20 de agosto de 2018

Tiro





Quando falas de mim
tua língua me faz crer
tão certamente assim
que sou um monstro.

Agora, frenético,
persigo seres impuros.
Vidrado e louco caço
estes animais noturnos.

Em minhas mãos,
um rifle apontado.
Em meus punhos vãos
o destino engatilhado:

Diante da fera,
dobro o dedo:
BANG!
E um tiro no espelho.


(Felipe Santiago)

7 de julho de 2018

Lavinha






Um dia desses, encontro Lavinha.
Ela está descendo do carro após estacioná-lo. Coloca as chaves na bolsa, olha-se no reflexo e atravessa a rua. Na verdade, corrijo: é ela quem me encontra. Grita meu nome, abre os braços – os dentes, enormes, agora corrigidos. Não que fossem errados antes. Retribuo o abraço. Eu amo o sorriso das pessoas que passeiam ou que passearam por mim, porque nunca fui muito de exibir sorrisos, evito-os ao máximo: o rosto transfigura, os olhos somem, o desalinho odontológico evidente. Nos outros é mais bonito, coisa linda de se ver. E embora eu já achasse naqueles tempos Lavinha um belo pedaço de alegria e formosura com seus quatro milímetros de espaçamento entre os dentinhos da frente, ela permanece igualmente linda. De um jeito diferente, mas irônica e igualmente linda.
Ela me esmaga. Os braços mais fortes, o quadril mais firme e a quentura dos braços sempre um travesseiro bom. Pergunta por onde tenho andando e digo que por esta mesma rua, quase todo santo dia. Tenho uma sacolinha de pães carecas nas mãos. Ela continua sorrindo – em suma, este relato é sobre o sorriso e sobre o pé direito de Lavinha.
O sorriso, estenderei. Quanto ao pé, já chego lá.
Ao lado dela, voltamos à padaria. Ela olha para minha sacolinha rala, diz que acabei de sair do trabalho e por coincidência parei aqui. Todo santo dia, menino, eu passo na frente dessa padaria e o cheiro do pão parece tão bom, até os salgados me chamam de dentro do carro. Lavinha é dessas que fala sorrindo ou que floreia enquanto fala. Aponto para a estufa, digo que tem um lanchão com creme de frango que é do cacete. Então, sem rodeios, ela compra três daqueles lanchões – dois de frango e um de queijo com presunto – e mais uma porção farta de pães. Enquanto esperamos o resto da sacola, ela me pergunta sobre o que ando fazendo. O de sempre, tu sabes. Escrevendo aquelas coisas lá? O “aquelas coisas lá” de Lavinha não soou desdenhoso como soa na boca do resto do mundo. Agora sou eu que estou rindo, mas não com a mesma desenvoltura ou transparência que Lavinha. A parte boa, claro, é que ela sabe disso, e continua: Eu vi as tuas fotos nos eventos e na divulgação. Estás em algum projeto agora, escrevendo alguma coisa? Alguma coisa?, pergunto, retoricamente divertido. Sempre. Dou de ombros. Lavinha pega as sacolas e finalmente faz a pergunta: me conta mais, posso tomar esse café na tua casa? Ela levanta a sacola com os salgados e os pães, e finalmente compreendo o porquê.
O caminho até minha casa é uma porção de releituras do passado e comentários sobre metade das pessoas do colégio. Lavinha não fala muito sobre os defeitos de outras pessoas, na verdade está mais centrada nos nossos: o cabelo ressecado que batia na cintura, a franja esquisita, as unhas pretas, os cadarços pretos, os cílios pretos, o rímel, as sombras pretas e os batons em sete diferentes ramificações de preto ou cinza. E não termina nela: continua pelas coisas esquisitas que eu escrevia na parte de trás do caderno, os desenhos aleatórios nos cantos das apostilas de física e os cadarços vermelhos logo após as aulas de literatura sobre Álvares de Azevedo ou a castrice de Canastrão Alves.
Estamos sentados no chão da sala, as xícaras fumegantes no calor da tarde de agosto, os pães cortados e recheados de margarina em excesso ao lado do terceiro lanchão (o de queijo com presunto) que decidimos dividir em partes iguais.
Em retrospecto, rimos mais de nós mesmos do que dos outros, e talvez eu até esteja menos resistente ao pensamento de como meu rosto ficará ou o que meus dentes demonstrarão. No centro da minha sala, Lavinha parece me parece um velho guru que há muito poderia ter partido para o nirvana no interior da caverna, mas deliberadamente permanece no centro da vila para receber peregrinos e guiar os nativos e nutrir as raízes do povo. Nesta posição, com pernas dobradas e pés descalços, Lavinha é a mulher da qual detém verdades não absolutas sobre questões inconstantes. Lavinha é aquela que pouquíssimos de nós se tornaram.
Olhando para os pés dela, especialmente para o direito, onde há uma trilha levemente espessa, uma cicatriz com a largura de um dedo anelar, iniciando-se do flanco esquerdo do calcanhar, circundando a dobra dele e estendendo-se até quase tocar o dedinho. Lavinha acompanha meu olhar, percebe meus três segundos de silêncio e abre um sorrisão, após ter certeza de ter mastigado todo o pedaço do lanchão. É ela quem primeiro diz:
– Sinto falta daquela época.
– Eu também.
– Tô falando especificamente da época do hospital, na verdade.
– Ah.
– “Ah” – ela repete, brincalhona.
– Tu nem de longe foi o meu melhor namoradinho.
– Tu nem de longe foi a minha primeira melhor namoradinha.
Nesse momento gargalhamos. Ambos de boca cheia.
No meio de cabelos esquisitos, cadarços coloridos e apreço mais pelo romantismo do que pela tão aclamada escola que viria em seguida, há as memórias “da época do hospital”. Entro nele e Lavinha está cercada pelas irmãs, o irmão e a mãe.
– Lembra do olhar que mamãe te deu? – ela pergunta sorrindo, é claro.  Divertindo-se da memória com os olhos lagrimando.
– Tua mãe ainda me odeia?
Ela balança a cabeça freneticamente, enfatiza que não e ressalta:
– Só que até hoje ela me pergunta se tu ainda escreves “aquelas coisas doidas”.
Rimos novamente.
Reponho o café em nossas xícaras.
Repartimos o terceiro lanchão.
Quando entro no apartamento do hospital, no auge de meus dezessete anos, a família de Lavinha me encara com os olhos pesados. Somente a irmã mais velha, provavelmente aquela a quem os reclames de Lavinha mais esquentam os ouvidos, é quem quase salta sobre mim com unhas preparadas e bicudas engatilhadas. Julga-me má influência. Já a mãe contorna a situação, beija a testa da filha com ar de repreensão zelosa, sorri para mim (lembro do sorriso porque o sorriso naquela família é característica ímpar, talvez pelos dois, três ou quatro milímetros de afastamento entre os dentes, dependendo da predisposição genética que você recebeu).
Às vésperas dos dezessete e, portanto, no auge dos dezesseis (perdoem-me a redundância, mas o faço por vias propositais), lá pelos céus de escorpião, após exaustiva ingestão de Pais e Filhos, do Legião Urbana, e demasiada exposição às páginas de O Apanhador no Campo de Centeio, Lavinha decide pular a janela do quarto, num mergulho final do terceiro andar até o chão. Os relatos são diversos, as testemunhas aos montes, com destaque para o de dona Néia do 23: “a menina gritou uma coisa esquisita, acho que era um recado de suicida, minha filha. Falta Deus no coração dessas crianças”.
Quando questiono, ali mesmo no apartamento do hospital, o que havia gritado antes de pular, Lavinha responde que foi uma frase do Holden, ora bolas. Ora bolas era uma expressão aceitável aos dezesseis. Tentativas de suicídio, para alguns, também era. Mas é tarde da noite e por isso rimos baixo para que o resto da família Medeiros não escute, rimos escondido porque não podemos transbordar diversão ante situação familiar tão trágica, vergonhosa e constrangedora.. No chão desta sala, entretanto, gargalhamos com olhos lacrimejando.
– Eu tenho dezesseis anos agora – Lavinha imita a mesma frase que disse aos dezesseis – e só posso morrer uma vez aos dezesseis.
As redundâncias, ressalto, tanto as minhas quanto as dela, são deliberadamente propositais.
– Essa foi a frase? – Pergunto.
– Não, não, besta.  
Então Lavinha dos dezesseis anos, e não a Lavinha de agora, me repete exatamente a epifania de Holden, vírgula por vírgula, e da qual não transcrevo agora por deliberada intenção também.
Que Apanhem-na.
– Por que tu fizeste isso, porra? – pergunta meu Eu insensível de dezessete anos à primeira melhor namoradinha da época.
O Eu sensível de dezesseis anos de Lavinha responde:
– Por todos os irmãozinhos perdidos.
À época, muitos anos antes de entendê-la e imitá-la à minha própria maneira, o meu Eu de dezessete não a compreende e opta por manter-se calado. Afinal, Lavinha sempre fora o velho guru parado no centro da praça, mesmo quando não agia como tal.
Por isso aos dezesseis Lavinha pula do terceiro andar. Desce estabanada pelo ar após um cálculo equivocado e tem o pé dilacerado pela grade no muro.
– A dor doeu mais que a dor – diz a menina chorosa na cama do hospital. – A dor do corte, sabe? Não a da queda.
E pelos meses seguintes, até muito depois do natal, do fim do ano e da viagem definitiva para outro estado, ela faz fisioterapia. Mas é mastigando uma banda de pão que gesticula as mãos, divertidíssima, para que eu preste atenção:
– Posso confessar uma coisa que não conto pra ninguém?
– Claro.
Ela se inclina, suavemente. As mãos em concha sobre a boca, a voz baixa para revelar o segredo:
– Até hoje eu manco. Quase ninguém percebe, só minha irmã.
A tarde prossegue até o zênite crepuscular, quando ela anuncia sua partida com um abraço e promessas de vamos marcar, embora saibamos que nada será marcado no final. Antes de calçar os sapatos, entretanto, espio uma vez mais a marca rosada e camuflada no pé dela.
Dessa distância, olhando para a Lavinha de agora, a cicatriz quase parece imperceptível, exatamente como os quatro milímetros entre os dentes dela que sumiram e que continuam a radiar um baita sorriso fraterno.
Ela se despede com um forte abraço e buzina, expansiva, enquanto acena, deixando a sacola inteira de pães sobre minha mesa em forma de presente.



4 de julho de 2018

Roma está em chamas,




Roma está em chamas, disse ele, enquanto colocava mais um drink, e aqui estou, banhado em um rio de bocetas. Lá vem, ela pensou, mais uma crítica bêbada sobre como tudo era melhor no passado e como nós, coitados, nascidos tarde demais para ver os Stones em algum lugar ou inalar a boa Coca do Studio 54, nós praticamente perdemos tudo o que valha a pena viver para ver. E a pior parte foi que ela concordou com ele. Aqui estamos, ela pensou, no fim do mundo, no fim da civilização ocidental e todos estamos tão desesperados para sentirmos algo, qualquer coisa, que caímos uns nos outros e fodemos nossos caminhos ao longo do fim dos dias.

(Mia. Californication, s01e06)



17 de maio de 2018

Suco de caju tem sabor de conforto




Kiara está bêbada.
Há quem diga que o maior sinal de embriaguez seja a falta de sensibilidade no nariz, mas no caso dela é a sensação ainda mais incômoda de inchar o rosto, a carnezinha sobre as pálpebras intensificando a cara já tão natural e caçoada de sono – para alguns, um charme, para outros, uma piada.
Então ela volta para casa, tira as panelas da geladeira e esquenta a comida. Em algum ponto da noite, cai no sono. Na manhã seguinte, quando o celular desperta antes das seis horas, desce as escadas e descobre que as panelas foram estocadas e organizadas na geladeira, indicando que conseguiu guardá-las de volta: bêbada responsável. Ela vai ao banheiro, esvazia a bexiga quase estourando. Volta à geladeira e pega a garrafa com gelo – um litro de água gelada, um litro de água bebida. Mas só isso não resolve, pois a sede não é de ressaca. Ela conhece vários tipos de sede, sabe a textura seca da língua e do céu da boca, sabe como a garganta ressaca quando anda por tempo demais sob sol forte ou como os lábios racham quando passa três dias inteiros sem hidratar corretamente o recipiente ao qual chama de corpo.
Este tipo de sede, o tipo de agora, no entanto, é o mais frequente.
Kiara apanha a insulina, aplica na coxa. Em uma hora, talvez uma hora e meia, a sede terá cessado e o açúcar que entope as veias, que degrada nervos e que a consome as córneas terá diminuído, e com ele a sede também. Até lá, a moça enche outro copo e desce mais um litro de água gelada. Regressa ao quarto e cai na cama. Duas horas depois, o celular desperta. Levanta, a sede já quase inteiramente sanada, a bexiga cheia de novo. Vai ao banheiro, senta, batuca os pés descalços na lajota branca. anômala, apática, une os joelhos, espreme as juntas e tira a água do meio das pernas. Limpa-se, embola o papel num amontado desengonçado, joga no lixo. Desce as escadas, prepara o café. Sobe as escadas, separa a roupa, liga o ferro, passa a roupa, desliga o ferro. Banheiro. Chuveiro. Outra mijada. Coloca a roupa, penteia os cabelos. Antitranspirante Dove (ou o que resta dele). Calça, perfume e calcinha – não exatamente nessa ordem. Desce as escadas, torra um pão, coloca o café na xícara. Liga o celular, música alta. A primeira é Felipe Ricotta, depois troca para The Smiths. The Smiths duas, três e cinco vezes – a mesma porra de música: as mesmas duas garotas dentro de um carro que se esmigalha contra um ônibus.
– Tá pensando nela, né? – Kiara pergunta forte em desmedido, alto e bom som entre as paredes solitárias da cozinha. – Isso, vai: começa o dia desse jeitinho, sua pau no cu do cacete.
Xingar-se é hábito, rotina diária. Sumariamente receitado pelos psicólogos de esquina.
As instruções que segue nesta manhã (segundo o passo-a-passo impresso no papel pregado na geladeira) dizem que ela só deve comer até as oito horas. São sete e cinquenta e nove quando engole o último pedaço de pão. Penteia o cabelo uma vez mais e em seguida bagunça de novo. Sai de casa e pega carona com o bom e velho tio Edgar. Ao chegar à clínica chique, em prédio futurista no centro da cidade, com pessoas bem-educadas e de sorrisos intensos, ela descobre que o médico chegará somente dali a três horas. Três horas. Ainda são oito e ela não pode comer nada, e pior: não pode sequer beber  nada, muito menos água. Kiara ainda está desidratada, mas por sorte a insulina resolveu algo, o mínimo que seja – a pele está menos quente, a sensação de falsa febre por causa da hiperglicemia agora menor, o coração menos acelerado e a respiração já controlada. O problema é que com o passar das horas sem comer nada a insulina faz efeito demais, e é a hipoglicemia quem começa a dominar o jogo. Tio Edgar está há horas ao lado da sobrinha, mas ela não pode avisá-lo sobre a tragédia que o corpo anuncia neste momento, pois seria um desperdício de tempo, de viagem, de ticket de estacionamento e de paciência cosmológica. Ela levanta da cadeira, embora não deva. Não deve gastar a energia que o corpo tão pouco dispõe, mas teimosa, dá uma volta. Precisa aliviar o tédio, a ânsia, o desespero. Na clínica não há revistas: nem Veja, nem Istoé, nem Caras, nem Recreio, mas há A Arte da Guerra e O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
A atual professora de Literatura Portuguesa Moderna de Kiara, adiantando as cenas da próxima disciplina, fala a respeito de Saramago a todo instante: Saramago, Saramago e Saramago. Saramago isso, Saramago aquilo. Saramago que tão bem conhecemos por um de seus romances mais espetaculares:
Ensaio
sobre
a cegueira.
Internamente, Kiara está rindo.
Externamente, a boca da paciente se retorce num espasmo de ironia. 
Se pudesse xingar a si mesma, Kiara o faria.
O que faz, no entanto, é se sentar de volta. Alguém a chama pelo nome – um rapaz vai até ela com um colírio e pede para que não abra mais os olhos após pingá-lo. A moça obedece, comenta duas vezes com o tio, entredentes, que seu maior problema agora é não dormir (mas não menciona a hipoglicemia e o quanto precisa comer e repor as energias). Por mais três vezes o rapaz retorna e coloca o colírio que (todos sabem) dilatará as pupilas – ela já fez isso antes, todo mundo pelo menos uma vez na vida já fez isso antes, a questão enigmática é que neste momento ela não sabe o que realmente a aguarda do outro lado da sala e nem o porquê o médico exaltara a palavra “complexidade” enquanto rabiscava a guia dos exames para mandá-la até ali, ali, naquele lugar, naquele exato instante.
Então pensa que se dane, e dá de ombros. Tem dado de ombros há muito tempo na vida. Paralelamente, monta uma série de piadinhas para caso a verdade que se anuncia realmente se mostre fatídica. Uma delas é a respeito da fantasia de Demolidor (a). Há uma edição em que Matt Murdock vai fantasiado de Demolidor a uma festa de Halloween, isso sim é piada (Kiara viu a cena na timeline Dela, a mulher de rosto borrado em pixels que povoa sua memóriaporque Ela gosta dessas coisas e obrigou Kiara a assistir a série do herói na Netflix, aquela com o ator fofinho e cabeçudo).
Kiara consegue ouvi-la dizer, lá no fundo da memória enquanto comia um prato de frango assado com arroz, farofa e um copo gelado de água:


Sua maldita comida preferida, né, filha da puta linda?
– Ele é muito cabeçudo. – Rindo, a comida pulava sem querer para fora da boca. – Mas também é fofinho.
Às vezes Kiara também gosta de xingar quem muito deseja odiar, porém tão pouco odeia. Ajudava a lidar com as coisas.  
Novamente o mesmo rapaz a chama pelo nome e a moça é conduzida pelo braço à outra sala. Uma senhora de falso sorriso acolhedor aplica nela uma substância.
– É contraste – avisa a senhora. 
Kiara fica surpresa que não esteja falando sobre o recurso fotográfico ou de edição de fotos (isso foi outra piadinha).
Ela também avisa que sua urina ficará extremamente amarela, já que o organismo começará a expelir aquela merda feito um desgraçado, e que talvez as veias até fiquem roxas. 
– Mas não é hepatite. – A senhora ressalta, abrindo um sorriso. 
(Uma semana depois, Kiara continuará mijando uma substância amarela demais que quase tem certeza de não ser urina).
Novamente a conduzem à outra sala, dessa vez uma cheia de equipamentos estranhos. é quando a moça finalmente compreende: isso é uma abdução alienígena, 
A mulher na memória adoraria saber que vim parar aqui, Ela, a mulher borrada, o eco na cabeça; Ela com certeza me ajudaria com uma piadinha nova. Mas Kiara está divagando outra vez, escapando para longe demais da realidade numa reação defensiva e saudosista, sobretudo saudosista.
O médico (que finalmente chegou às onze em ponto) dita um bocado de regras e ordens, sempre com um sorriso agora verdadeiramente acolhedor: sente-se em na cadeira, Kiara. Posicione o queixo. Isso. Olhe para a luz vermelha. Flash. Olhe para baixo. Flash. Para a esquerda. Flash. Para a direita. Flash. Olhe de novo. Flash. Já fez algo com laser alguma vez? Flash. Tem uma marca de laser aqui. Flash. Não dilatou direito, preciso fazer outra vez. Flash. Outra vez. Flash. Mais uma. Flash. Isso, Kiara, já vai terminar. Flash. Olhe para a luz vermelha. Flash. Abra os olhos. Flash. Abra bem os olhos. Flash. Pronto, tudo certo. Pode ir.
Ao final do exame e com a visão completamente vermelha, Kiara se sente o próprio Ciclope em pessoa: um Ciclope sem Jean, um Ciclope com a Jean que olha para o Wolverine que também olha para a Jean, uma Jean que não está olhando para o Ciclope, que nunca olha para o Ciclope. Ela (aquela desgraça linda de silhueta fodida e de rosto intencionalmente borrado em pixels na mente de Kiara) também gostava dos X-Men. Recordando agora, havia um fragmento sobre o assunto:
– Esse filme é um lixo. – Ela diz dentro do eco perdido que há na cabeça de Kiara. – Mas o Ciclope é fofinho.
Divaga.
Tem divagado demais ultimamente.
Uma vez mais guiada pelos braços, a paciente senta em uma cadeira. A enfermeira de falso sorriso acolhedor tira a agulha de seu braço. Aperte aqui. Ela aperta. Uma funcionária agradável pergunta se deseja suco de Caju. Ela aceita, por pouco esquecendo completamente da própria hipoglicemia. Ela aceitaria qualquer coisa que pudesse engolir e que cortasse aquele mal-estar, exceto alguns fluídos humanos (sobretudo de procedência masculina). A funcionária agradável traz um copinho de suco de caju e um pacotinho de Clube Social. Kiara está desesperada de fome, as mãos trêmulas. O médico passa com um técnico ao lado. Outro técnico passa por ela, todos eles estão com aquele olhar estranho, o mesmo que os dois médicos antes daquele exame direcionaram a ela quando tiveram de repetir a palavra “edema”. O mesmo olhar que todos eles direcionam a ela quando repetem a palavra "edema".
Fodam-se todos.
Kiara dá de ombros – já mencionou a moça o quanto tem feito isso ultimamente?
Pelo menos estou bolando piadinhas.
Então ela se pergunta se o suquinho é procedimento padrão enquanto se preparam para dar as notícias. Teria o suco de caju propriedades acalentadoras como todo bom, grande e engelhado maracujá? Teria o suco de caju sabor de conforto? Seria o suco de caju uma espécie de colchão inflável usado com dublês de cinema para te proteger das quedas? De qualquer forma, diante da fome que a devora, sucos de caju são a melhor coisa da vida. Ela começa a achar que o suquinho de caju talvez seja a forma mais profissional e psicologicamente elaborada (prevista em todos os manuais médicos) que têm de anunciar as más notícias.
No fim, enquanto Kiara lentamente dá um passo após o outro fingindo que enxerga o caminho, fingindo que está bem; no fim, do mesmo jeito que fazia na noite anterior fingindo sobriedade, a recepcionista avisa:
– Venha buscar o resultado em três dias úteis, mas venha acompanhada.
Seria um aviso?
Seria um alerta para vir preparada para as notícias ruins?
– Darão mais suco de caju? – Rebate com um sorrisinho tão dúbio que faz até corar o rosto maquiado da recepcionista. Um corar estranho. Um corar que todos gostam de receber de volta. Vitoriosa, Kiara sorri:  – Nesse caso, eu venho.
No caminho de volta, o bom tio Edgar se mantém calado, rindo pouco das piadas feitas pela sobrinha ou pouco mantendo a atenção nelas. Há um silêncio constrangedor enquanto ele se reveza entre risadas perdidas e trocas silenciosas na embreagem. A moça olha para o lado de fora e fecha os olhos tão afetados pelo clarão exacerbado da dilatação e do sol fodido de Belém.
Tá tudo bem. Diz a si mesma, internamente. Tu sabes, mana, é como dizem: o que os olhos não veem, o coração não sente.
Ela dá um sorrisinho. Está ficando cada vez melhor nisso.
Ba dum tss.






10 de março de 2018

queimados, kiara




  
A doença evolui muito rapidamente, diz a endocrinologista. Em seis meses talvez (ênfase no talvez), muito provável, ela tenha evoluído bastante, diz o doutor que é o especialista destas retinas, mas também há outro doutor que trata as dores neuro-

lógicas de kiara que, francamente

(o mais amigável e compadecido de todos eles até agora),

diz que a doença (a causadora de todas as outras,

inclusive da primeira que iniciou estas linhas-versos) queimou todos os seus nervos por dentro, inclusive dos olhos.

kiara suspira.

não possui mais tempo para sentenças regulares ou letras maiúsculas após os pontos ou vírgulas devidamente posicionadas como aprendeu na infância, já que toda a infância futura e passada parece perdida. todas as noites agora os quartos ficam mais escuros, especialmente os quartos da casa dos avós e por isso tanto evita visitá-los e tanto evita passar longos dias e não-mais-belas-noites lá

com eles, embora nem sequer desconfiem da verdadeira razão, acham que kiara está fechada em si mesma nos últimos anos por conta de uma solidão crescente ou de uma mudança magnânima de todas aquelas coisas boas que um dia foi e pelas quais a família sempre se orgulhou, porém que agora não é mais. infelizmente ela não mais os visita com frequência porque tem medo dos dias (devem ser uns quatro a cinco por semana) em que acorda com todas as coisas escuras ou com os contornos da lajota piscando sob seus pés em um tom negro de um branco já perdido ou durante as noites quando não consegue enxergar as feições no rostinho da irmã de pele-jambo ou os próprios olhos ou o

próprio rosto na frente

do espelho.

mas se há algo que conforta a pequena kiara de olhos futuramente deficientes, cegos,
queimados, escuros e, talvez, muito provavelmente em seis meses ou menos, é que até com as piores coisas você se acostuma. kiara sabe disso porque hoje, nos dias em que acorda abrindo as janelas para a luz das setes horas iluminar o quarto, iluminar a visão e dar conforto diante das lajotas piscando e dos contornos indecifráveis, ela espera de trinta a quarenta minutos porque já sabe que em 1hora os olhos estarão quase-normais novamente e tudo,

tudo com certeza,

voltará ao normal. pelo menos por enquanto, quando ainda consegue enxergar os documentários do National

Geographic sobre Truques da Mente às oitoemeia contando como funciona o cérebro

– esta máquina incrível –

e como funcionam

a visão humana

e as córneas

e as retinas

e os nervos

que talvez,

com sorte,

não estejam queimados,

se você não for kiara

e se tiver mais
sorte ainda.