Happy Feet balançava-se sobre os
próprios pés com um estranho e despreocupado sorriso no rosto. O bico amarelado
e os olhos expressivos passavam uma calmaria que só não dava raiva ao
motorista porque ele possuía um imenso afeto pelo pequeno pinguim.
A neve caía lá fora com uma estranha
intensidade. Ian precisou reclinar-se sobre o volante na tentativa de enxergar
além do pouco que tinha de visibilidade à frente. Estreitou os olhos e desejou
poder acelerar, mas era quase Natal, e de mortes violentas ele já estava cheio.
Lançou uma última olhada para o enfeite diante dele que rebolava tal como uma
havaiana – mas não passava de um pequeno
e divertido pinguim.
Reclinou as costas no banco e esticou
a mão direita na frente do aquecedor, mexendo os dedos para melhorar a
circulação do sangue. Então olhou para o lado e encarou a mesma mulher
apreensiva e calada de tantos minutos atrás. Ela, com aqueles olhos escuros e
sobrancelhas grossas, nada dizia desde o ultimo curto diálogo que
desenvolveram.
- Tá tudo bem, moça? – Ele perguntou
pela vigésima vez.
- Não me chame de moça.
- Tudo bem, moça.
A mulher bufou.
- Estamos há horas nessa estrada. –
Ela se remexia enquanto apertava os braços em volta do peito. – E não vi nenhum
carro passar por nós.
- A vida atrás do volante é
geralmente solitária. – Deu de ombros.
- Não estou falando disso, garoto. –
Ela estalou os lábios num tom desdenhoso e continuou olhando para fora. Tudo o
que viam eram árvores e árvores passando pela estrada. – As noites ficam
desertas quando isso acontece, foi exatamente o mesmo naquela época.
- Estamos chegando, moça. – Ele
voltou a assentir. Queria um cigarro, mas por pura educação não acendeu um lá
dentro. Ou talvez fosse por outro motivo, a coroa não parecia apreciar os tipos
que fumavam. Ela tinha as unhas muito feitas e as roupas muito alinhadas, os
brincos eram longos, balançavam como um pênis gigantesco e mole, os cabelos
negros e extremamente lisos caíam retos até os ombros. Ian desejou ganhar um
bom presentinho de natal enquanto não chegavam, mas a vida não era exatamente
um pornô barato. Conteve os pensamentos e mordeu o lábio. – As coisas eram
assim também naqueles dias?
- Sim. Tudo tão deserto, mesmo em uma
cidadezinha tão movimentada. Parecia que algo colocara todos dentro de suas
casas.
- Ah, entendi.
- Com o tempo eu comecei a pensar
mais sobre aquela noite e sobre como tudo parecia perfeitamente alinhado para
nos pegar.
- Hum. – Ian reduziu a velocidade
quando enxergou uma bifurcação na estrada, a mulher nem ao menos deu
importância ao detalhe. Ele então esperou se aproximar um pouco mais até ver as
indicações nas placas. Seguiu pela esquerda. – É sempre assim que as coisas
acontecem. – E pigarreou: – Esse tipo de
coisa, pra ser mais exato.
Trocou um olhar com Happy Feet, que
continuava sorrindo, inerte às maldições de natal.
A mulher apertou mais os braços em
volta do corpo.
- Seu aquecedor não é dos melhores.
- Foi mal, é que de onde o carro veio
aquecedores não precisavam ser usados.
- Oh. – Ela tentou parecer
interessada na informação e novamente perdeu-se na vista do lado de fora. – Por
que está me trazendo aqui...? – E ressaltou: - Onde quer que aqui seja.
- Você vai entender quando chegarmos.
- Por que diabos eu confiei em você?
- Porque está acontecendo de novo e
nós podemos te ajudar nisso. – E pisou um pouco mais forte no acelerador, mesmo
sentindo o carro derrapar na pista por uma fração de segundos.
- “Nós” quem?
- Você vai saber. Calminha, moça.
Os contornos de uma cidadezinha à
beira da estrada começaram a surgir. Primeiramente, um posto de gasolina,
depois algumas habitações distantes entre si por centenas de metros. Tudo estava
abandonado, todas as construções e memórias de uma antiga vida afogadas em
camadas de neve.
A sensação do vazio natalino encheu o
corpo da mulher de calafrios e a fez reclamar do aquecedor outra vez. Ian
precisou fechar os olhos e contar até dez, tinha vontade de estrangular os
resmungos da passageira com a mesma vontade que tinha de arrancá-la as roupas e
espiar o que aquele corpo às margens dos quarenta tinha a revelar.
Ambos perdiam-se nos próprios
devaneios enquanto a cidade revelava-se cada vez mais acinzentada e abandonada.
Parecia o típico lar de caipiras canibais e misantropos. O silêncio também
estrangulava tudo – o estalar de lábios de Ian, os resmungos da mulher, o ruído
do motor, o trabalho falho do aquecedor e até o sapateado e gingado
desengonçados de Happy Feet.
Tudo pareceria fadado à eterna
ausência de vida quando o rádio começou a tocar: veio o chiado, a procura por
uma estação de respeito que tocasse qualquer coisa digna naquela madrugada de
Natal; a voz tremida, a sintonia de frequência, e então a música:
Bad little girls,
Bad little boys…
Bad little boys…
- Dá pra desligar essa merda? – A
mulher apontou os dedos longos e de unhas pintadas na direção do rádio.
Ian a encarou com um sorriso irônico
e expressão de poucos amigos. Quanto menos a suportava, mais a desejava.
- Tá brincando com a minha cara,
moça? Eu nem encostei nisso.
- Então não encoste outra vez! – E
desligou. Voltou a envolver o corpo com o braço e olhar pela janela.
Ian não parou de olhá-la, ainda
estava rindo com o tamanho da loucura da coroa. Moveu a cabeça uma centena de
vezes, totalmente incrédulo pelo surto inesperado e voltou a dirigir.
Quinze segundos depois, o rádio
voltou a fazer o mesmo ruído. Sintonizou a frequência. Vozes misturaram-se. E
a música:
Stay up all night,
Don't get no toys.
Don't get no toys.
- Você é surdo ou o quê? – Gritou.
- Mas hein? – Ele arregalou os olhos,
confuso.
- Eu mandei não ligar!
- Mas eu não liguei!
A mulher desligou.
Os dois se entreolharam.
Cinco segundos depois, o rádio ligou
novamente. Sozinho.
Sintonizou a frequência. Vozes
misturaram-se. E a música:
It's easier to say than do
You got to be good
Dessa vez, no entanto, foi Ian quem desligou. Os dois continuavam a se entreolhar, mas a acusação sumira. Nenhum deles havia sequer encostado no aparelho de som quando ele começou a tocar.
E imediatamente, de novo:
Cause Santa's got his eye on you so
You got to be good
You got to be good
Gotta be
good…
A língua de Ian já estava prontamente
armada para uma resposta ácida quando um baque surdo veio de cima do carro,
fazendo-o perder o controle. Os pneus escorregaram sobre a fina camada de neve
no asfalto e os levou até o acostamento, mas Ian não retirou o pé do acelerador.
- Filho da puta!
Happy Feet continuava a sorrir.
Em meio à escuridão da noite, o vulto
negro pôs-se a acompanhar o automóvel pelo lado esquerdo da estrada, hora
camuflando-se entre as árvores, hora surgindo estupidamente sob a luz dos postes
de casas vazias. Era tão grandioso e forte quanto um touro, com uma corrida tão
pesada e dantesca que o som de seus passos elevava-se ao ruído do motor. Ian
mordia os lábios enquanto apertava os dedos sobre o volante. Mantinha a atenção
na estrada quase como uma desculpa para não encarar aquele imenso par de olhos
vermelhos e brilhantes que o pareava numa velocidade assustadora. A mulher ao
lado agora encolhia-se sobre o banco com a cabeça abaixada, protegendo-se de
uma maneira quase infantil.
Uma curva à frente fez com que Ian
diminuísse a velocidade, relaxando o pé do acelerador, porém nunca pisando
efetivamente no freio. A curva traçou-se à direita, tornou-se pouco a pouco uma reta e ao
longe revelou uma imensa labareda ardendo bem no centro do caminho, tão distante
quanto o horizonte, porém tão logo próxima se Ian mantivesse o pé no acelerador.
A criatura soltou
um gemido que fez estremecer as árvores em volta e a neve acolhida no topo de
todas começar a cair, dançando lentamente pelo ar e dando à nevasca uma
tonalidade mais esbranquiçada e densa.
Ian pisou fundo.
A gigante sombra ao seu lado
continuava a fitá-lo com brilhantes olhos vermelhos. Pouco a pouco, aproximou-se
até quase encostar no retrovisor. O motorista evitou encará-la, prendendo a
atenção no fogo à frente que se aproximava na mesma proporção.
- Faça isso parar! Faça isso parar! –
A mulher gritava.
E a criatura ao lado, de sua própria
maneira, também gritava.
Pela segunda vez a disforme massa de
sombra indistinta berrou correndo novamente pelo acostamento, tomou distância à
esquerda, ganhou impulso e saltou na direção do carro. Ian precisou finalmente
pisar no freio, e o fez com os dois pés pelo mais puro reflexo. O carro derrapou
pelo asfalto, tentou girar para esquerda, porém o motorista girou o volante na
direção contrária; então começou a perder o controle para a direita, e Ian
novamente controlou para o outro lado até estabilizar. Lentamente o veículo
parou, mas não antes de os dois ocupantes presenciarem a criatura riscar à frente e passar a milímetros de distância dos faróis.
Soltando outro grito e contornando o
acostamento direito, ensandecida por não conseguir chocar-se com a lateral
esquerda do carro, a criatura saltou para o meio da estrada e bloqueou o
caminho. Os imensos olhos vermelhos fitaram tanto Ian, quanto a mulher, e
pareceram estranhamente interessados nela. O motorista ainda segurava firme o
volante, os nós dos dedos já brancos pela força; a passageira tinha a boca
escancarada, como se visse um fantasma de um passado que diária e fracassadamente tentava esquecer.
- O-O que... O-O que é essa coisa? –
Ela gaguejou num sussurro fraco.
- Não reconhece? – Ian respirava
fundo, encarando a criatura com espanto. A bestialidade do ser diante dele era
de um mau gosto tremendo, abortado pelo próprio útero do Diabo em pessoa.
Os dois chifres que brotavam da
cabeça cresciam em direções opostas, enrolavam-se em ângulos distintos, porém
ameaçadores, ambos terminando como dois dedos indicadores que implicitamente
apontavam um certo tipo de culpa, ou talvez anunciavam um aviso derradeiro.
Possuía um corpo humanoide, mas se assemelhava mais a uma cabra do que a um
homem, com pelos negros e fartos através do corpo. Prostrava-se numa posição
bípede, com pernas de coxas grossas mas canelas extremamente finas, terminando
em cascos de bode. A genitália balançava quase como um quinto membro, bruta e
mole, tão peluda quanto o restante do corpo.
Tudo naquela criatura lembrava um
animal, com exceção da cabeça: ainda tinha traços humanos, o nariz curvado,
grosso e longo; um queixo imenso e agudo que acompanhava o comprimento da
língua de um vermelho escuro, sanguinolento, saída entre dentes afiados e
longos, amarelados, soltando uma gosma preta que descia pelos lábios de
gengivas irregulares e caía no asfalto gelado. Das diversas cicatrizes pela
testa (de onde os chifres brotavam de uma carne viva e aparentemente ainda
mole), um tufo grisalho de cabelo comprido caía até os ombros, diferenciando-se
do resto da pelugem corporal.
Os olhos vermelhos, como os de um
gato, brilhavam interessados pelos ocupantes do veículo.
- O que é isso!? – Voltou a
perguntar, aterrorizada.
- Alguma diarreia de Deus. – Ian
soltou numa risadinha nervosa.
A criatura avançou um passo. O rapaz
respondeu com um ronco do motor. Atrás dela, o fogo estava mais próximo e
distinto.
- Puta que pariu, veadinho bastardo. –
Resmungou. – Me diz que você saiu daí.
- Do que você tá falando?
- Nada não. – Respondeu sem muita importância.
- Tira a gente daqui!
- Calma, moça. – O motor roncou um
pouco mais.
A criatura fungou e soltou um bafo quente que formou um vapor pela boca tão forte quanto a chaminé de uma
fábrica.
Bateu um dos cascos no chão como um
touro.
- Tira a gente daqui, pelo amor de
Deus!
- Calminha.
O motor tremeu e ameaçou um impulso.
- Pelo amor de Deus, garoto... Tira a
gente daqui!
- Calma, moça. Calma... – Os dedos da
mão esquerda acariciavam o volante; os da mão direita apertavam firme o câmbio.
– Calma...
A obscenidade diante deles
inclinou-se para frente numa posição ofensiva, curvou as costas e dobrou os
braços humanos. Então abriu a boca e começou a berrar.
Com os gritos, tanto o carro
quanto a criatura puseram-se em movimento.
O monstro movia-se pela neve como um
exímio patinador, tinha a postura certa e o ângulo certo para inclinar o corpo
e dificilmente pareceria perder o equilíbrio. O mesmo não podia ser dito do
carro, que deslizava o suficiente para não perder a estabilidade graças às
habilidades de Ian no volante e a troca rápida e sincronizada de embreagem.
A velocidade em que o vulto se movia
não era natural, chegava a tornar-se um borrão em meio à materialidade da
estrada, como um quadro pintado a óleo por um artista de traços abstratos. Ian
quase não pôde identifica-lo, mas ainda assim mantinha o maldito na vista
enquanto seu pensamento insano guiava-o a um único objetivo: eu não vou desviar, eu não vou desviar, eu
não vou desviar...
Do outro lado, a mais de 100 metros,
o fogo ainda ardia sob a intensa nevasca. A cada vez que o carro avançava, a
visão do motorista e da passageira ficava mais clara e ambos já distinguiam os
contornos exatos do outro automóvel capotado no meio da estrada, ardendo numa
carbonização que já durava minutos – talvez horas. A mulher se encolheu e pela
expressão que fez, pareceu concluir que aquele seria seu fim e que
provavelmente terminaria queimada dentro daquele carro. Já Ian perdeu seu
estranho sorriso de convicção, a morbidez que sempre o possuía em momentos de
adrenalina como aquele simplesmente desapareceu, e mesmo que não o conhecesse,
a coroa teve certeza que de algo estava errado.
E estava.
A criatura tinha a mesmo psicologia do motorista: nenhum deles desviaria. E nenhum deles
desviou. Ian trocou de marcha três segundos antes do impacto, fazendo o carro
ganhar mais velocidade, deslizar sorrateiramente pelo asfalto e se chocar-se contra
o monstro.
A mulher gritou com o impacto.
Imaginou que o cinto de segurança não impediria que seu corpo fosse arremessado
pelo parabrisas. Para sua surpresa, no entanto, o velho e estranho carro
aguentou o trampo e continuou ensandecido pela estrada, girando de um lado para
o outro, ziguezagueando por causa do impacto, girando os pneus dianteiros,
freando, derrapando, acelerando para estabilizar a perda de direção e freando
de novo.
Aqueles dez ou cinco segundos
passaram em câmera lenta, tão arrastados quanto uma lesma, tão lentos como uma
morte dolorosa. Ela viu a estrada virar um borrão; o lado esquerdo tornar-se o
direito, o direito tornar-se esquerdo; a estrada misturando-se às casas e os
postes camuflando-se entre os contornos das árvores. Viu também a imensa labareda
de fogo aproximar-se e sumir, sentiu o carro girar, e por duas ou mais vezes
notou o quanto o fogo se aproximava e posteriormente sumia, para então surgir
novamente em sua visão e desaparecer logo em seguida. Nesse ínterim
vertiginoso, Ian movia os braços como um louco, as mãos giravam sobre o
volante, seguravam-no, soltavam-no. Em algum momento ele começou a gritar, e
então gargalhou, com aquela incômoda morbidez de volta.
A mulher já parara de gritar.
Aprendera há muito tempo que o desespero expressado pela garganta nada ajudava
em situações de extrema tensão, mas vez ou outra se esquecia disso, por essa
razão obrigou-se a permanecer calada, esperando o momento certo em que o carro
se chocaria na lateral do outro e entraria num estado brusco de inércia. Daí o
fogo de um passaria para o outro, a criatura apareceria do outro do lado e
assistiria a morte dos dois pelas chamas, ou pior: esperaria a decisão de
escaparem por um lado enquanto a carne era frita ou arriscavam sair pela porta
em que a estupidez monstruosa os esperava de garras e dentes abertos.
A escolha era somente como morrer.
Ela esperou, esperou e esperou. E das
alternativas que tinha em mente, Ian conseguiu adicionar uma terceira, tão
inesperada para a mulher que ela não conseguiu reagir à prorrogação de tempo.
Se era boa ou ruim, ela esperou para saber quando o carro parasse.
O veículo passou a milímetros de
distância pelo carro incendiado, exatamente como antes ocorrera na tentativa
frustrada da criatura em acertá-los pela lateral. Mas dessa vez, apesar de toda
a manobra perfeita de Ian (que provavelmente utilizara o deslizar da estrada
para contornar as chamas), a criatura obteve sucesso em sua segunda tentativa:
enquanto os pneus esquiavam pelo lado esquerdo do asfalto, passando a pouquíssimos
centímetros do incêndio, o monstro aproveitou para acertá-los pelo flanco
direito, na mesma direção da roda traseira. O automóvel perdeu definitivamente
o pouco controle e foi arremessado para o lado com a força dos dois chifres
diabólicos.
O mundo de Ian e da mulher girou. Capotaram
três vezes pelo acostamento. As faíscas do arrastar da lataria pelo solo deu
uma conotação mais vibrante ao quadro geral de melancolia da imensa fogueira
crepitante. O som do metal e do vidro se amassando arranharam os ouvidos de
Ian, que limitou-se a cruzar os braços na altura dos olhos e proteger o rosto. Eles
rodaram e rodaram. Sentiram a vidraça cortando roupas e regiões da pele
desprotegidas, como as costas das mãos e pescoço.
Quando finalmente pararam, a mulher
gemia com uma dor subindo as pernas e concentrando-se na coxa esquerda. Haviam
parado com o carro virado para cima, na posição habitual, mas ele estava
amassado e um longo rastro de fumaça saí do motor. As janelas do lado do
motorista e passageiro não mais existiam, e o parabrisas era um retalhado
embaçado empurrado para o interior.
Happy Feet havia desaparecido.
Ian tinha ainda as mãos sobre o
rosto, inclinado quase em posição fetal para frente com a cabeça deitada no
volante. As chamas do outro carro ardiam a metros atrás deles, e no centro da
estrada, pelo que restara do espelho retrovisor, os dois viram a criatura se
aproximar. Ela era apenas uma silhueta indistinta no meio da noite com as
labaredas crepitando atrás.
- As propagandas advertem... – Ian
sussurrou com voz entorpecida, parecia um bêbado sorridente. Oh, sim, ele
sorria, mas não de diversão. – Use sempre, sempre,
a porra do cinto de segurança. – E destravou tanto o seu dispositivo quanto
o da mulher. A boca estava cheia, cuspiu um punhado de sangue pela janela e
remexeu o maxilar. – Ele irá salvar sua vida. – Piscou para a mulher, que não
entendia a graça das piadinhas insanas daquele garoto.
Abriu a porta com um empurrão de
ombro, o que quase o arrancou um grito de dor, usou os pés para empurrar e saiu
num salto, puxando a mulher consigo. Os dois caíram num amontoado de neve, mas
Ian foi mais rápido em recuperar o ritmo e levantou a morena pelas axilas. A
mulher sentia a perna queimar e quando tentou olhar naquela direção, encontrou
uma expressão de advertência em Ian, que forçou-se a dizer “está tudo bem, moça, só siga em frente”.
Os dois começavam a andar pelo meio
da rua quando ouviram os cascos da criatura os acompanhando, ela parecia se
deliciar com a situação, soltando grunhidos que lembravam muito uma risada
entrecortada e repetitiva que a mulher ouvira muitos anos atrás. Ian continuou
a guiá-la, mas quando ouviu os cascos aumentarem a intensidade, puxou um
revólver da cintura e olhou para trás.
- O que fazemos agora? – ela
perguntou, distante da coragem que o garoto possuía. A moça cagava para atos heroicos e aumentava os passos, apesar da dor.
Ele sorriu, ainda com a cabeça virada
e os dentes mordendo o lábio inferior.
- Está tudo sob controle, moça. Tudo.
- Cê tá de sacanagem?! – Ela
gritou, sem perceber que era quase arrastada pelos passos apressados de Ian, mais rápidos os dela. Quase nem conseguia acompanhá-lo. – Aquela coisa voltou pra me buscar! –
Esqueceu-se da regra do grito e passou a gritar: - Aquela coisa veio me buscar, porra!
Ian não retirava os olhos do monstro,
que aumentara os passos, mas matinha um estranho prazer em manter-se longe,
como se os acuasse, como se se divertisse. Era
seu prazer, era seu hobby, seu parque de diversões.
- Então suponho que não queira que
ele te pegue. – Retrucou o rapaz, sorrindo com um ar de preocupado.
- Não!
- Ótimo, porque estamos chegando. – Virou
a cabeça para frente, apontando na direção de um antigo estabelecimento
abandonado, tão cinzento e mórbido quanto o resto de toda a cidade. Parecia ser
uma pequena loja de conveniências em seus dias vindouros, mas agora reduzia-se
à uma fachada com placa caída e vidraças quebradas, porém protegida por grades
pelo lado de fora e bloqueadas com madeira pelo lado de dentro. Na porta da
frente, por uma pequena janelinha, era possível ver uma luz piscando e
apagando, num intervalo de três a cinco segundos.
- Eu preciso que corra, moça. – Ian
balbuciou no ouvido dela. O som dos cascos atrás só aumentava.
- Mas minha perna está...
- Corra.
Com dificuldades a mulher obedeceu às
ordens e correu, manca, desengonçada, mas eficiente no máximo que conseguiu. A
perna esquerda sangrava, mas ainda não havia notado. Quando finalmente chegou à
porta do estabelecimento e ela foi aberta, Ian respirou fundo e apontou o
revólver na direção da criatura.
Entre os dois, como em uma rua
deserta de uma cidadezinha qualquer do bom e velho oeste, o pequeno pinguim
estava caído no chão, distante demais para ser socorrido por Ian. O garoto
mordeu os lábio e desejou correr, desejou ir ao amparo do bom e relativamente
novo companheiro – fora um presente de uma velha amiga. Por uma fração de
segundos ainda foi tomado pela súbita e impetuosa reação infantil de defender o
brinquedinho, mas a criatura foi mais rápido que qualquer reflexo. Ela começou
a correr, dobrando as costas e utilizando os braços como patas dianteiras.
Happy Feet foi triturado sob os
cascos do demônio.
Ian esperou até que o fodido
estivesse sob a mira e fez o disparo.
O monstro rolou no chão,
estatelando-se pela neve, quebrando dentes e mordendo a própria língua. Parou a
poucos metros de distância dos pés de seu carrasco, a princípio aparentemente
imóvel, porém pouco a pouco reassumindo os movimentos dos músculos através de
espasmos. Ian continuou apontando o revólver, indignado pela criatura ainda
conseguir se levantar mesmo após um tiro no meio da testa, exatamente entre o
toco dos chifres.
- Ian! – Alguém gritou, desesperado.
– Ian! Entra logo!
O rapaz riu por reconhecer o sotaque.
Olhou para o carro em chamas e agradeceu pelo parceiro ter a mesma sorte que
ele. Então observou o monstro colocar as mãos no chão em busca de apoio e sem
muito hesitar fez outro disparo, agora na nuca. A criatura perdeu novamente os
movimentos, mas em meio minuto voltaria a ter espasmos e se levantaria.
- Essa foi pelo Happy Feet, seu filho
da puta.
Correu para dentro.
Viu Robert fechar a porta com uma
tranca que não parecia ter muitas garantias, e empurrou um pesado armário com a
ajuda de outro homem. O sujeito era meio barrigudo, com uma pequena papa sob o
queixo, olhos de um verde apagado, barba rala e cabelos loiros penteados para
trás. Os dois terminaram o serviço com esforço a tempo de sentirem uma forte
pancada pelo lado de fora que fez com que o móvel balançasse.
- Wow. – Robert fez, segurando o armário
por garantia. Um segundo depois, outra tentativa.
- Ele tá furioso. – Comentou o
homem.
- Ainda bem que chegaram. – O
britânico suspirou. Suava pelas têmporas numa tensão evidente.
- O que aconteceu com vocês? – Ian
quis saber. Puxou um cigarro e acendeu, limpou um filete de sangue que descia
pelas suíças e mandou que os dois saíssem dali. Outra batida, mas ele não
pareceu se surpreender. Encostou as costas e aguentou os outros choques.
- Ele também nos perseguiu pela
estrada, talvez saiba o que viemos fazer aqui. – Robert se afastou e caminhou
até o centro da loja. As diversas prateleiras que antes enchiam o lugar agora
estavam todas distribuídas nas paredes, umas sobre as outras. O local era sujo,
cheio de poeira e bichos, mas servia como um bom abrigo. – Estávamos quase
chegando quando derrubou nosso carro, também consegui atrasá-lo com alguns
disparos – e mostrou a shotgun pendurada no ombro – mas não adiantou muito.
- Nada vai adiantar. – O homem se
meteu na conversa, olhando para Ian com uma certeza indestrutível, caminhou até
o centro do lugar e olhou para o chão. – A não ser isso. – E pensou por um
tempo. – Tem certeza que vai funcionar?
- Com toda a certeza, amigão. –
Robert bateu no ombro do homem e viu Ian aguentar a força de outro impacto.
- Parem de papo furado! – Finalmente
a mulher falou. Estava sentada num canto escuro, aos fundos da loja. Ainda
abraçava o próprio corpo na tentativa de impedi-lo que tremesse, mas não de
frio, e sim de outra coisa mais gélida e mortal. – O que viemos fazer aqui? E por que trouxeram ele?! – Apontou na direção do homem, que
só então voltou a sintonizar o mundo real e percebeu a presença dela.
- Stacy?! – O homem parecia perplexo.
Outra batida.
- Reencontros são lindos, não? – Ian resmungou,
mas não soltou o cigarro. – As coisas estão meio difíceis aqui, se é que não se
lembram.
- O que estamos fazendo aqui?! – A
mulher voltou a questionar de forma categórica.
- É! O que estamos fazendo aqui? – O
homem perguntou, como se já não soubesse a resposta.
- Estamos aqui pelo Diabo da Tazmânia
lá fora. – Ian apontou para trás enquanto aguentava outra investida.
- Certo. – A mulher levantou. Os
olhos apreensivos e o corpo assustado a cada batida da criatura pelo lado
exterior. Apertou os braços em volta do corpo e foi na direção dos dois no
centro da loja. Olhou para o homem com um ar de compaixão, e até mesmo esboçou
um sorriso que foi correspondido. – Que lugar é este? O que é isso? – E apontou
para o chão que pisava, sujo com o spray de uma tinta recentemente usada.
- Fale com o Bond aí, ele é o
especialista em demônios. – Ian tragou o cigarro e fechou os olhos.
Robert suspirou quando encarou o
olhar da mulher, e tentou ser o mais sucinto possível:
- “Quando a primeira neve cair, no Inverno de oferendas a Krampus, somente
a sete milhas e a noroeste de seu nascimento, ele será adormecido”.
- O que isso significa?
- Significa que só aqui ele pode ser
morto, exatamente aqui, nesta região. – E apontou para o círculo desenhado no
chão, com inscrições em latim, outras em germânico, porém todas em volta de um
círculo com uma estrela de seis pontas desenhada no centro. – É uma maldita
burocracia, mas são as regras.
- Do que você está falando?
- Ele me explicou. – Ressaltou o
homem, e abriu um sorriso nervoso: - Mas é bom ouvir de novo.
Outra batida. Ian acendeu outro
cigarro e ergueu as sobrancelhas, aguardando do amigo a continuação.
- Nós matamos ele há doze anos! – A
mulher frisou, olhando com preocupação na direção da porta. – Por que ele
voltou?!
- Porque vocês não o mataram de
verdade. – Robert dirigiu-se aos dois. – O que você fez – e apontou o homem por
meio segundo – foi muito esperto, mas não foi o necessário.
- Mas mandou bem pra caralho, cara. –
Ian levantou a mão, fazendo um sinal positivo.
- Eu atravessei o coração com sua
própria arma. E então queimamos. – O loiro parecia lembrar enquanto dialogava.
– Ele queimou! Eu recebi as
instruções... Era para ele ter morrido...
- Mas não morreu. – Rob continuou: -
O coração é um ponto essencial em qualquer criatura, seja ela mundana ou não. Aquilo
lá fora é um demônio, e o que você feriu naquele inverno foi o corpo físico que
ele havia materializado. Destruiu o cerne da carne, não o cerne da alma.
- Que filosófico. – Ian riu.
Robert também. Já o homem e a mulher
não viram tanta graça.
- A forma espiritual daquela coisa
sobreviveu, mas levou anos para se reconstruir. Enquanto vocês achavam que
estavam livres, ele ganhava força.
- Meu Deus! – A mulher se abaixou,
ficando de cócoras. – Estamos mortos! Ele voltou para... Estamos
mortos!
- Sim. Ele voltou para buscá-los. Vocês
ainda têm uma dívida com ele.
- Quem o invocou? – Ian quis saber.
- Eu. – O homem respondeu,
preocupado. – Eu não fazia ideia...
- Poucos fazem, amigão.
- Evan o desrespeitou quando tentou
salvar as vítimas. – A mulher olhou para o loiro como se dividisse com ele um
fardo, talvez por isso não o fitasse com desaprovação. Eram cúmplices. – O Papai Noe... – E corrigiu-se: – A criatura
voltou-se contra nós e passou a nos caçar.
- Que Natal pesadão. – Ian aguentou
outro impacto e respirou fundo. – Dá pra agilizar as coisas por aí?
- O que vocês vão fazer? – A mulher
perguntou.
- Mandá-lo de volta ao Inferno, mas
aos retalhos. – Robert sorriu com o canto da boca.
- E por que nos trouxeram aqui? –
Evan perguntou, aflito. – Por que precisam de mim e de Stacy?
- Pelo menos uma das crianças de
Krampus deve proferir o feitiço.
- Uma? – os dois perguntaram juntos.
- Sim. Um de vocês precisa proferir o
feitiço.
- E por que me trouxeram aqui!? –
Stacy gritou, eufórica. – Por que me arrastaram para esse inferno de novo?
- Porque provavelmente você estaria
morta se não tivéssemos te encontrado. – A calma de Robert era quase irritante.
Ele parecia um bom professor controlando uma turma de pirralhos desobedientes. –
Krampus nunca foi morto porque sempre capturou as crianças com quem fazia seus
pactos. Elas – e apontou para Evan – ganhavam seus presentes e nunca mais
encontravam com o demônio em vida, mas não sabiam que tinham vendido a própria
alma. Cedo ou tarde ele as vinha capturar. E quando descobria que elas haviam
encontrado um meio de detê-lo, as coisas pioravam. Muitas nem sequer conseguiram
completar o feitiço por falta de tempo; outras nem ao menos descobriram que
existia um feitiço. Assim o demônio sobreviveu por séculos. Em breve viria buscá-los
e então procuraria outra alma atormentada para oferecer presentes. E o ciclo se
repetiria. Finalmente temos a chance de acabar com a farra do filho da puta.
- Parem de falar, porra! – Outro
golpe, mais forte e mais intenso. Ian usou todo o peso do corpo para empurrar o
armário. – E, ah, a respeito de sua pergunta, moça... – Mantinha o cigarro
preso entre os lábios, piscou para ela e finalizou: - Trouxemos os dois como
garantia. Se um não chegasse inteiro, haveria um plano B.
- Seu filho da puta...
A mulher avançou para espancá-lo, mas
Robert a segurou pelo braço.
- Precisamos de todas as peças do
feitiço. O presenteado. – Olhou na
direção de Evan. – E o presente. –
Por fim pousou os olhos em Stacy. – Acabem com isso. Já.
- Vamos lá, vamos lá. – O homem
assentia com as mãos trêmulas. Então colocou-se à frente da mulher e sorriu. – Faremos
isso uma última vez, aí você volta para sua família e eu para casa. Tudo bem?
- Tudo. – Respondeu, com hesitação. –
Eu espero que você esteja certo.
- Ok. – Apertou as mãos dela e ambos
compartilharam o assombro um do outro.
- Fiquem nos fundos da loja. – Robert
apontou para o lugar de onde Stacy havia saído, entregando antes um pedaço de
papel a Evan. Os dois se posicionaram, quase encolhidos, protegidos e escondidos
no canto mais escuro dela. Estavam no auge dos trinta anos, mas pareciam ainda
dois adolescentes que compartilhavam um passado sangrento. Rob segurou a
shotgun entre os braços e certificou-se que os dois estavam bem distantes da
entrada. – Quando ele estiver preso dentro do círculo, comecem a ler.
- Certo. E depois?
- Depois eu queimo o filho da puta
com as minhas próprias mãos. – Foi Ian quem exclamou, excitado. – O veado
destruiu o meu carro. Ele... – E engoliu em seco, olhando para Robert. – Ele
pisou no Happy Feet, cara!
- Oh, merda! – Rob trincou os dentes,
compadecido pela dor do amigo. Aproximou-se e pôs a mão em seu ombro. – Queime
o desgraçado, pelo Happy.
- Pelo Happy.
Os dois fecharam os olhos e abaixaram
a cabeça por alguns segundos de reflexivo silêncio.
Quando saíram da pequena prece
compartilhada, nem ao menos se entreolharam. Robert girou sobre os pés e ficou
à frente do círculo, no flanco posterior direito, enquanto Ian cuspia o que
sobrara do cigarro e, já quase não aguentando as batidas do demônio, usou as
mãos rapidamente para pegar outro cigarro e acendê-lo. Retirou o revólver
novamente da cintura e fitou o chão, fazendo uma pequena e rápida contagem
mental.
Veio uma batida, forte, seca,
estremecendo o armário e rachando a porta que já fazia “creck-creck”. Ele fez a
contagem: um, dois, três... Uma batida.
Um, dois, três... Outra batida. Elevou os olhos na direção de Robert e
balançou a cabeça vagarosamente. E contou: um,
dois, três...
Saltou para o lado, girando sobre as
próprias costas. Um milésimo de segundo depois o armário explodiu em uma
centena de pedaços de madeira, voando em todas as direções, com os mais
diferentes formatos e tamanhos. A criatura rolou pelo espaço aberto, atordoada
pela inesperada travessia, tentou levantar e gemer num misto de dor e
agressividade, mas foi acolhida por uma chuva de balas que saiu tanto de Ian,
quanto de Robert. O segundo estava mais próximo, e teve a chance de descarregar
a munição enquanto o ser híbrido se recolhia numa posição fetal enquanto
tentava se proteger.
Sem reação e com gritos
aterrorizantes, o monstro rolou pelo chão e tentou se levantar, mas Robert o
acompanhava com extrema agilidade em tirar dos bolsos e colocar mais cartuchos
na shotgun. O monstro mantinha a cabeça abaixada, a calda debatia-se em todas
as direções e as feridas nem ao menos tinham tempo de cicatrizar.
Ian também fazia o mesmo quando
Robert jogou a shotgun no chão e agarrou a criatura pelos dois chifres. Krampus
tentou reagir agarrando seu carrasco pelas canelas, mas a cada movimento para
esmagar as pernas com as unhas, uma saraivada de balas entrava por suas costas.
Puxando-o pelos chifres, Robert o
levou para dentro do círculo. Quando soltou a criatura de cheiro e densidade
asquerosos, as mãos sangravam como se tivessem segurado lâminas afiadas.
Encarou o demônio que o olhou de volta com imensos olhos avermelhados, deu um
salto para trás com todo o fulgor de seu desespero para não ser apanhado e
Krampus saltou logo em seguida. Robert conseguiu sair do círculo, caindo de
costas e encolhendo as pernas, já a criatura nem ao menos chegou ao mesmo
sucesso, esbarrou numa barreira invisível e impalpável que pretendia somente a
ela.
Seus protestos foram visíveis: correu
em círculos e tentou arranhar o chão, mas por alguma razão acabava emitindo
gritos de maior agonia assim que encostava na tinta. Correu em todas as
direções, berrou, protestou com o ímpeto das vozes de
um exército inteiro, porém nada o fez sair do círculo. A língua projetada para
fora da boca movia-se como um membro extra, deslizando por entre os lábios e
contorcendo-se em coreografias profanas em pleno ar, como se houvesse uma
segunda alma ou consciência agindo ali. Por alguns longos e pesados segundos,
Krampus manteve os olhos presos em Robert, então esqueceu-se do carrasco para
fitar Evan e a mulher - duas de suas antigas e desobedientes crianças.
O peso por trás disso garantiu ao demônio um ímpeto maior de fúria, e sua
rebelião voltou a intensificar, arranhando as garras pelas brechas que o
símbolo no chão permitia, girando a imensa cauda e gemendo a agonia do cárcere.
Robert arrastou-se pelo chão frio e
gritou para Evan, arrancando o homem do terror em que estava afogado enquanto
olhava o demônio encurralado. Foi
obrigado a levantar num salto, escorregando meio desengonçado na direção do
homem, agarrou-o pelos pulsos e gritou ordens tanto para ele quanto para mulher,
cobrando-os agilidade na façanha. Ambos relutaram, pelo medo da criatura, pela
falta de adaptação aos rituais de exorcismo ou por pura confusão com o
significado das palavras escritas no papel, mas por fim colocaram-se lado a
lado e iniciaram o feitiço a princípio em murmúrios, posteriormente em
tonalidades de voz mais firmes, tremidas e atrapalhadas, porém determinadas.
A intensidade dos gritos monstruosos
aumentou e num instante a cidade abandonada servia de palco para as súplicas e
maldições de um demônio tão antigo quanto a própria terra. Entre rangidos dos
dentes e um arranhar metálico da garganta, além das debatidas incessantes de
uma língua longa e molenga entre os caninos salientes, um coro de vozes
diferentes era proferido pelo demônio. A criatura emitia vários chiados e
xingamentos, todos simultaneamente, alguns gritando “Stacy, sua putinha. Eu vou te amarrar, eu vou te prender, eu vou te
amarrar, eu vou te prender, vou te enforcar, eu vou te prender, eu vou te
prender, te amarrar, te amarrar... puta, puta, puta, puta!”, já outros
limitando-se a “Evan vai queimar,
queimar, queimar, queimar! Você vai queimar! Vai queimar! Queimar! Queimar!
Você queimar! Queimar! Queimar!”. Eram vozes humanas, vozes femininas,
gargalhadas distintas entre si expressando um leque particular de
personalidades.
As vozes atingiram Evan de forma
certeira, pois foi ele quem começou a vacilar diante do feitiço. Stacy, embora
apavorada e aparentemente reconhecendo as vozes como entes falecidos de uma
época que só ela e o homem ao seu lado tinha consciência, conseguiu centrar-se
na tarefa e até mesmo elevou o nível da voz.
- Não pare agora. – Rob sussurrou
próximo a Evan, como um conselho secreto a um velho amigo.
O demônio continuava, em um coro
distinto de vozes:
- Você vai queimar!
- Queimar!
- Feliz natal, viadinho!
- Queimar!
- Sempre! Sempre!
- Queimar!
- Sua puta!
- Meu presente!
- Queimar!
- Puta!
- Queimar!
- Ho ho ho ho ho!
- Queimar!
- Ho ho ho ho ho!
- Evan, não
se perca! – Robert repetiu, assentindo para Stacy ao notar que era a mulher
quem tomava as rédeas do exorcismo.
-
Queimar!
- Queimar!
- Queimar!
- Só falta você, Evan. – Robert
gritou ao ver que Krampus já não corria em círculos, agora estava parado sobre
mãos e patas, braços e cascos. Como um cão à espera do ataque.
- Se... Se eu conseguir...
- Você conseguiu uma vez, pode fazer
de novo. – E colocou-se entre ele e o demônio, impedindo a visão de Evan. – São
só algumas palavras, cara. Vai em frente.
Desesperada, a monstruosidade
natalina viu o esforço de Robert surtir efeito. Ela enxergou o olhar
amedrontado de sua antiga criança, pois ela proferia as palavras sem fitá-la,
mas o som delas juntamente àquelas também ditas pela mulher fizeram seus gritos
parar, as vozes humanas desapareceram e o desespero do demônio foi a única
coisa que preencheu o ritual da noite. Enquanto ela se debatia em protestos,
enquanto as duas crianças recitavam o feitiço e Robert mantinha a atenção de
Evan longe da visão torturante do demônio, Ian acendia o terceiro ou décimo
cigarro e caminhava para fora da casa com um sorriso ardiloso na boca.
Krampus berrou.
Girou de costas no chão.
Krampus gargalhou.
Pulou sobre os símbolos que o
prendiam.
Krampus pôs as mãos nos ouvidos
gigantes.
Krampus gargalhou a antiga e sádica
gargalhada de anos atrás.
Krampus não se divertia aquela noite.
Lá fora, Ian aquecia os lábios e os
pulmões. Tinha agora o corpo destruído de Happy Feet na mão esquerda.
Na mão direita, tinha um galho que
usara para acender nas chamas do carro.
Guardou os resquícios póstumos do
pequeno amigo e andou de volta à antiga loja.
A música ainda tocava dentro de seu
carro:
I know it's hard 'cause I'm far away
But I'll be back on Christmas Day
Until then let me hear you say
But I'll be back on Christmas Day
Until then let me hear you say
Todos olharam para ele quando cruzou
a porta. Deveria ter uma postura meio babaca com o cigarro na boca e uma tocha
na mão, mas sinceramente pouco se importava.
Era Natal, certo?
Encontrou o demônio ainda mais feioso
se remexendo dentro do círculo, mas agora havia algo de diferente nele. Talvez
fosse o cheiro, talvez fosse o olhar, ou talvez fosse os pelos negros do resto
do corpo embranquecendo pouco a pouco, assumindo o mesmo tom da neve.
Krampus urrou uma última vez antes de
virar-se de barriga para cima e ofegar feito um sapo à beira do último suspiro.
As palavras ainda eram proferidas quando tentou fracassadamente
arranhar a pintura no chão. As unhas arrastaram-se sem força e ele perdeu o
movimento dos braços; a língua caiu entre os enormes caninos e agora piscava
devagar, mas não efetivamente morto.
Não, ainda faltava um toque final.
E ele sabia disso.
You got to be good
Gotta be good…
Gotta be good…
O galho ainda ardia na mão de Ian
quando Evan e Stacy contornaram o círculo e entregaram o pedaço de papel a
Robert. Fosse qual fosse a importância que desempenharam uma vez no passado, faziam isso agora, de novo, outra vez, mas com menos adrenalina, menos
excitação. Aos olhos de Ian, pareciam extremamente cansados com tudo aquilo – e
deviam detestar a época natalina.
O homem foi o que menos teve coragem
de encarar a criatura, e passou por Ian encarando o fogo como um velho amigo.
Tudo o que sussurrou antes de sair daquele lugar foi:
- Fogo...
Finalmente.
Já a mulher passou por ele colocando
os braços em volta do corpo, parecia quase que reclamaria do maldito aquecedor
que não funcionava, mas limitou-se a um sorriso singelo. Tinha alguns
ferimentos sob aquele rosto bonito de cabelo negro e sobrancelhas grossas. Ian
realmente desejou que a vida fosse como um pornô barato e que ele tivesse sua
recompensa, mas na maior parte do tempo ela era monótona e enfadonha.
Wait for the real thing and skip all
the rest
You got ta be good…
You got ta be good…
Robert parou ao seu lado, ambos
diante da criatura que os fitava com olhos ainda intensos de um vermelho
profundo, mas daquele ângulo, de cabeça para baixo, peito aberto e envelhecido
como a neve, já não parecia tão medonho assim.
- Por que tínhamos de fazer essa merda em
plena vésoera de Natal? – Ian devaneou enquanto fitava o demônio.
- Tecnicamente só demos a carona. –
Rob balançou os ombros e tirou um cantil de dentro do casaco, mas não o abriu.
- Tecnicamente eu fiz isso. Você só
entregou a maldita cantiga do coro, seu
veadinho bastardo.
- Alguém precisa fazer o trabalho
intelectual.
Krampus gemeu, talvez em represália
aos dois rapazes.
Nenhum deles notou.
Cause you're the one that this Santa
loves best
You've got to be good
Gotta be good…
You've got to be good
Gotta be good…
Robert olhou para trás: Evan e Stacy
procuravam abrigo na construção ao lado.
Um carro queimava no meio da neve. O
outro tocava qualquer coisa ao longe.
- Como vamos sair daqui?
- Hm. – Soltou a fumaça do cigarro
pela boca como um suspiro divertido. – Sinceramente eu não faço a mínima ideia.
- Oh. – Robert apenas ergueu as
sobrancelhas, tão preocupado quanto o amigo.
- Acha que o pessoal do guincho está
de plantão?
- Provavelmente.
- É, provavelmente.
Os dois assentiram, observando o
demônio em seu ofego interminável.
And underneath that mistletoe
I'm gonna hold you tight and then I won't let go
Because I really love you so
You got to be good
Gotta be good
So good
You got to be good…
I'm gonna hold you tight and then I won't let go
Because I really love you so
You got to be good
Gotta be good
So good
You got to be good…
- Vá em frente. – Robert apontou com
o queixo.
- É pra já.
Ian aproximou-se a passos
lentos, olhou nos olhos de Krampus antes de encostar a ponta do galho que
queimava bem no meio da barriga peluda e nua. Ele gritou com uma voz fraca,
numa rouquidão incômoda. Ian soltou o galho e deixou que o fogo consumisse
tudo.
Em anos fazendo aquilo, nunca tinha
topado com um verme que não arregasse
diante do fogo – bastavam as palavrinhas certas e um isqueiro funcionando.
Voltou ao lado de Robert e suspirou, jogou
a bituca do cigarro fora e puxou imediatamente outro do bolso.
Os dois assistiram ao demônio queimar
enquanto ele sofria e gemia tão fraco quanto o som de um floco de neve caindo
lá fora.
Ian acendeu o cigarro.
Robert abriu o cantil.
Ian tragou.
Robert bebeu.
"Feliz natal", a frase ficou no ar, porém nenhum dos dois a proferiu.
Não era lá tão necessário.
Ian estalou os lábios com o pensamento.
Não era lá tão necessário.
Ian estalou os lábios com o pensamento.
E então sorriram.
Trilha sonora:
Arte:


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