Kiara está bêbada.
Há quem diga que o maior sinal de
embriaguez seja a falta de sensibilidade no nariz, mas no caso dela é a
sensação ainda mais incômoda de inchar o rosto, a carnezinha sobre as pálpebras
intensificando a cara já tão natural e caçoada de sono – para alguns, um
charme, para outros, uma piada.
Então ela volta para casa, tira
as panelas da geladeira e esquenta a comida. Em algum ponto da noite, cai no
sono. Na manhã seguinte, quando o celular desperta antes das seis horas, desce
as escadas e descobre que as panelas foram estocadas e organizadas na
geladeira, indicando que conseguiu guardá-las de volta: bêbada responsável. Ela
vai ao banheiro, esvazia a bexiga quase estourando. Volta à geladeira e pega a
garrafa com gelo – um litro de água gelada, um litro de água bebida. Mas só
isso não resolve, pois a sede não é de ressaca. Ela conhece vários tipos de
sede, sabe a textura seca da língua e do céu da boca, sabe como a garganta
ressaca quando anda por tempo demais sob sol forte ou como os lábios racham
quando passa três dias inteiros sem hidratar corretamente o recipiente ao qual
chama de corpo.
Este tipo de sede, o tipo de
agora, no entanto, é o mais frequente.
Kiara apanha a insulina, aplica
na coxa. Em uma hora, talvez uma hora e meia, a sede terá cessado e o açúcar
que entope as veias, que degrada nervos e que a consome as córneas terá
diminuído, e com ele a sede também. Até lá, a moça enche outro copo e desce
mais um litro de água gelada. Regressa ao quarto e cai na cama. Duas horas
depois, o celular desperta. Levanta, a sede já quase inteiramente sanada, a
bexiga cheia de novo. Vai ao banheiro, senta, batuca os pés descalços na lajota
branca. anômala, apática, une os joelhos, espreme as juntas e tira a água do
meio das pernas. Limpa-se, embola o papel num amontado desengonçado, joga no
lixo. Desce as escadas, prepara o café. Sobe as escadas, separa a roupa, liga o
ferro, passa a roupa, desliga o ferro. Banheiro. Chuveiro. Outra mijada. Coloca
a roupa, penteia os cabelos. Antitranspirante Dove (ou o que
resta dele). Calça, perfume e calcinha – não exatamente nessa ordem. Desce as
escadas, torra um pão, coloca o café na xícara. Liga o celular, música alta. A
primeira é Felipe Ricotta, depois troca para The Smiths. The Smiths duas, três
e cinco vezes – a mesma porra de música: as mesmas duas garotas dentro de um
carro que se esmigalha contra um ônibus.
– Tá pensando nela,
né? – Kiara pergunta forte em desmedido, alto e bom som entre as paredes
solitárias da cozinha. – Isso, vai: começa o dia desse jeitinho, sua pau no cu
do cacete.
Xingar-se é hábito, rotina
diária. Sumariamente receitado pelos psicólogos de esquina.
As instruções que segue nesta
manhã (segundo o passo-a-passo impresso no papel pregado na geladeira) dizem
que ela só deve comer até as oito horas. São sete e cinquenta e nove quando
engole o último pedaço de pão. Penteia o cabelo uma vez mais e em seguida
bagunça de novo. Sai de casa e pega carona com o bom e velho tio Edgar. Ao
chegar à clínica chique, em prédio futurista no centro da cidade, com pessoas
bem-educadas e de sorrisos intensos, ela descobre que o médico chegará somente
dali a três horas. Três horas. Ainda são oito e ela não pode
comer nada, e pior: não pode sequer beber nada, muito menos água. Kiara
ainda está desidratada, mas por sorte a insulina resolveu algo, o mínimo que
seja – a pele está menos quente, a sensação de falsa febre por causa da
hiperglicemia agora menor, o coração menos acelerado e a respiração já
controlada. O problema é que com o passar das horas sem comer nada a insulina
faz efeito demais, e é a hipoglicemia quem começa a dominar o jogo. Tio Edgar
está há horas ao lado da sobrinha, mas ela não pode avisá-lo sobre a tragédia
que o corpo anuncia neste momento, pois seria um desperdício de tempo, de viagem,
de ticket de estacionamento e de paciência cosmológica. Ela levanta da
cadeira, embora não deva. Não deve gastar a energia que o corpo tão pouco
dispõe, mas teimosa, dá uma volta. Precisa aliviar o tédio, a ânsia, o
desespero. Na clínica não há revistas: nem Veja, nem Istoé, nem Caras, nem
Recreio, mas há A Arte da Guerra e O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
A atual professora de Literatura
Portuguesa Moderna de Kiara, adiantando as cenas da próxima disciplina, fala a
respeito de Saramago a todo instante: Saramago, Saramago e Saramago. Saramago
isso, Saramago aquilo. Saramago que tão bem conhecemos por um de seus romances
mais espetaculares:
Ensaio
sobre
a cegueira.
Internamente, Kiara está rindo.
Externamente, a boca da paciente
se retorce num espasmo de ironia.
Se pudesse xingar a si mesma,
Kiara o faria.
O que faz, no entanto, é se
sentar de volta. Alguém a chama pelo nome – um rapaz vai até ela com um colírio
e pede para que não abra mais os olhos após pingá-lo. A moça obedece, comenta
duas vezes com o tio, entredentes, que seu maior problema agora é não dormir
(mas não menciona a hipoglicemia e o quanto precisa comer e repor as energias).
Por mais três vezes o rapaz retorna e coloca o colírio que (todos sabem)
dilatará as pupilas – ela já fez isso antes, todo mundo pelo menos uma vez na
vida já fez isso antes, a questão enigmática é que neste momento ela não sabe o
que realmente a aguarda do outro lado da sala e nem o porquê o médico exaltara
a palavra “complexidade” enquanto rabiscava a guia dos exames para
mandá-la até ali, ali, naquele lugar, naquele exato instante.
Então pensa que se
dane, e dá de ombros. Tem dado de ombros há muito tempo na vida.
Paralelamente, monta uma série de piadinhas para caso a verdade que se anuncia
realmente se mostre fatídica. Uma delas é a respeito da fantasia de Demolidor
(a). Há uma edição em que Matt Murdock vai fantasiado de Demolidor a uma festa
de Halloween, isso sim é piada (Kiara viu a cena na timeline Dela, a
mulher de rosto borrado em pixels que povoa sua memória, porque Ela gosta
dessas coisas e obrigou Kiara a assistir a série do herói na Netflix, aquela
com o ator fofinho e cabeçudo).
Kiara consegue ouvi-la dizer, lá
no fundo da memória enquanto comia um prato de frango assado com arroz,
farofa e um copo gelado de água:
Sua maldita comida preferida, né,
filha da puta linda?
– Ele é muito cabeçudo. –
Rindo, a comida pulava sem querer para fora da boca. – Mas também é fofinho.
Às vezes Kiara também gosta de
xingar quem muito deseja odiar, porém tão pouco odeia. Ajudava a lidar com as
coisas.
Novamente o mesmo rapaz a chama
pelo nome e a moça é conduzida pelo braço à outra sala. Uma senhora de falso
sorriso acolhedor aplica nela uma substância.
– É contraste – avisa a
senhora.
Kiara fica surpresa que não
esteja falando sobre o recurso fotográfico ou de edição de fotos (isso foi
outra piadinha).
Ela também avisa que sua urina
ficará extremamente amarela, já que o organismo começará a expelir aquela merda
feito um desgraçado, e que talvez as veias até fiquem roxas.
– Mas não é hepatite. – A
senhora ressalta, abrindo um sorriso.
(Uma semana depois, Kiara
continuará mijando uma substância amarela demais que quase tem certeza de não
ser urina).
Novamente a conduzem à outra
sala, dessa vez uma cheia de equipamentos estranhos. é quando a moça finalmente
compreende: isso é uma abdução alienígena,
A mulher na memória adoraria
saber que vim parar aqui, Ela, a mulher borrada, o eco na cabeça; Ela com
certeza me ajudaria com uma piadinha nova. Mas Kiara está divagando outra vez, escapando para
longe demais da realidade numa reação defensiva e saudosista, sobretudo
saudosista.
O médico (que finalmente chegou
às onze em ponto) dita um bocado de regras e ordens, sempre com um sorriso
agora verdadeiramente acolhedor: sente-se em na cadeira, Kiara. Posicione o
queixo. Isso. Olhe para a luz vermelha. Flash. Olhe para baixo. Flash. Para a
esquerda. Flash. Para a direita. Flash. Olhe de novo. Flash. Já fez algo com
laser alguma vez? Flash. Tem uma marca de laser aqui. Flash. Não dilatou
direito, preciso fazer outra vez. Flash. Outra vez. Flash. Mais uma. Flash.
Isso, Kiara, já vai terminar. Flash. Olhe para a luz vermelha. Flash. Abra os
olhos. Flash. Abra bem os olhos. Flash. Pronto, tudo certo. Pode ir.
Ao final do exame e com a visão
completamente vermelha, Kiara se sente o próprio Ciclope em pessoa: um Ciclope
sem Jean, um Ciclope com a Jean que olha para o Wolverine que também olha para
a Jean, uma Jean que não está olhando para o Ciclope, que nunca olha para o
Ciclope. Ela (aquela desgraça linda de silhueta fodida e de
rosto intencionalmente borrado em pixels na mente de Kiara) também gostava dos
X-Men. Recordando agora, havia um fragmento sobre o assunto:
– Esse filme é um lixo. – Ela diz
dentro do eco perdido que há na cabeça de Kiara. – Mas o Ciclope é fofinho.
Divaga.
Tem divagado demais ultimamente.
Uma vez mais guiada pelos braços,
a paciente senta em uma cadeira. A enfermeira de falso sorriso acolhedor tira a
agulha de seu braço. Aperte aqui. Ela aperta. Uma funcionária agradável
pergunta se deseja suco de Caju. Ela aceita, por pouco esquecendo completamente
da própria hipoglicemia. Ela aceitaria qualquer coisa que pudesse engolir e que
cortasse aquele mal-estar, exceto alguns fluídos humanos (sobretudo de
procedência masculina). A funcionária agradável traz um copinho de suco de caju
e um pacotinho de Clube Social. Kiara está desesperada de fome, as mãos
trêmulas. O médico passa com um técnico ao lado. Outro técnico passa por ela,
todos eles estão com aquele olhar estranho, o mesmo que os dois médicos antes
daquele exame direcionaram a ela quando tiveram de repetir a palavra “edema”. O
mesmo olhar que todos eles direcionam a ela quando repetem a palavra
"edema".
Fodam-se todos.
Kiara dá de ombros – já mencionou
a moça o quanto tem feito isso ultimamente?
Pelo menos estou bolando piadinhas.
Então ela se pergunta se o
suquinho é procedimento padrão enquanto se preparam para dar as notícias. Teria
o suco de caju propriedades acalentadoras como todo bom, grande e engelhado
maracujá? Teria o suco de caju sabor de conforto? Seria o suco de caju uma
espécie de colchão inflável usado com dublês de cinema para te proteger das
quedas? De qualquer forma, diante da fome que a devora, sucos de caju são a
melhor coisa da vida. Ela começa a achar que o suquinho de caju talvez seja a
forma mais profissional e psicologicamente elaborada (prevista em todos os
manuais médicos) que têm de anunciar as más notícias.
No fim, enquanto Kiara lentamente
dá um passo após o outro fingindo que enxerga o caminho, fingindo que está bem;
no fim, do mesmo jeito que fazia na noite anterior fingindo sobriedade, a
recepcionista avisa:
– Venha buscar o resultado em
três dias úteis, mas venha acompanhada.
Seria um aviso?
Seria um alerta para vir
preparada para as notícias ruins?
– Darão mais suco de caju? –
Rebate com um sorrisinho tão dúbio que faz até corar o rosto maquiado da recepcionista.
Um corar estranho. Um corar que todos gostam de receber de volta. Vitoriosa,
Kiara sorri: – Nesse caso, eu venho.
No caminho de volta, o bom tio
Edgar se mantém calado, rindo pouco das piadas feitas pela sobrinha ou pouco
mantendo a atenção nelas. Há um silêncio constrangedor enquanto ele se reveza
entre risadas perdidas e trocas silenciosas na embreagem. A moça olha para o
lado de fora e fecha os olhos tão afetados pelo clarão exacerbado da dilatação
e do sol fodido de Belém.
Tá tudo bem. Diz a si mesma,
internamente. Tu sabes, mana, é como dizem: o que os olhos não
veem, o coração não sente.
Ela dá um sorrisinho. Está
ficando cada vez melhor nisso.
Ba dum tss.