recebi ameaças fervorosas sobre dali partir em plena madrugada. E não que eu duvidasse de tais palavras, não que em momento algum durante o furacão que  varreu e mergulhou toda a Nova Orleans que me era a vida, ela tenha em algum ponto vestido qualquer sugestão de que era o tipo de pessoa que não cumpria com o que dizia – aliás, sua voz e sua força eram traços inigualáveis do pulso firme que eu nunca fora ou tivera.
Exceto naquela noite.
E se naquela noite eu fui seguro e não dobrei-me aos pedidos, ela também não cumpriu com o que disse. De todo, a noite de nossas exceções. Voltei a dormir. E ela por desistência também o fez, com a tez pálida virada à parede e com o bico prestes a perfurá-la – decerto que poucos até então presenciaram tal expressão de tolice e irritação. Decerto, fui um deles.  
Às cinco e vinte da manhã daquele distante carnaval levantei para urinar, os olhos pesados e a bexiga estourando. Tirei a água dos joelhos antes de voltar ao lado dela e afogar minhas narinas entre seus cabelos, lavados na noite anterior com aquela solução básica que nos últimos anos migrava para a lavagem natural. Aquele, ah, aquele sim era o aroma de seus verdadeiros cabelos: não a composição vinda de determinados shampoos, condicionadores ou cremes, não – era o perfume natural do couro, dos fios e da pele, aquele no qual tão certamente me perdi. Com uma porção de beijos suaves, acordei-a devagar, com leves chamados ao pé do ouvido. Naqueles tempos, talvez pela ausência do cansaço e do enjoo que todos os anos trazem aos cônjuges, ela acordou devagar e sorrindo, inteiramente esquecida da curiosidade à qual a releguei antes de dormirmos.
Então vai, acorda, eu disse. Quer que eu te mostre o meu segredo, a melhor sensação do mundo? E ela disse sim, com um sorriso de ponta que volta e meia esbanjava pra me foder o controle, vais me dizer agora? A voz tinha uma espécie de incredulidade, pois olhou pelas frestas da janela e agarrou o celular para conferir que horas eram. É sério, vais me dizer agora? Só não havia irritação ali porque a curiosidade ainda existia, ainda a fervia e a fermentava por dentro. E eu, guardando uma mecha de seus cabelos para trás das orelhas, sussurrei-lhe que, melhor: eu vou mostrar. Ela sorriu, sorriu largamente, outro golpe fodido para foder-me o controle, deu-me as mãos e a conduzi até o banheiro. Ela, sem muito entender, mas mordiscando os lábios ainda amassados pelo sono e os olhos abrindo lentamente para manterem-se despertos, seguiu-me sem hesitar e sem perguntar nada. Assim, despi as roupas que sobravam: a peça de calcinha e minha camiseta folgada dos Stones. Também o fiz com as minhas roupas. Conduzi-a para debaixo do chuveiro e beijei-a nos lábios que de tão contrastantes com os meus, pareciam até peça de Lego exclusiva de encaixe, edição limitada.
Tu estás doido? Ela perguntou. São cinco da manhã, nem fodendo eu entro nesse chuveiro. Nem fodendo? Rebati. E ela tornou a sorrir, embora também bocejasse em protesto. Com as luzes apagadas e a cor do céu migrando do azulino para o preguiçoso celeste, lá fora os vinte e quatro graus pousavam sobre a Belém de Fevereiro com um leve chuvisco e nuvens fechadas, penetrando em nossos ossos com um aviso de urgência:
Você está louco? Vá dormir. Agora”.
Esta é a melhor sensação do mundo, expliquei ao encostar as costas dela na gelada lajota da parede. Senti seus pelos dos braços e da nuca se arrepiarem, e excitei tal a reação ao colar a boca em seu pescoço. Continuei: você acorda cedo, o mais cedo possível, vai até o banheiro e fecha os olhos, de preferência com as luzes apagadas. Tá, tá bom, ela respondeu com o sorrisinho de canto nos lábios e os olhos fechados, a ponta os dedos reverberando o tremor das mãos devido ao frio. Prossegui: em seguida você abre o chuveiro e deixa a água cair. Ela gargalhou, incrédula: vais desperdiçar a água do mundo?
Que se foda o mundo, respondi.
Para minha surpresa, ela somente assentiu, sem me dar broncas por foder com o meu ambiente ou reclamar em função do hábito diário de economizar água. Para a minha surpresa, apenas deixou-se guiar. A água caiu no chão e respingou em nossos pés descalços, reavivando o arrepio que tentamos sanar a todo o custo quando nos aproximamos. Seu corpo quente em meio ao frio de Fevereiro, e o hálito de quem acaba de acordar, úmido, ligeiramente abafado como o de qualquer ser humano na face da Terra que igualmente acaba de acordar, macio e amoroso, deitando sobre a pele do meu rosto. E agora, ela perguntou, o que a gente faz?
E agora a gente fica assim, respondi. A água caía em grande maioria no lado direito de minhas costas, comprimíamos-nos no minúsculo espaço que sobrara entre a válvula de abrir-e-fechar e o boxe que aos poucos embaçava. Agora a gente espera e deixa a água cair, sussurrei. E que se foda o mundo? Ela repetiu com um tom de prazer, com os olhos fechados mas o corpo inteiro acordado, arrepiando-se e encaixando-se com e ao meu. Agora, enfatizei, você sente o frio da manhã, não se molha completamente, porque não é um banho, é um passeio. Envolvi sua cintura e girei nossos corpos, ficando então de costas para a parede e colocando-a diante de mim para que a água gelada e não-tão-mais-cortante-assim rolasse pela lateral de suas costas e de seu braço. Ela sorriu, sorriu mais longamente e suspirou, encaixando a peça de Lego de seu rosto na peça que era o meu pescoço.
Acho que entendi, ela disse, acho que já sei qual é a melhor sensação do mundo. Você faz isso todos os dias de manhã cedo? Havia um tom de espanto na voz que imediatamente corrigi com um balanço de cabeça.
Todo dia não, só quando posso... só quando vale a pena.
E hoje vale a pena? Perguntou-me, aninhando-se entre meus braços e levemente roçando o quadril pelo meu, os seios sobre minha pele, as unhas arranhando-me as costas num vai-e-vem lento, num sobe-e-desce crescente.
Vale, vale toda a pena. Especialmente hoje.
Por quê?
Porque...
Pelo feriado de carnaval?
Não.
Por quê?
Eu sorri, e toquei-lhe as pálpebras com os dedos, desenhei um por um os cílios simples sob as sobrancelhas discretas, quase ralas.
Porque tu estás aqui.
Ah, é?
É.
Ela abre os olhos. São castanhos: a cor eleita por mim como a mais bela que poderia existir num par de globos oculares arquitetados por uma mãe e por um pai que, coincidentemente, encontraram-se num longínquo carnaval, unindo células a outras, unindo um óvulo a um espermatozoide, unindo vinte e três cromossomos a vinte três cromossomos e gerando a cor eleita como a mais singularmente simples e bela – nem azuis e nem verdes e nem violetas e nem amendoados e nem cinzas e nem negros. Castanhos.
Que horas são? Ela perguntou.
Que importa?
Queres sair?
Sadicamente, comecei a sorrir.
Mas é claro que não.
É, eu também não.
Então fica.
Vou ficar. Eu tô ficando, ela disse.
A água continuou caindo, despencando na lajota do banheiro como as águas da Venezuela caíam, caem e cairão no Salto Ángel: silencioso e barulhento, magistralmente belo, monstruosamente perigoso.
Eu tô ficando, ela disse. Eu tô ficando...

Cinco e vinte e seis da manhã.

E aí o despertador grita no silêncio da madrugada.

Acorda.
Acorda.
Acorda.
E aí o despertador me retira do tão longínquo banho doutra tão longínqua madrugada. O banho que não está acontecendo; o banho de águas que um dia caíram e que não caem mais.
Acorda.
Desligo a porcaria do aparelho celular e o enfio debaixo do travesseiro. Cinco e trinta e dois agora. Cinco e trinta e dois de uma manhã fria e chuvosa de Belém. Lá fora, vinte e três graus – um frio quase glacial para os nortenhos. Cambaleando até o banheiro, retiro as poucas peças de roupa que há em meu corpo e coloco-me, sem cerimônias, sob o chuveiro, mas não o abro. Estou de olhos fechados. Não há mais castanho, não há mais cabelos com soluções básicas quase ao natural. Não há nada mais que importe neste banheiro, não agora, não neste carnaval.
Talvez haja, por aí, qualquer coisa que importe – aquela única coisa que importa.
Talvez em outro banheiro.
Sob outra cachoeira.





8 de fevereiro de 2019

Ana, Maria e Miranda






Dipsomaníaco e peripatético
anacreonte,
fruncho.

Cicatrizes despudoradas,
cicatrizes.
Lúteos.

Estropiados passos,
surtos delgados.
Dipsomaníaco – de novo.

Poço.
Pandulho.
Reentrâncias do redente,

ambíveos bifurcados cravam os
dentes, as ancas de
Lacoonte.

Anas,
Marias,
Mirandas e só uma a diástole.

Kilômetros com k – dois kilomêtros –,
sístole em ordem perdida
e aleatória ordem.

Sumarentos.
Batutas.
Chamariscos de raias.

Nylon e vime,
zarcão e coração,
sílabas átona e tônica – um iambo perdido.

Ana em um corredor, na rua, uma estação.
Maria ao lado da câmera, escritora, artista plástica.
Os braços para trás, Miranda, com dedos na mão.

Celebrando o Outro nas mãos, ensina-me
palavras de “urubu perdido e triste
negro plátano ruflando no ar”

em “grandes asas sombrosas para o sábado”.
Foi num sábado à noite?
Foi, foi num sábado à noite.  

Asfixia. Injeções nos
maxilares de marantz que talvez
possa substituir o cigarro que por sua vez

não substituiu um sábado à noite
nem talvez possa –
and per se and.

Traga rosas na celebração do outro
e por fim os icônicos versos em que
Ele disse: não me mate agora

porque não morrerei inteiramente.


(Felipe Santiago)