Dedicado aos que amamos e que, de alguma forma, não estão mais aqui.
I
O Paraíso
Ao
longo de uma quase infinita reta de quilômetros e cercado por uma vegetação
quase rasteira que anunciava aos motoristas os primeiros sinais de um longo e
frio vale californiano, o Paradise empunhava-se solitário no meio de um
grandioso nada. A fachada possuía fontes glamourosas de um neon desgastado, a
inicial P era a única que mantinha-se vibrante a quase meio quilômetro de
distância, seja lá para qual direção você estivesse dirigindo – para a boca do
Inferno ainda mais longo do vale ou para os ares de companhia da civilização.
Em
moldes quase clássicos de um notório e rebuscado traço, as colunas da fachada
formavam semicírculos como colunas gregas ou tentavam imitá-las. De algum modo,
as características do bar à beira da estrada não soavam cafonas de acordo com
os gostos medíocres dos quais se esperavam de prováveis donos desdentados e
barrigudos – havia, decerto, um evidente requinte na entrada como as cores
fortes e vibrantes de uma planta carnívora sedenta para atrair insetos
desavisados. Você precisaria subir um breve lance de cinco degraus até o largo
espaço com dois bancos corridos, lisos, de madeira encerada que servia sempre
de conforto para algum casal embriagado que queria respirar ar puro de beira da
estrada enquanto enrolava suas línguas. Às vezes, um lobo solitário saía do bar
e sentava-se ali, fumando uma carteira de cigarro na promessa de que aquela
seria a última, caso um carro cruzasse a interestadual dentro de quinze
minutos. Mas, às vezes, levavam até 45 minutos ou mais para que qualquer farol
surgisse na escuridão que a vista alcançava. Quando as gangues de motoqueiros se
reuniam, disputando seus elevados níveis de testosterona com piadinhas sujas e
sem graça, que ambos explodiam de tanto rir, ou quando decidiam qual delas
entraria para uma rodada, pois o espaço lá dentro não era tão largo para
abrigar tantas barbas, cicatrizes e tatuagens, então alguns bebiam lá dentro e
outros lá fora, às vezes revezavam, às vezes duelavam de maneira até séria
demais atrás da averiguação de qual dos punhos era mais veloz.
As
brigas no Paradise até plantavam-se e cultivavam-se lá dentro, mas no instante
decisivo de arregaçar as mangas, era lá para fora que iam todos. A última briga
fora há quase três semanas, quase um recorde. A polícia da cidadezinha mais
próxima muito raro batia ali, pois apesar das rixas, os porcos alcoólatras
nunca passavam dos limites (a plateia ou a própria dona do Paradise, Cyntia,
não permitia). As outras ocasiões em que a polícia ali estacionava era quando o
Sheriff Gillian afogava em uma caneca outra desconfiança das artimanhas da
esposa ou quando levava uma das garotas do colegial para um papinho rápido e
para alguns tragos na esperança de facilitar as coisas antes do grande show,
que muito provavelmente ocorria dentro do próprio carro à beira da estrada.
Entre
a margem da estrada e os degraus que levavam à entrada do Paradise, uma extensa
área de terra batida estava sempre marcada com pegadas ou rastros de pneus, sempre
suja, enlameada. A pedido da clientela, Cyntia nunca modificara o local, nem
entrara com um requerimento na prefeitura de Parkins (a cidadezinha mais
próxima de onde o Sheriff Gillian trazia as mocinhas) para acabar com a lama e
colocar de vez uma camada de asfalto. A lama era especial – marca registrada do
Paradise. Ali aconteciam as brigas, ali os brutamontes se agarravam, caíam,
rolavam, esmurravam-se, cuspiam sangue e finalmente davam fortes gargalhadas
pela celebração olimpiana e apoteótica de pancadaria.
Apesar
de tudo isso, o Paradise fazia jus ao nome: era um oásis aos viajantes com
comida rala, de não muita variedade ou sabores aguçados, mas satisfatória –
sombra para os verões escaldantes e calor para os invernos frios, como aquele
atual. Era também um lugar estranhamente agradável de se entrar da maneira como
eram os primeiros templos religiosos para os povos antigos, que reuniam dezenas
de tribos para celebrarem, em comunhão, com os deuses que os regiam e os protegiam.
Desde que Cyntia o herdara do pai, nenhuma briga lá dentro havia ocorrido. Tudo
o que no interior do Paradise se quebrava eram os copos, no máximo. Cyntia era como uma mãe que nunca elevava a voz e
oferecia sempre um largo sorriso, mas que bastaria uma pequena mudança de
expressão para informar a mudança de ânimo e o presságio da tormenta ruim que
nenhum dos clientes estava disposto a vivenciar.
Aos clientes
antigos e aos casuais viajantes, o Paradise era uma joia de se encontrar por
aí, ainda mais se sua barriga estivesse roncando e os lábios ansiando por água
ou álcool.
E,
embora ninguém estivesse naquele momento sentado nos dois bancos e apenas dois
carros permanecessem estacionados sob a gélida temperatura de inverno, caso
você estivesse na lama, na margem ou sentado, veria um par de faróis surgir ao
longe e pouco a pouco se aproximar num ronco intermitente. A caminhonete azul
escura quase camuflava-se na escuridão com um deslizar pesado e quase asmático.
A Chevrolet GM 1974 quase atolou na lama, fez um esforço para sair e conseguir
estacionar ao lado dos outros dois carros. A fumaça saída do escapamento
embaçou por um momento a visão da noite e das ralas estrelas no céu (ainda era
possível ver algumas se você apagasse as luzes do Paradise).
A
porta rangeu e abriu-se com um esforço. Ian desceu do carro com um cigarro
ainda não aceso entre os lábios. Ele não reclamou da porta, nem a esmurrou,
apenas balançou a cabeça com ar de compreensão – o velho Chevy quebra-galhos
estava quase morrendo. Com as botas na lama, ele inclinou-se para dentro da
caminhonete uma última vez antes de fechar a porta, retirando de lá um embrulho
mediano que cabia embaixo do braço direito. Subiu os degraus e antes de
atravessar a porta (que tinha uma enorme placa de “FECHADO” em uma das bandas),
uma linda moça de cabelos negros e traços indígenas saiu de lá. Ambos pararam,
olharam um para o outro, ela sorriu na direção dele, puxou o isqueiro do bolso
de trás da calça e acendeu o cigarro na boca de Ian. Abriu os braços para
aplacá-lo em um forte abraço.
Tala
era quase dez anos mais nova que Ian, que agora tinha os cabelos embaraçados e
grandes, cobrindo as orelhas. Nas laterais, os fios brancos já floresciam como
ramos de Bocas de Leão, os traços
mais firmes, duros, como se houvesse um esforço imenso para dobrar um sorriso
ou como se, há muito, muito tempo não o fizesse. A moça notoriamente surpreendeu-se
com a mudança, mas não teceu comentários a respeito. Limitou-se apenas a
sorrir.
– Você
está quase atrasado, sabia? – Ela disse ao recuar um passo. As mãos estavam nas
laterais dos ombros dele, dizendo, com apenas o leve roçar de palmas e dedos,
um vibrante “olha só pra você”.
– O
cavalo tava meio sem fôlego – ele olhou para trás e ela acompanhou o olhar até
a caminhonete. – Mas aguentou a estrada.
– Onde
está o velho FNM Onça? – Perguntou
ela sobre o antigo modelo brasileiro. A surpresa e decepção estampadas no
rosto.
–
Longa história – respirou devagar e sorriu. – Há quanto tempo está em casa?
– Vim
passar o natal com mamãe. Além disso, ela ainda não conhecia pessoalmente o
neto. Ele precisava saber quem era a famosa Cyntia.
Ian
sorriu ainda mais. Ela continuou:
– Por
isso eu adoraria ficar, mas preciso voltar a Parkins. Caso você e Henry queiram
ficar mais alguns dias, venham nos visitar.
– É
uma ótima ideia.
Eles
se abraçaram novamente e ela sussurrou algo no ouvido dele, tão breve e tão
sincero que Ian retribuiu com um aperto de igual sinceridade. Beijou-a na
bochecha e disse o mesmo. Tala desceu os degraus e enfiou os sapatos na lama
sem cerimônias, entrou no próprio carro e disse antes de ir embora:
– É
melhor entrar logo, estão te esperando há horas.
Quando
cruzou a porta e a trancou atrás de si (como exigia a tradição), Ian respirou o
ar quente do interior do Paradise, sentindo deitar em sua pele como um longo e materno cobertor em uma noite fria de uma estação fria. Amplo, apesar de não
conseguir abrigar mais que uma gangue inteira de motoqueiros, o bar ainda era o
mesmo de tanto tempo antes – como no primeiro e como em todos os outros em que
Ian pisava ali, anualmente e sem faltas. As luzes vermelhas das lâmpadas que
pendiam do teto, nas paredes, as placas de trânsito penduradas como quadros de
artistas medievais, as cinco placas (e contando) dos mais fiéis frequentadores
que perderam a vida na estrada ou por causa da estrada eram ostentados como uma
respeitosa forma de homenagem. O longo balcão com sete bancos ao todo e a
prateleira espelhada com bebidas dos mais diversos tipos – de Wild Turkey ao
Black Jim Beam, Maker’s Mark ao Heaven Hill, uma infinidade de Jack Daniel’s,
todas as outras porcarias que você encontraria à beira da estrada e, claro, uma
garrafa praticamente intocada de Woodford Reserve. Em todos os anos que
visitava o Paradise, Ian percebera que a garrafa permanecia ali, com apenas
duas ou quatro doses servidas. Seria essa outra tradição de Cyntia?
A
velha televisão acima do balcão estava desligada, assim como a jukebox ao final
do bar. Ian passou pelas duas mesas de bilhar, as bolas organizadas e os tacos
dispostos ao lado, como se aguardassem tão ansiosos pela presença dos
jogadores, fossem quem fossem. Ele tocou a lateral das mesas enquanto passou
por elas, havia uma forma carinhosa, havia certa nostalgia no ato. Na última
mesa da parede havia um homem solitário, bebendo sozinho e com a cabeça baixa,
encarando os próprios dedos em volta do copo numa meditação silenciosa. Ian
colocou o embrulho que trazia sobre a mesa e sentou-se de frente para o homem.
– Tá
atrasado, garoto – o homem sequer levantou os olhos para Ian. Tinha os cabelos
ralos no topo da cabeça, embora não fosse tão velho assim. As entradas estavam
agressivas, os cabelos penteados para trás e reluzindo as luzes vermelhas
devido ao gel. A cerveja na caneca estava a dois dedos de terminar e nem
parecia tão gelada.
– É.
Estou ouvindo isso com certa frequência hoje.
Hank
pôs para dentro o resto de cerveja num trago rápido, mas a careta que fez não
foi muito agradável. Hank raramente bebia, o fazia apenas nas ocasiões
especiais, que restringiam-se, no caso dele, a talvez três em um ano. Aquela era uma delas.
– Vai
com calma, meu bom homem – Ian soltou entredentes, com uma risadinha de
deboche.
Só
então o homem ergueu o olhar e o recepcionou com um sorriso que misturava alívio
e fraternidade. Hank poderia, o quanto desejasse, sujar as mãos e banhar-se de
atos severos, mas jamais perderia aquilo que mantinha consigo: uma estranha
simpatia que perdurava até aquele dia, apesar de todos os...
–
Senti sua falta, garoto.
Ele se
levantou e circundou a mesa. Ian levantou-se para que ambos se abraçassem. O
abraço durou mais do que o abraço de Tala, porém igualmente apertado,
demonstrando que aquele era o sinal máximo de gratidão por ainda estarem vivos
em mais um ano.
– Eu
também, velhote – Ian se sentou. – Por onde andou no último ano?
Hank
apenas abanou a mão.
– E
você, por onde esteve?
Ian
desviou o olhar e a mesma expressão dura e já tão inexperiente de dobrar um
sorriso reapareceu. Hank também foi capaz de vê-la.
– Onde
está a nossa anfitriã? – Ian retirou as duas camadas de casaco que usava e
forrou as costas da cadeira e recostou-se.
– É
bom saber que sente minha falta, Ian Morgenstern – a mulher surgiu atrás dele
com uma bandeja que pôs sobre a mesa – ovos e bacon fritos e três canecas de
cerveja cheias, estupidamente geladas, apesar do inverno solitário lá fora. Ela
o abraçou com a mesma força, com a mesma duração, e também disse “olha só pra você” e “que bom te ver... vivo” sem dizer coisa
alguma. Porém não tardou de salientar: – Isso são horas de chegar?
– Eu
prometo que a próxima pessoa que me disser isso não sobreviverá para ver o
próximo natal.
Cyntia
deixara como herança a maioria de suas características físicas para a filha,
Tala, pois tinham as duas uma espantosa semelhança. Entretanto, ao passo que
Tala era esguia e magra, com nariz longo e adunco, Cyntia possuía traços menos
severos, cabelos mais curtos e completamente enevoados, tão prateados quanto os
olhos de Ian. Era mais baixa, possuía mais curvas e mancava no lado esquerdo da
perna, condição que carregava mais com orgulho do que com incômodo. Havia certa
vitória no fato de ser manca, um troféu há muito conquistado e diariamente
exibido, não para o mundo, mas primeiramente para si mesma. Haviam os curiosos
e os enxeridos que desejavam enfiar o nariz na história de Cyntia, confundindo
certas liberdades estabelecidas (e muito bem respeitadas por quase todos) no
Paradise. A eles, a verdadeira história não importava. Poucos a conheciam,
apenas aqueles que mereciam, aqueles que acreditavam. Ian era um deles.
–
Coma, menino. Deve estar faminto – Cyntinha apontou para o prato.
Ian
apenas assentiu e começou a comer.
Sentada
na mesa ao lado de Hank, a velha Cherokee permaneceu com os olhos pousados
sobre Ian como uma velha parente que há muito tempo não vê um sobrinho, talvez
um neto. Embora fizesse apenas um ano desde a última visita (Hank parava por
ali mais vezes), Ian voltava sempre com uma mala diferente nas costas: às
vezes, com os bolsos cheios de piadinhas, a língua carregada de trocadilhos
sacanas e historietas que faziam os outros dois rirem; às vezes, voltava
daquela forma taciturna, com as mãos nos bolsos e com alguma história não tão
agradável entre os punhos cerrados, garatindo que não pudessem escapar. Porém
em nenhuma das ocasiões natalinas ele aparecera com um presente ridiculamente
embrulhado debaixo dos braços. Essa foi a única coisa que fez Cyntia desviar os
olhos de Ian.
– Que
porra é essa, menino?
– Fome
– ele disse com a boca cheia e os olhos fixos na comida.
– Não,
pirralho. Estou me referindo a essa coisa embrulhada aqui. Que merda é essa?
– É um
presente – ele ergueu o rosto, forçou um sorriso. – É isso o que as pessoas fazem
no Natal, não é? – E pôs um punhado de bacon na boca. – Elas dão presentes –
Então abanou a mão, incentivando-a a abrir. – Dê uma olhada.
Cyntia
abriu o embrulho que sequer estava embrulhado no termo mais apropriado, a
palavra certa seria “enrolado”. Dentro dele, uma pequena árvore de natal de
plástico revelou-se amassada, com alguns galhos caídos, tortos ou quebrados,
mas suficientemente conservada para uma única noite de uso. Enrolado nos pés
dela, um jogo de luzes amarelas como uma espécie de cereja do bolo. Cyntia
arregalou os olhos e gargalhou, tão surpresa com o presente quanto Hank. Ela
enrolou o jogo nos galhos resistentes da árvore e acendeu perto da parede,
sobre a mesa. Ian sorriu, agora menos forçado, matar a fome o deixava com o
ânimo revigorado.
Com as
luzes brilhando e Ian mastigando, a velha índia inclinou-se sobre a mesa e
revezou os olhos entre o garoto e o “velho”.
– E então?
Quem vai começar?
Quando
perguntou isso, o relógio no pulso dela marcava dez horas e trinta e seis
minutos. Cyntia fez questão de mostra-los, batucando o indicador no visor do
relógio como sinal de advertência. Ian não expressou reação alguma, apenas
permaneceu mastigando com os olhos vazios.
Após
meio minuto de silêncio, foi Hank quem levantou a mão.
–
Ótimo, Henry – ela segurou a caneca e Ian fez o mesmo. Ambos as ergueram no ar
em sinal de saudação.
Hank
pigarreou e então começou.
II
A (verdadeira) lenda de Sunnyside-Tahoe
City
Hank
sorveu um pouco de cerveja, obrigando-se a não exprimir uma careta quando o líquido
desceu gelado e amargo pela garganta. Ou era azedo? Não importava. Os dois
perceberam o tamanho do esforço exigido para não reclamar da bebida, e enquanto
Ian ria apenas para continuar caçoando, Cyntia fazia com ar de diversão. De
qualquer modo, o homem obrigou-se a mais um trago e pôs a caneca na mesa, sem
separar a mão de sua alça.
– Esta
é de longe uma das minhas favoritas. Cyntia, após todos estes anos, acho que
você já está preparada para ouvir esta história.
–
Preparada não – corrigiu Ian –, merecedora.
– O
que, Diabos, estão falando?
– Esta
história é sobre Sunnyside-Tahoe City. Quero dizer... é sobre Peter, A Lenda de
Sunnyside.
Cyntia
continuava sem entender nada.
– Quem
é Peter?
– Tio
Peter, irmão mais velho de Andrew e de minha mãe – Ian explicou.
– Na
época, Peter era jovem – Hank prosseguiu com a história –, portanto Andrew e
Rebecca eram ainda mais. Becca e eu éramos adolescentes, e como forma de
castigo para Peter, enviaram a filha mais leal dos Morgenstern para
supervisioná-lo. Acontece que Peter sempre foi o filho menos exemplar da
família, era conhecido em toda Bakersfield e visto com maus olhos.
–
Assim como eu, até hoje – Ian reiterou, com um punhado de bacon gorduroso na
boca.
Hank
assentiu de forma trágica.
– Mas
Peter se redimiu depois de Sunnyside. Na verdade, foi adorado. Ainda mais do
que Becca. E, veja bem, não há quem não goste de Rebecca Morgenstern por aí –
quando mencionava o nome da filha preferida da família Morgenstern, Hank o
fazia de forma apaixonada, sem tentar e sem ao menos querer manter em segredo
quaisquer de seus sentimentos e admirações pela (então) garota. – Os
Morgenstern foram contratados na época para resolverem algum problema de “encanamento” em Sunnyside. O pai e os
tios dos três Morgenstern foram à região antes do serviço, avaliaram os
sintomas, os vestígios e o número de vítimas. Pelo que Rebecca me contou à época,
eram três corpos na região. Sunnyside-Tahoe City faz parte de um condado perto
de Truckee, e isso foi muito antes dessa região ser incorporada pela Califórnia.
O turismo em Sunnyside não funciona durante o inverno, o lugar prospera durante
a primavera e o verão, é cheio de hospedarias e hotéis em função dos lagos –
Após um longo tempo falando, Hank pareceu se lembrar da caneca de cerveja,
bebeu um pouco e continuou: – Estavam todos fechados e reabastecendo as
despensas e se preparando para as próximas temporadas. O problema de
encanamento em Sunnyside começou no início do outono de 78.
–
Espera aí, que merda é um problema de
encanamento? – Cyntia o interrompeu.
– São
problemas que envolvem água – Ian engoliu o ovo. O prato já estaria vazio se
Cyntia não o tivesse preenchido de comida até as bordas. – Sabe? – E gesticulou
a mão que segurava o garfo, ondulando o objeto e espetando a comida como se a
ponta do talher fosse um tubarão, qualquer outra criatura com garras, pontas de
metal ou dentes. – Entende? Problemas que
nadam, esse tipo de coisa...
– O quê?
– Cyntina sorria, confusa. Continuava sem entender porra alguma do que Ian
tentava explicar e acabava piorando.
– O tipo
que fode as pessoas... sabe... no mal sentido – ele sorriu.
– Que
porra é essa, menino?
Hank,
àquela altura, mantinha as mãos no rosto para ignorar tantas asneiras, embora
quisesse rir. Então pigarreou forte e apontou para a comida, sugerindo que Ian
continuasse apenas comendo.
– Nos
referimos como “Problemas de encanamento”
a tudo aquilo que envolve mortes, entidades ou criaturas elementais, mais
especificamente aquelas ligadas à água – Hank ignorou o “garoto”, como se este
fosse um professor inexperiente. – Havia três mortes e várias testemunhas,
incluindo o sheriff do condado. A maioria dizia que viu uma mulher agarrar as
vítimas e levá-las para o fundo do lago, outras testemunhas afirmavam que “uma sombra vinda do fundo” atacava-os e
depois os puxava. Duas pessoas nunca foram encontradas e três apareceram
estraçalhadas e mastigadas nos dias seguinte.
– Era
um animal?
– Não.
Três policiais, inclusive o sheriff, viram uma mulher levando uma das vítimas.
– Você
tá de brincadeira, não tá? – Cyntia ria, incrédula. – Você tá me dizendo que
eram ser...
– Não!
– Ian bradou. Um pedaço de comida voou até o colo de Hank, que imediatamente
gritou um palavrão. – Essa merda não existe.
–
Claro que existe, Ian – Hank espalmou a própria roupa. – A lenda de Sunnyside é
sobre Peter, o matador de sereias. Esqueceu?
Ian
mostrou o dedo do meio.
–
Esperem, você não deveria contar uma história sobre Rebecca ao invés de
desenhos infantis ou o irmão mais velho dela? – Cyntia interviu.
– A
história é sobre Becky, Cyntia – Hank respirou fundo, pediu calmamente um tempo
para Ian, apontando novamente para a comida dele e, dessa vez, para o espanto
dos outros dois, Hank virou um trago maior. Prosseguiu: – Peter nunca quis
fazer o que a família faz, Peter nunca possuiu responsabilidade alguma nem
mesmo para as coisas mais imbecis. Mas o nome da família estava em jogo ali, e
ele não possuía autonomia alguma para lutar contra a tradição dos Morgenstern.
Sunnyside-Tahoe City foi um teste final, Deus sabe o que aqueles loucos fariam
com Peter caso ele se voltasse contra a própria família e todas as outras de
Bakersfield. Então após quase um inverno inteiro tentando capturar a criatura,
Peter conseguiu. Ele matou a sereia de Sunnyside. Tornou-se uma lenda, como
Sinbad ou os antigos heróis gregos. Nunca antes homem algum do qual se tenha
conhecimento capturou uma sereia e mostrou o corpo a todos os outros.
–
Peter fez isso? – Cyntia por um momento esqueceu a introdução da história e
perdeu-se pelo impacto ante o feito de Peter Morgenstern.
Tanto
Hank quanto Ian riram como alguém que compartilha um segredo sacana.
– Peter
passou dois meses inteiros nas camas das velhas donas dos hotéis de Sunnyside e
com as estudantes de Truckee. Peter não fez porra alguma senão trepar com todos
os rabos de saia que via por lá – Outro gole de cerveja. Aquele desceu com mais
facilidade, embora a caneca nem estivesse na metade. – Fui eu que busquei os
dois irmãos e levei o corpo numa caminhonete até Bakersfield. Rebecca me contou
toda a história no caminho e me fez jurar nunca dizer a verdade aos outros
caçadores. Foi ela quem localizou, perseguiu e capturou a sereia com as
próprias mãos.
Cyntia
soltou uma gargalhada, perplexa.
–
Becca matou uma serei...
– Claro
que não – Ian interrompeu novamente. O prato já estava vazio. – Sereias não
existem, Cyntia.
–
Mas...
– Há
alguns anos, fui a uma cidadezinha com um velho amigo meu, um inglêzinho
desgraçado de sotaque elegante. Um velho conhecido de família me enviou uma
carta pedindo ajuda. Quando chegamos lá, o desgraçado havia desaparecido.
Depois de algumas semanas, descobrimos um... cardume de peixes carnívoros. Eles estavam capturando vítimas para
um ritual de acasalamento... foi uma tremenda sacanagem. No fim, não passavam
de peixes místicos, amaldiçoados por algum deus babilônico, um tal de Dagon.
Eram peixes fêmeas que soltavam feromônios através de um muco na água. O cheiro
era nauseante e extremamente alucinógeno para... para... sabe, criaturas do
sexo... masculino...
–
Homens – Cyntia concluiu, curta e grossa.
– Pois
é – Ian deu de ombros. Enfiou o dedo indicador no prato, rodou e lambeu a
gordura do bacon. – Algumas dessas criaturas foram trazidas por um colecionador
de animais no mercado negro. Já outros, como desse cardume inteiro, pararam naquela
cidadezinha pesqueira. Os Crawford de New Jersey se envolveram no caso. Will
Crawford pediu minha ajuda... através de uma carta, dá pra acreditar? – Ian
acendeu um cigarro e bebeu sua cerveja. – Esses animais confundiam as vítimas,
acasalavam com eles e os levavam para o fundo. O ritual tinha como objetivo
despertar esse antigo deus babilônico e trazê-lo de volta.
– Seu
amigo inglês e você deram um jeito no cardume de sereias? – Cyntia cuspiu com deboche.
– Mais
ou menos – e deu de ombros. – No fim, não são sereias.
– Não,
não são, apenas peixes – Hank concordou. – Levamos o corpo para Bakersfield,
todos constataram e louvaram o garoto pelo feito. Tornou-se A Lenda de Sunnyside-Tahoe City. A palavra de Rebecca deu
veracidade ao fato. Peter virou uma lenda e saía sempre com Becky. Ela resolvia
os problemas, chutava todos os rabos e acabava com tudo – de bêbados
brutamontes e espíritos perseguidores até objetos de família amaldiçoados. Às
vezes, Peter levava todo o crédito. Ele ficava nos bordéis enquanto Rebecca
sujava as mãos; em outras vezes, eu mesmo os acompanhava e trabalhava com ela.
– Que
filho da puta aproveitador...
– Não,
não – Hank balançou a cabeça, assim como Ian. Estavam, ambos, rindo. – Peter é
uma ótima pessoa, a ovelha negra adorável da família. Andrew Morgenstern? Esse
sim é um filho da puta sem coração.
– Um
cuzão – Ian concordou novamente.
–
Peter é um bom homem, apesar da canalhice. Enquanto esteve viva, Rebecca e ele
amavam um ao outro. Ele a aconselhava e ela o acobertava. Ela o transformou em
uma lenda.
Cyntia
bebeu da própria cerveja enquanto refletia, pensar na verdadeira responsável
pela fama de Peter era, para ela, imensamente divertido. Assim a imagem de
Rebecca tornava-se ainda mais clara e condizente com aquela moça que Cyntia
conheceu, com aquela moça que salvara ela e a pequena Tala, quando essa ainda
era uma criança.
– Onde
esse Peter está agora?
–
Caçando demônios carnais no oriente... O que significa “dormir, beber, coçar o saco e trepar em algum litoral da Tailândia”.
– Hank consertou.
– E
Rebecca? Ela realmente matou aquele peixe? Quer dizer, aquela “sereia”?
– Mas
é claro – Ian inclinou a cabeça para trás, deitando-a no encosto da cadeira e
fechando os olhos.
–
Como?
Novamente,
os dois riram.
– Ela
usou o próprio irmão como isca. O peixe o puxou até o fundo e...
–
E...?
–
Rebecca mergulhou e o acertou com um arpão.
–
Uau... – Cyntia estava, definitivamente, boquiaberta.
– É,
pois é. Uau – Hank finalizou.
III
O verão de 1995
Cyntia
levou consigo as três canecas (Henry finalmente conseguiu esvaziar a sua) para
trás do balcão. Encheu novamente as três na torneira de cerveja e com a
habitual habilidade de equilibrista trouxe de volta o combustível tão adorado
por ela e por Ian. Henry tentou sorrir com menos incômodo, mas algo no olhar do
velho homem sugeria um já esperado abalo no nível de sobriedade. Duas canecas
até então, aquela seria a terceira.
Ao
contrário de Ian, o bom Henry visitava o Paradise mais vezes durante o ano,
sempre que estava perto ou voltava para casa, em Bakersfield, o homem dava um
pulinho até ali, tomava um copo d’água e pedia qualquer refeição na tentativa
de se camuflar em meio aos beberrões e narrava suas aventuras por aí. Apesar de
fazer profunda questão de não deixar a máscara cair, Cyntia adorava conversar
com homens que procuravam se manter sóbrios, pois como proprietária de um bar
ao nível do Paradise, ela só conversava com três tipos de homens: os bêbados,
os que desejavam se embriagar e os irritantemente calados. Você nunca descobria
de que tipo de perrengue haviam escapado os do terceiro tipo (eram fugitivos,
foragidos da polícia? Eram assassinos desnorteados por massacrarem os vizinhos,
os filhos, as esposas ou os maridos? Eram sujeitos com cordas no pescoço ou
sujeitos a caminho da Bixby Creek com
o azul do oceano como última visão de vida?). Cyntia não sabia e isso a
irritava. Irritava ter pouca ou quase nenhuma leitura daqueles que pisavam em
sua lama lá fora e sujavam o chão do seu Paradise.
Não à toa odiava quando Ian passava por aquela porta com as mãos nos bolsos e
uma porção de segredos, terrores ou consternações presas nas mãos; não à toa
odiava o silêncio que emanava dele e que combinava tão pouco com o silêncio ao
qual o Paradise mergulhava nas vésperas de natal de todos os anos desde que os
três começaram com aquelas reuniões.
Ela
mirou a árvore: o brilho do jogo de luz amarelado contrastando com a iluminação
vermelha do bar, a árvore tão singela, quebrada, raquítica, mas ainda ali,
representando qualquer coisa que Ian desejava que significasse. Para Cyntia,
havia um sentido, mas e para aqueles dois homens? O velho homem e o outrora menino?
Ian
voltou do banheiro com as mãos limpas. Esparramou-se no assento e não disse
coisa alguma por algum tempo, nem mesmo fez. Manteve os olhos prateados imersos
na caneca de cerveja.
–
Muito bem, e agora? – Ele perguntou após voltar dos devaneios. Esfregou as mãos
e exibiu um sorriso cínico e sonso que nada tinha de sorriso.
Ian
sabia. Conforme a tradição daquelas reuniões demandava, ele sabia a ordem, mas
novamente (como em todos os anos) perguntou como se tão pouco ou de nada
soubesse.
– É a
sua vez, menino – Cyntia balbuciou, enviando a ele um sorriso encorajador. – É
a sua vez.
Ao
lado dela, Henry assentiu da mesma maneira cuidadosa, cordial e encorajadora.
– Ok –
disse num suspiro, então acendeu um cigarro. Tragou fundo. Por dez segundos,
quase doze, a fumaça dentro da garganta. Depois ela escapou entre lábios e
pelas narinas ainda enquanto ele começou a falar: – Eu não posso fingir que
essa merda não existe, nem posso fingir que me obrigo a decidir qual história
contar um ou dois meses antes do natal. Ora, merda. Sem essa. Eu começo a
pensar na próxima história no exato momento em que saio por aquela porta,
Cyntia. Penso na porra da história sobre Becca assim que termino de contar a
anterior, quando te abraço ou te prometo que virei aqui antes do próximo natal
e nunca cumpro. Mas, querem saber de uma coisa? – Mais um trago, um dos longos,
e em seguida a fumaça serpenteando a árvore de natal. – Existe uma história que
ninguém ainda ouviu, um lado de uma história antiga e muito bem conhecida que
ninguém nunca ouviu falar. Eu sempre desejei contá-la a vocês, e, bem... – Deu
um peteleco sobre o cinzeiro. – É sobre o verão de 95.
–
Ian...
– Ian,
você não precisa fazer isso – Henry foi mais rápido, percebeu Cyntia. Como se
já estivesse preparada para a possibilidade.
–
Relaxa, Hank. Tá tudo bem. Você não escutou? É sobre a história que ninguém
nunca ouviu ou considerou sobre aquele verão – Um longo trago de cerveja, um
longo trago no cigarro.
– Tem
certeza, menino? – Cyntia estava tão desesperada quando Henry.
Ian
balançou a cabeça, positivamente.
–
Existe aquela história que termina de
maneira trágica. Existem todas as coisas que a rodeiam: boatos, mentiras,
invenções, mais boatos e mais invenções. No meio de tudo isso, existem as
poucas pessoas que sabem o que realmente aconteceu – por um segundo, o cinza
dos olhos de Ian vacilou em direção a Henry e depois voltou na direção da
caneca. – Mas o que ninguém sabe é a outra parte da história contida nessa
primeira história trágica: o verão de 95 – Ian intercalava poucas frases com
tragos de cigarro ou petelecos no cinzeiro. – Mamãe vivia quase sempre fora de
casa, se é que eu poderia chamar aquilo de casa. Os únicos que se salvavam por
ali eram Hank e os Barnes. Eu estava quase sempre na casa de Annabelle junto
com os pais dela. E então mamãe voltava e haviam as brigas: ela sempre sabia o
que acontecia comigo e saía de casa com uma... com uma .12 nas mãos pra apontar
na cara de quem quer que tivesse mexido comigo – nesse momento, Ian começou a
rir. Henry também fez o mesmo, dizendo “é
verdade”. – Eu nunca fui uma criança muito esperta, Cyntia. Eu usava óculos
imensos, era quase cego naquela época e os adultos e os moleques da vizinhança
vivam escondendo aquela merda de mim. Eles viviam pra me foder. Mamãe nunca me
repreendeu por não reagir. Quando voltava das viagens, ela chutava o rabo de
todo mundo ou simplesmente soltava os cachorros dos vizinhos. Ela soltava os
bichos das correntes e dizia pra mim e pra Ann: “fiquem dentro de casa, eu vou
fazer todo mundo correr agora”. Então os cachorros atacavam todo mundo, fossem
adultos, fossem crianças, fossem mulheres, velhos ou os cuzões do partido
conservador. Aquilo era um caos, ficavam desesperados, corriam por todo o
bairro, irritados porque certamente a polícia apareceria. Quer dizer, os chefes
de polícia sabiam quem éramos e o que fazíamos, então as ordens eram de não
aparecerem por ali, nem de nos encherem o saco. Mas qualquer coisa que chamasse
atenção já incomodava. Minha mãe era... Sabe, ela fodia com todo mundo que não
a respeitasse ou não respeitasse qualquer coisa que ela dissesse. “Não mexam com o Ian” era uma delas.
Ele
amassou o cigarro no cinzeiro, molhou os lábios e acendeu outro.
– Ela
sempre me dizia que um dia voltaria para casa e ficaria de vez, que então não
precisaria mais sair para as viagens. Eu achava que ela vivia trabalhando,
impedindo que alguma coisa acontecesse com as outras pessoas, mas depois de
muitos anos, percebi que era mais que isso. Era ainda mais nobre. Enfim – e
sorriu com descrença. Descrença por todas as surpresas que uma morta ainda era
capaz de reservar. – Um dia, já era tarde da noite, ela entrou pela porta de
casa e me acordou, ela me balançou na cama e disse “Ian, querido, venha
comigo”. Eu vesti o que pude e a acompanhei. Eu já era mais velho e já sabia
usar uma arma e enxergava melhor, nem precisava mais da merda daqueles óculos.
Então fomos até uma lanchonete e ela me encheu de sorvete e cheeseburguers. Ela
me perguntou se eu queria fazer uma viagem, tinha um sorriso desgraçado na
porra daquele rosto, meu Deus, aquele sorriso... – E então se calou, perdido
numa risada que fazia escapar a fumaça do cigarro pela boca. Mais dois goles de
cerveja e a caneca ficaria seca. Cyntia ofereceu-se a buscar outra, mas ele
negou a gentileza, tomou um longo trago e puxou a caneca de Henry, que apenas
sorriu com a atitude. – Se eu não fosse seu filho (não que de fato eu seja),
certamente ficaria louco por aquela mulher. Entendo porque o Hank aqui nunca a
esqueceu. E aí comemos e rimos pela madrugada inteira. O verão ainda não havia
começado, mas as madrugadas não estavam tão frias. Andamos pelo parque e conversamos
sobre... Sobre a filha dos Castle. Fiquei surpreso com o fato de nunca ter sido
surpresa para ela o quanto eu tinha uma queda por Gloria.
–
Sempre foi óbvio – Henry sinalizou com o indicador.
– Vai
se foder, Hank – então começaram a rir. Ian não encarou nenhum dos amigos
enquanto contava a história. Esteve sempre focado tão somente na cerveja. –
Quando o dia amanheceu e voltamos pra casa, arrumamos nossas coisas e entramos
no carro. Ela desceu a rua, passou por três quarteirões e estacionou na frente
da casa de Hank. Ela bateu na porta e vocês conversaram por cinco minutos.
–
Isso.
– Eu
não sei o que conversaram, mas você riu durante todo o tempo, Hank. Mamãe tinha
essa capacidade: ou te fazia rir ou te fazia cagar na cueca – Henry ria com
cada frase de Ian, sempre tão nostálgico quanto o outro. – Então vocês se
beijaram. Você a abraçou, beijou-a de novo e se despediram. Você acenou pra
mim, Hank. E aí dirigimos por mais de 800 quilômetros até o norte do Arizona,
onde ficamos em uma cabana no meio da floresta, dá pra acreditar? – Ele mordeu
o lábio, rindo suavemente. – Foi lá onde Becca me ensinou a caçar. Foi lá onde
ela me ensinou o que era preciso para ser um bom caçador, um bom perseguidor das coisas que você quer.
Após o
silêncio que Ian fez enquanto bebia da caneca de Hank, Cyntia perguntou:
– O
quê, Ian?
– Você
só terá o que quer quando souber esperar. – Um peteleco. Um trago. – Sabem o
porquê mamãe amava tanto tio Peter?
– Não –
respondeu a velha Cherokee.
–
Porque ele nunca derramou uma única gota de sangue. Ele sempre se negou à
herança da família. Por isso ela detestava pensar na ideia de me ver seguindo
seus passos e por isso relutou por tanto tempo desde que me encontrou naquela estrada quando eu era criança em
me ensinar qualquer ensinamento mais aprofundado sobre... sobre... Isso – Ian girou os dedos indicador e
médio, que seguravam o cigarro, num movimento referindo-se a tudo que os
cercava no mundo. – E por isso ela ficou feliz quando respondi à pergunta que
me fez assim que chegamos na cabana.
– O
que ela perguntou? – Henry mudou a posição ao lado de Cyntia. Apesar de não
reagir com muitos movimentos, o homem estava tão interessado na narrativa
quanto Cyntia.
– Olha, querido, eu tenho que fazer essa
pergunta e ela é muito importante. Quero que me diga, com sinceridade, o que
você prefere – quando Ian respondeu, todos sabiam que não era ele quem
estava falando, eram os ecos que reverberavam das lembranças de Rebecca. – Quer fazer isso com ou sem sangue? –
Novamente ele riu, agora falando sem ecos: – É claro que eu escolheria com
sangue, mas não naquela época, o que provavelmente a deixou aliviada. Como
recompensa ela me prometeu que não fumaria enquanto estivéssemos lá, e cumpriu.
– Tá
de sacanagem, garoto? – Inquiriu um Hank perplexo e descrente.
– Ela
não fumou. Um dia sequer.
Henry
puxou a caneca de volta e virou um trago. Todos riram.
–
Então pelo verão inteiro caminhamos pela floresta e ela me mostrou como ela
funcionava, principalmente à noite. Mostrou-me a natureza do silêncio, aquele
que traz a paz e aquele que antecipa a tragédia. Mostrou-me animais que sabiam
que estavam seguros e sozinhos e outros que ocultavam qualquer ruído de seus
corpos enquanto espreitavam suas vítimas. Todo um verão com Becca, a verdadeira
Becca, não a lenda desconhecida de Sunnyside, tampouco a filha mais fiel da
família Morgenstern.
Quando
terminou, ele trouxe de volta a caneca de Henry e virou num shot longo e
único. Limpou a boca com as costas da mão, amassou o resto do cigarro no
cinzeiro e acendeu outro.
Isso ainda vai te matar, garota, era o
que todos (ou os mais corajosos) diziam para a mãe de Ian.
Se continuar fumando assim, Rebecca, vai
acabar com um câncer, diziam os mais velhos.
Isso ainda vai te matar, pirralha, e
tomara, ela ouvia sempre de Andrew.
No
fim, estavam todos errados.
E
todos souberam disso da pior maneira. Todos sabiam, mas ali, naquela mesa,
ninguém disse, em absoluto, nada a respeito do pensamento. Pegaram-no e o jogaram
fora, deixaram-no passar direto porque estavam presos demais à história e às
imagens de Rebecca, naquela época, tão sorridente e com os cabelos tão longos e
louros quanto os de Janis Joplin. “Janis”
era como alguns a chamavam, especialmente a família Castle de Nova
Orleans.
Mas
Ian tinha um apelido especial para ela. Um que somente ele tinha direito de
chamá-la, muito embora não tivesse o sangue dos Morgenstern correndo nas veias.
Ele
tragou um cigarro e finalmente levantou os olhos, afastando-os da caneca.
Encarou um Hank com ombros tensos e respiração estranha, porém não o culpava,
jamais poderia. Ele apenas retribuiu o mesmo sorriso do início, aquele
encorajador e depois encarou uma Cyntia com olhos marejados (não que os de Hank
também não estivessem, só estavam menos, desgraçado
mentiroso).
Ian
levantou e levou consigo as canecas vazias. O cigarro na boca. Encheu-as na
torneira e trouxe as três nas mãos – colocou uma na frente de Cyntia e as
outras duas diante de si. Piscou para Hank.
– Você
passou da conta, Hank. Conseguiu até mesmo não chorar.
Henry
não protestou.
Os
dois permaneceram em silêncio por quase cinco minutos enquanto Cyntia mantinha
a caneca intocada e o rosto abaixado, ninguém a encarou, entretanto souberam e
até cogitavam ouvir as lágrimas caindo sobre as coxas. Apesar disso, Henry
envolveu-a em um abraço por todo o tempo, enquanto Ian levou aqueles curtos
minutos para consumir o cigarro recém-aceso. Pôs outro na boca e virou para
trás, lembrando de conferir se o estoque de nicotina de Cyntia, na prateleira
espelhada, estaria cheio.
– E aí,
de quem é a vez agora? – Ele brincou com um dos galhos quebrados da árvore, olhou
para a Cherokee, que agora estava recuperada, e então sorriu.
IV
A maldição Cherokee
– É
sempre a mesma história em todos estes anos e vocês sempre vêm com outras novas
e melhores – Cyntia protestou com a voz cabisbaixa.
– É
quase sempre a mesma reclamação em todos estes anos – frisou Hank.
– Nós
viemos aqui, ano após ano, para ouvir exatamente
a mesma história, Cyntia. Enquanto você nos fecha no Paradise para escutar
novas. Vá em frente, só nos conte a melhor delas.
Ela
suspirou e começou:
– Meu avô
costumava nos contar que nossos ancestrais mais recentes nasceram nos arredores
de Asheville, muito antes de que a tempestade branca varresse nossas terras e desse nomes a elas. Asheville então
não era chamada desta forma. Além de todas essas histórias que eu ouvia quando o
visitava na reserva onde nasceu, muitas outras eram contadas a respeito de
nossos ancestrais mais antigos, os primeiros de nosso povo a andarem sobre aquela terra criada pelo grande Criador, Ouga –
o pronome “aquela” foi pronunciado
com um peso sutil, mas de profundo pesar e lamento, entrecortado por uma
perceptível pausa para designar a dor de estar tão distante de um antigo e já
inalcançável lar de onde viera todo um povo. – Alguns dizem que após fazer o
dia e a noite, luz e trevas, Ouga tratou tão imediatamente de erguer o Great
Smoky e toda a vida que conhecemos hoje.
O
Greaty Smoky Montains era uma área com mais de duzentos hectares de florestas,
vida selvagem e picos de até dois mil metros de altura, envoltos por neblinas
que fundem-se às cores dos céus e das estrelas; também localizado na área que
cobre as fronteiras dos estados do Tennessee e da Carolina do Norte, berço do
povo nativo norte-americano, chamado de Cherokees, o Great Smoky era um dos parques nacionais mais visitados do país.
–
Então houve um tempo de escassez e fome, pois a terra não dava ao nosso povo
nenhum fruto, nenhum cultivo. Nossos ancestrais ajoelharam diante de Ouga e
pediram a ele que não trouxesse mais a noite, pois precisaríamos da luz do dia
para fortalecer as plantas e fazer com que as chuvas caíssem finalmente dos
céus. O Criador então ouviu suas preces e fez com que houvesse apenas o sol
acima deles em um dia que nunca terminaria e nunca pararia de iluminá-los.
Então as árvores cresceram e deram frutos, a terra nos concedeu alimentos e a
chuva caiu novamente, mas com o passar do tempo, ela ficou cada vez mais
quente, os rios secaram, os animais morreram e o povo ficou fraco, tão logo
sofrendo o mesmo destino que os animais. Desesperadas, as pessoas mais uma vez
pediram a Ouga que desfizesse o seu feito e trouxesse a eles apenas a noite
para que o calor não devorasse seus filhos e que as sombras esfriassem a terra.
Cyntia
bebericou sua cerveja, o suficiente para que os lábios ficassem molhados. Hank
conservava uma expressão de concentração, os braços cruzados sobre a mesa e um
sorrisinho no canto dos lábios pela satisfação de escutar as palavras da velha
Cherokee novamente. E Ian amassou o que sobrara do cigarro. No cinzeiro, oito
ou dez sobras de filtro amarelo jaziam espremidas entre as cinzas.
–
Comovido pelas súplicas dos homens, Ouga mais uma vez atendeu ao pedido,
jogando sobre a terra a escuridão das noites e o pincelado brilho das estrelas.
O calor que antes matou tantos de nós então esfriou e nos acolheu, impediu que
todos morressem, inclusive as próprias florestas e os poucos animais. A noite
restaurou, por um momento, o equilíbrio roubado pelo intenso calor, no entanto,
com toda a noite, vem o medo. E com todas as trevas, vieram o frio e em seguida
a morte. Da maneira como esquentou, a terra também esfriou e os poucos de nosso
povo que antes sobreviveram, pereceram para a escuridão que os abateu. Antes
que os últimos homens e as últimas mulheres desaparecessem, eles clamaram por
mais uma intervenção de Ouga, admitindo que o equilíbrio natural arquitetado
por ele era o ideal para a vida, e que portanto estavam errados.
– Que
povo mais indeciso este seu, Cyntia – Ian murmurou em meio a outro cigarro.
– Ancestrais – advertiu, com uma risada
que já esperava pela velha piadinha.
– Ok.
Ancestrais.
–
Reestabelecendo a dualidade primordial da vida, como luz e trevas, vida e
morte, calor e frio, O Criador sentiu-se compadecido pelo sofrimento de suas
criaturas e devolveu aos nossos ancestrais o funcionamento orgânico e original
da terra – ela bebeu um gole maior, impediu que um arroto escapasse e levantou
o dedo, sinalizando o detalhe mais importante da história e aquele para a sua própria: – Tocado pelo sofrimento de tantos
entes queridos, Ouga carregou consigo todas as almas que sucumbiram no calor e no
frio e os colocou dentro de uma imensa árvore, A Primeira Grande Árvore, o
primeiro Cedro, para sinalizar que ali residiam e residem todos os ancestrais
de meu povo. Então chegamos ao pai de meu avô, que de alguma forma, levou-me
até Rebecca.
“Ele nasceu
em um mundo que pertencia em partes ao nosso povo, em grande parte aos
descendentes dos colonos, chamávamos isso de A Tempestade Branca quando as invasões ainda eram recentes. Awan, o
pai de meu avô, foi separado da família e obrigado a trabalhar nas lavouras,
tirado por muitos anos de sua terra natal, e cresceu curvando-se aos brancos,
renegando a própria linhagem e temendo o poder que seus carcereiros tinham
sobre ele. Desde criança, meu avô contava, o pai dele aprendeu a ajoelhar-se
perante o Deus dos homens brancos, aprendeu a reconhecer a Cruz e a temê-la.
Ele também conheceu vários outros deuses, deuses que foram homens enquanto
estiveram na Terra, mas que fizeram milagres e fizeram a travessia para
tornarem-se deuses. Ele aprendeu os seus nomes, carregou os seus nomes e
venerou cada um deles. Após muitos anos longe, voltou para a sua terra natal,
embora não mais a reconhecesse como tal. Ele trabalhou em prol dos homens
brancos, em prol da religião deles, dos deuses deles. Lutou contra o seu
próprio povo e fez as mesmas piadas que faziam para rir de seu próprio povo,
ele as repetia e não as sentia, nunca julgou-se, apesar de tanto se parecer com
um de nós – Cyntia deslizou a palma da mão sobre seu rosto, tocando a pele com
a ponta dos dedos até o meio do peito. – Pelo interesse dos homens brancos,
tomou para si as mesmas causas: tentou tomar de nós a terra que nos pertencia,
que sempre nos pertenceu, a terra que também pertencia a ele. E foi lá, em
nossa terra natal, nos arredores do Great Smoky, que ele conheceu Takayla, sua
esposa. Ele se apaixonou por ela, mas seu coração ainda pertencia aos brancos,
e graças a essa paixão doentia, traiu seu povo e amaldiçoou nossa família. A minha família”.
“Para
saciar a fome dos homens brancos, Awan os ajudou a invadirem um dos vilarejos
que ainda não era considerado reserva indígena. Expulsaram os últimos
descendentes e com ajuda das autoridades locais
mataram homens, velhos, estupraram mulheres e fizeram com as crianças o mesmo
que fizeram com Awan na idade dele. Quando se deu conta de toda aquela
barbaridade, o traidor obrigou Takayla a partir ao seu lado. Awan traiu seu
povo e não teve coragem de assistir ao que fez e deu as costas ao sofrimento de
seus iguais. Uma lua após o massacre, enquanto seu povo sofria em meio à Trilha das Lágrimas, Awan teve um sonho:
nele, O Criador, Ouga, lamentava pela traição e revelava um vale inteiro de
Cedros derrubados pelos homens que ele ajudou. Junto com cada um destes Cedros,
um milhar de almas em agonia: crianças, homens, mulheres e velhos, todos
gritavam o nome de Awan. Ao final do sonho, o grande Ouga amaldiçoava o sangue
de Awan, ao dizer que, do mesmo modo que uma árvore doente, seus frutos não
cresceriam e suas raízes jamais se alongariam em solo fértil”.
“Takayla
já estava grávida, mas perdeu o bebê durante o parto. Outros dois bebês
morreram. O quarto foi meu avô, e por fim sua irmã, ambos nasceram saudáveis. Mas
a menina viveu talvez mais que os dez anos de idade: uma doença enfraqueceu
seus ossos que se quebravam com facilidade. Meu avô viveu até tenra idade, mas no
fim também foi atingido por uma doença que atingiu os músculos das pernas e de
um braço. Dois de seus seis filhos morreram no nascimento, uma quando jovem e
outro já velho – era meu pai. Apenas uma delas ainda está viva, porém deformada
como meu avô. A história de Awan é passada de geração a geração, no início com
temor, mas de meu pai até nós, como uma lei”.
“Quando
engravidei, a maldição de minha família não fugia de mim: eu sempre pensava
nela, porém Tala nasceu saudável. Desde a geração de meu pai, não morávamos
mais na Carolina do Norte e com o tempo até eu me afastei dos hábitos de minha
família. Quando soube da morte de meu pai e herdei o Paradise, as coisas
mudaram. Tala tinha três anos de idade quando os primeiros sintomas surgiram: primeiro,
várias debilidades nas mãos e nos pés, em seguida os mesmos de meu pai, os
músculos das coxas pararam de funcionar gradativamente, atrofiaram em poucos
meses, e por fim o coração, a bexiga e os músculos da face. Os médicos deram
uma centena de nomes para a doença... ou para as doenças... sempre surgiam
novos nomes, porém nunca uma solução, nunca um diagnóstico claro”.
“Desesperada
e desacreditada da medicina dos homens e suas explicações lógicas que davam à
minha filha apenas contagens regressivas, dei ouvidos às histórias que havia
esquecido e voltei para a terra de meus ancestrais. Foi lá que soube o quanto a
maldição de Ouga era real. No entanto, os descendentes do meu povo, do meu próprio povo, não quiseram
participar do ritual. Eles consideravam a mim, a meu pai, aos meus tios e ao meu
avô como traidores, pois tínhamos sangue de traidor”.
“Uma
velha Cherokee veio a mim e disse que não poderia ajudar, já que Ouga deveria
ser tão temido quanto respeitado. Por outro lado, ela me disse aonde buscar
ajuda, e foi como cheguei a Bakersfield e conheci a família Morgenstern. Foi
como conheci sua mãe, menino”.
Ian
esmagou o que sobrara de mais um cigarro. Na carteira, haviam apenas três
sobreviventes, mas ele hesitou e por fim decidiu que não acenderia. Não ainda. Também
havia naquele rosto uma expressão de tão leve satisfação, satisfação singela e verdadeira, porém frágil, que se por acaso
alguém piscasse os olhos, seria bem capaz de perdê-la e sequer presenciá-la.
E
perguntou:
– O que
ela fez?
– Ela
se propôs a fazer o ritual e não cobrou nada por ele.
Hank
não perdeu a oportunidade:
– Vê
se aprende, Ian.
– Ela não cobrou – Cyntia elevou o tom de
voz, exigindo atenção. – Ela fez o ritual nos fundos do hospital em que Tala
esteve internada. Ele exigia a minha presença, por isso sua mãe ouviu tanto
quanto eu quando a voz de Ouga soou em nossos ouvidos. Ele não estava lá, mas ao mesmo tempo estava: falando conosco,
chamando-me de sangue de Awan. Rebecca prosseguiu com os passos
necessários, todos os elementos que exigiam do ritual estavam ali: as palavras,
a velha língua Cherokee, o sangue do traidor e um ancestral vivo da vítima... eu. A princípio, sua mãe pediu clemência
e minha absolvição ao Criador, disse que minha filha e eu não tínhamos nenhuma
ligação com Awan, exceto o sangue, e que os pecados de Awan pertenciam somente
ao próprio Awan, mas Ele não a escutou, ele a ignorou, ignorou-a porque não
possuía nosso sangue, ignorou-a porque era uma mulher branca como os homens que
arrancaram nossos ancestrais da terra, apesar de obedecê-la graças somente às
amarras ritualísticas que ligavam um ao outro. Então... – a velha Cherokee
tomou o último trago da cerveja que esvaziou de vez sua caneca. Balançou-a pela
alça, entre os dedos. – Então eu disse ao grande Deus Criador, a Ouga, que
Rebecca possuía sangue branco, porém não possuía sangue de meus ancestrais, e
que embora eu tivesse em mim o sangue de Awan, este sangue – ela indicou o próprio pulso – ele ainda pertencia à nossa terra, ainda pertencia a mim, ao
meu pai, ao meu avô e aos meus bisavós, que pertencia tanto a Awan quanto a
Takayla, tanto aos pais deles quanto aos pais antes deles. Eu falei que meu
sangue pertencia a Ouga, pois eu também era uma de suas filhas.
“Você
já arrancou alguma coisa de um Deus, menino? E você, Henry? Vocês já obtiveram
qualquer coisa do deus de vocês, por menor que seja? Pois eu sim: eu recebi d'O
Grande Ouga cinco segundos de silêncio, seguidos por outros cinco de hesitação.
A voz dele soou em meus ouvidos novamente e sussurrou-me que pouparia a vida de
Tala pela minha e que ali acabaria a maldição de Awan. E eu estive a um passo
de aceitar. Ao contrário do Grande Criador, eu não hesitei, porém Rebecca foi
mais rápida e fez a proposta final”.
– “Dê
aos meus filhos a maldição de Awan e de meus ancestrais brancos”, foi o que sua
mãe disse, menino. “Dê aos meus filhos o que a mim pertence por direito, deixe
Cyntia e Tala em paz. Encerre a maldição”. Então eu juro pela minha vida que
Ouga olhou para ela, apesar de não enxergarmos nada, nunca enxergamos nada além de ouvirmos aquela voz que não existia em
lugar algum a não ser em nossas cabeças. Ele olhou, Ian. Eu juro que olhou para
sua mãe e então disse: “eu aceito”.
– Mas
houve uma condição – Hank deixou escapar devagar.
–
Sempre há... – Dessa vez, Cyntia disse isso com felicidade e com lágrimas
escorrendo pelas maçãs do rosto. – Ouga precisava de um galho de Cedro, foi o
que ele me disse. Que aos filhos legítimos
da mulher branca daria a maldição, mas que de mim levaria apenas um dos galhos
– ela indicou o lado esquerdo da perna em que mancava com orgulho. – E eu
aceitei de bom grado. Rebecca sabia que não obteríamos mais do que aquilo, e
foi o que tivemos. A palavra de um deus nunca muda, e ao fim do ritual,
enquanto o coração de Tala batia com a força novamente e as doenças
neurológicas desapareciam, eu perdi o equilíbrio e desabei no chão. Rebecca me
levou à emergência e no dia seguinte minha filha abria os olhos. Em uma semana,
ela já mexia os pés e os bracinhos, e na mesma semana eu perdia uma perna.
Fiquei no hospital durante um mês, comemorei o natal em cima de uma cama com
minha filha ao lado, viva e saudável. Sua
mãe nunca saiu de nosso lado, menino. Nunca.
A
carteira de cigarros passou de uma mão para a outra, mas Ian os reservava para
minutos à frente enquanto não desviou a atenção de Cyntia. Por fim, ela disse:
–
Naquele natal, Rebecca não parou de falar sobre você, menino. Eu a chamei de
louca e estive a um passo de morrer quando soube que ela tinha um filho, mas...
– Mas ela
era mais esperta – Ian riu, vitorioso. – Apenas os descendentes diretos de
Rebecca sofreriam com a maldição.
– E
ela nunca pôde ter um – Hank deitou a cabeça para trás numa longa gargalhada,
finalmente (e novamente, como nos natais anteriores) vendo graça em uma piada
que pareceu atormentá-lo por muitos anos antes de escutar aquela história
indígena.
Ian
acompanhou a gargalhada de Hank e logo Cyntia também o fez. Se a velha Cherokee
enxergava o pedaço de prótese que possuía no lugar da perna com tanto orgulho e
como marcas inegáveis de sobrevivência dela e da filha, então o velho Hank
também o faria.
Assim
como Ian.
V
Five hundred miles
Ele levantou
para beijar a proprietária do Paradise na cabeça e apertar o ombro do amigo,
que na mesma proporção em que Rebecca esteve como mãe, sempre esteve por ali
como um pai. Recolheu as canecas e outra vez foi à torneira, entretanto não
trouxe consigo nem duas nem três, e sim quatro delas cheias de cerveja. Ofereceu
uma a Cyntia, uma a Hank, uma à posição onde esteve sentado e pôs outra diante
da árvore de natal, que como todos ali, com galhos quebrados e cheios de
marcas, ainda ousava piscar uma vez mais. Ano após ano.
O
filho de Rebecca não se sentou, ao invés disso foi até a jukebox e retirou o
que quer que houvesse de trocados nos bolsos. Não teve dúvida alguma sobre qual
música escolher, pois assim que pôs as moedas e respirou relaxado, a voz de Mary tomou conta do Paradise, seguida
pelas vozes de Peter e de Paul.
If you miss the train I'm on, you will know that I am
gone,
You
can hear the whistle blow a hundred miles...
– Vocês sabem qual a
distância de Bakersfield até aquela cabana no Arizona? – Ian os questionou, ainda absorto diante da jukebox.
Ambos negaram.
– Umas 500 milhas – ele respondeu sem esperar que tivessem a resposta gravada. Voltou ao seu lugar.
Ele retirou a carteira do bolso de trás, que trazia um bocado de dinheiro e uma foto que estava
surrada, mas perfeitamente dobrada e da qual ele esticou com demasiado zelo. Abriu
a fotografia e a colocou ao lado da caneca cheia de cerveja, olhando para os três.
Nela, uma mulher de cabelos longos, ondulados e de um castanho claro
contrastando com um loiro refletido pela luz sorria de maneira não muito
amigável para a foto, um pouco carrancuda, sim, mas sorria.
Lord,
I'm one, lord, I'm two, lord, I'm three, lord, I'm four
Lord,
I'm 500 miles from my home…
Ian
finalmente pegou um de seus últimos cigarros e o acendeu. Os três seguraram
suas canecas e ergueram no ar, uma espécie distorcida e moderna de morituri te salutant.
– De
quem é a vez agora?
Olharam
todos em direção à foto iluminada pelas luzes natalinas e se calaram, como se
prestes a ouvirem a próxima história. E o Paradise só não ficou mais silencioso
porque Peter, Paul e Mary continuavam a cantar:
Five
hundred miles, five hundred miles, five hundred miles
Lord,
I’m five hundred miles from my home…
Nenhum comentário:
Postar um comentário