28 de dezembro de 2018

Cemetery Drive #36 [ESPECIAL DE NATAL] - 500 milhas de casa












Dedicado aos que amamos e que, de alguma forma, não estão mais aqui.





I
O Paraíso



Ao longo de uma quase infinita reta de quilômetros e cercado por uma vegetação quase rasteira que anunciava aos motoristas os primeiros sinais de um longo e frio vale californiano, o Paradise empunhava-se solitário no meio de um grandioso nada. A fachada possuía fontes glamourosas de um neon desgastado, a inicial P era a única que mantinha-se vibrante a quase meio quilômetro de distância, seja lá para qual direção você estivesse dirigindo – para a boca do Inferno ainda mais longo do vale ou para os ares de companhia da civilização.
Em moldes quase clássicos de um notório e rebuscado traço, as colunas da fachada formavam semicírculos como colunas gregas ou tentavam imitá-las. De algum modo, as características do bar à beira da estrada não soavam cafonas de acordo com os gostos medíocres dos quais se esperavam de prováveis donos desdentados e barrigudos – havia, decerto, um evidente requinte na entrada como as cores fortes e vibrantes de uma planta carnívora sedenta para atrair insetos desavisados. Você precisaria subir um breve lance de cinco degraus até o largo espaço com dois bancos corridos, lisos, de madeira encerada que servia sempre de conforto para algum casal embriagado que queria respirar ar puro de beira da estrada enquanto enrolava suas línguas. Às vezes, um lobo solitário saía do bar e sentava-se ali, fumando uma carteira de cigarro na promessa de que aquela seria a última, caso um carro cruzasse a interestadual dentro de quinze minutos. Mas, às vezes, levavam até 45 minutos ou mais para que qualquer farol surgisse na escuridão que a vista alcançava. Quando as gangues de motoqueiros se reuniam, disputando seus elevados níveis de testosterona com piadinhas sujas e sem graça, que ambos explodiam de tanto rir, ou quando decidiam qual delas entraria para uma rodada, pois o espaço lá dentro não era tão largo para abrigar tantas barbas, cicatrizes e tatuagens, então alguns bebiam lá dentro e outros lá fora, às vezes revezavam, às vezes duelavam de maneira até séria demais atrás da averiguação de qual dos punhos era mais veloz.
As brigas no Paradise até plantavam-se e cultivavam-se lá dentro, mas no instante decisivo de arregaçar as mangas, era lá para fora que iam todos. A última briga fora há quase três semanas, quase um recorde. A polícia da cidadezinha mais próxima muito raro batia ali, pois apesar das rixas, os porcos alcoólatras nunca passavam dos limites (a plateia ou a própria dona do Paradise, Cyntia, não permitia). As outras ocasiões em que a polícia ali estacionava era quando o Sheriff Gillian afogava em uma caneca outra desconfiança das artimanhas da esposa ou quando levava uma das garotas do colegial para um papinho rápido e para alguns tragos na esperança de facilitar as coisas antes do grande show, que muito provavelmente ocorria dentro do próprio carro à beira da estrada.
Entre a margem da estrada e os degraus que levavam à entrada do Paradise, uma extensa área de terra batida estava sempre marcada com pegadas ou rastros de pneus, sempre suja, enlameada. A pedido da clientela, Cyntia nunca modificara o local, nem entrara com um requerimento na prefeitura de Parkins (a cidadezinha mais próxima de onde o Sheriff Gillian trazia as mocinhas) para acabar com a lama e colocar de vez uma camada de asfalto. A lama era especial – marca registrada do Paradise. Ali aconteciam as brigas, ali os brutamontes se agarravam, caíam, rolavam, esmurravam-se, cuspiam sangue e finalmente davam fortes gargalhadas pela celebração olimpiana e apoteótica de pancadaria.


Apesar de tudo isso, o Paradise fazia jus ao nome: era um oásis aos viajantes com comida rala, de não muita variedade ou sabores aguçados, mas satisfatória – sombra para os verões escaldantes e calor para os invernos frios, como aquele atual. Era também um lugar estranhamente agradável de se entrar da maneira como eram os primeiros templos religiosos para os povos antigos, que reuniam dezenas de tribos para celebrarem, em comunhão, com os deuses que os regiam e os protegiam. Desde que Cyntia o herdara do pai, nenhuma briga lá dentro havia ocorrido. Tudo o que no interior do Paradise se quebrava eram os copos, no máximo. Cyntia era como uma mãe que nunca elevava a voz e oferecia sempre um largo sorriso, mas que bastaria uma pequena mudança de expressão para informar a mudança de ânimo e o presságio da tormenta ruim que nenhum dos clientes estava disposto a vivenciar.
Aos clientes antigos e aos casuais viajantes, o Paradise era uma joia de se encontrar por aí, ainda mais se sua barriga estivesse roncando e os lábios ansiando por água ou álcool.
E, embora ninguém estivesse naquele momento sentado nos dois bancos e apenas dois carros permanecessem estacionados sob a gélida temperatura de inverno, caso você estivesse na lama, na margem ou sentado, veria um par de faróis surgir ao longe e pouco a pouco se aproximar num ronco intermitente. A caminhonete azul escura quase camuflava-se na escuridão com um deslizar pesado e quase asmático. A Chevrolet GM 1974 quase atolou na lama, fez um esforço para sair e conseguir estacionar ao lado dos outros dois carros. A fumaça saída do escapamento embaçou por um momento a visão da noite e das ralas estrelas no céu (ainda era possível ver algumas se você apagasse as luzes do Paradise).
A porta rangeu e abriu-se com um esforço. Ian desceu do carro com um cigarro ainda não aceso entre os lábios. Ele não reclamou da porta, nem a esmurrou, apenas balançou a cabeça com ar de compreensão – o velho Chevy quebra-galhos estava quase morrendo. Com as botas na lama, ele inclinou-se para dentro da caminhonete uma última vez antes de fechar a porta, retirando de lá um embrulho mediano que cabia embaixo do braço direito. Subiu os degraus e antes de atravessar a porta (que tinha uma enorme placa de “FECHADO” em uma das bandas), uma linda moça de cabelos negros e traços indígenas saiu de lá. Ambos pararam, olharam um para o outro, ela sorriu na direção dele, puxou o isqueiro do bolso de trás da calça e acendeu o cigarro na boca de Ian. Abriu os braços para aplacá-lo em um forte abraço.
Tala era quase dez anos mais nova que Ian, que agora tinha os cabelos embaraçados e grandes, cobrindo as orelhas. Nas laterais, os fios brancos já floresciam como ramos de Bocas de Leão, os traços mais firmes, duros, como se houvesse um esforço imenso para dobrar um sorriso ou como se, há muito, muito tempo não o fizesse. A moça notoriamente surpreendeu-se com a mudança, mas não teceu comentários a respeito. Limitou-se apenas a sorrir.
– Você está quase atrasado, sabia? – Ela disse ao recuar um passo. As mãos estavam nas laterais dos ombros dele, dizendo, com apenas o leve roçar de palmas e dedos, um vibrante “olha só pra você”.
– O cavalo tava meio sem fôlego – ele olhou para trás e ela acompanhou o olhar até a caminhonete. – Mas aguentou a estrada.
– Onde está o velho FNM Onça? – Perguntou ela sobre o antigo modelo brasileiro. A surpresa e decepção estampadas no rosto.
– Longa história – respirou devagar e sorriu. – Há quanto tempo está em casa?
– Vim passar o natal com mamãe. Além disso, ela ainda não conhecia pessoalmente o neto. Ele precisava saber quem era a famosa Cyntia.
Ian sorriu ainda mais. Ela continuou:
– Por isso eu adoraria ficar, mas preciso voltar a Parkins. Caso você e Henry queiram ficar mais alguns dias, venham nos visitar.
– É uma ótima ideia.
Eles se abraçaram novamente e ela sussurrou algo no ouvido dele, tão breve e tão sincero que Ian retribuiu com um aperto de igual sinceridade. Beijou-a na bochecha e disse o mesmo. Tala desceu os degraus e enfiou os sapatos na lama sem cerimônias, entrou no próprio carro e disse antes de ir embora:
– É melhor entrar logo, estão te esperando há horas.
Quando cruzou a porta e a trancou atrás de si (como exigia a tradição), Ian respirou o ar quente do interior do Paradise, sentindo deitar em sua pele como um longo e materno cobertor em uma noite fria de uma estação fria. Amplo, apesar de não conseguir abrigar mais que uma gangue inteira de motoqueiros, o bar ainda era o mesmo de tanto tempo antes – como no primeiro e como em todos os outros em que Ian pisava ali, anualmente e sem faltas. As luzes vermelhas das lâmpadas que pendiam do teto, nas paredes, as placas de trânsito penduradas como quadros de artistas medievais, as cinco placas (e contando) dos mais fiéis frequentadores que perderam a vida na estrada ou por causa da estrada eram ostentados como uma respeitosa forma de homenagem. O longo balcão com sete bancos ao todo e a prateleira espelhada com bebidas dos mais diversos tipos – de Wild Turkey ao Black Jim Beam, Maker’s Mark ao Heaven Hill, uma infinidade de Jack Daniel’s, todas as outras porcarias que você encontraria à beira da estrada e, claro, uma garrafa praticamente intocada de Woodford Reserve. Em todos os anos que visitava o Paradise, Ian percebera que a garrafa permanecia ali, com apenas duas ou quatro doses servidas. Seria essa outra tradição de Cyntia?
A velha televisão acima do balcão estava desligada, assim como a jukebox ao final do bar. Ian passou pelas duas mesas de bilhar, as bolas organizadas e os tacos dispostos ao lado, como se aguardassem tão ansiosos pela presença dos jogadores, fossem quem fossem. Ele tocou a lateral das mesas enquanto passou por elas, havia uma forma carinhosa, havia certa nostalgia no ato. Na última mesa da parede havia um homem solitário, bebendo sozinho e com a cabeça baixa, encarando os próprios dedos em volta do copo numa meditação silenciosa. Ian colocou o embrulho que trazia sobre a mesa e sentou-se de frente para o homem.
– Tá atrasado, garoto – o homem sequer levantou os olhos para Ian. Tinha os cabelos ralos no topo da cabeça, embora não fosse tão velho assim. As entradas estavam agressivas, os cabelos penteados para trás e reluzindo as luzes vermelhas devido ao gel. A cerveja na caneca estava a dois dedos de terminar e nem parecia tão gelada.
– É. Estou ouvindo isso com certa frequência hoje.
Hank pôs para dentro o resto de cerveja num trago rápido, mas a careta que fez não foi muito agradável. Hank raramente bebia, o fazia apenas nas ocasiões especiais, que restringiam-se, no caso dele, a talvez três em um ano. Aquela era uma delas.
– Vai com calma, meu bom homem – Ian soltou entredentes, com uma risadinha de deboche.
Só então o homem ergueu o olhar e o recepcionou com um sorriso que misturava alívio e fraternidade. Hank poderia, o quanto desejasse, sujar as mãos e banhar-se de atos severos, mas jamais perderia aquilo que mantinha consigo: uma estranha simpatia que perdurava até aquele dia, apesar de todos os...
– Senti sua falta, garoto.
Ele se levantou e circundou a mesa. Ian levantou-se para que ambos se abraçassem. O abraço durou mais do que o abraço de Tala, porém igualmente apertado, demonstrando que aquele era o sinal máximo de gratidão por ainda estarem vivos em mais um ano.
– Eu também, velhote – Ian se sentou. – Por onde andou no último ano?
Hank apenas abanou a mão.
– E você, por onde esteve?
Ian desviou o olhar e a mesma expressão dura e já tão inexperiente de dobrar um sorriso reapareceu. Hank também foi capaz de vê-la.
– Onde está a nossa anfitriã? – Ian retirou as duas camadas de casaco que usava e forrou as costas da cadeira e recostou-se.
– É bom saber que sente minha falta, Ian Morgenstern – a mulher surgiu atrás dele com uma bandeja que pôs sobre a mesa – ovos e bacon fritos e três canecas de cerveja cheias, estupidamente geladas, apesar do inverno solitário lá fora. Ela o abraçou com a mesma força, com a mesma duração, e também disse “olha só pra você” e “que bom te ver... vivo” sem dizer coisa alguma. Porém não tardou de salientar: – Isso são horas de chegar?
– Eu prometo que a próxima pessoa que me disser isso não sobreviverá para ver o próximo natal.
Cyntia deixara como herança a maioria de suas características físicas para a filha, Tala, pois tinham as duas uma espantosa semelhança. Entretanto, ao passo que Tala era esguia e magra, com nariz longo e adunco, Cyntia possuía traços menos severos, cabelos mais curtos e completamente enevoados, tão prateados quanto os olhos de Ian. Era mais baixa, possuía mais curvas e mancava no lado esquerdo da perna, condição que carregava mais com orgulho do que com incômodo. Havia certa vitória no fato de ser manca, um troféu há muito conquistado e diariamente exibido, não para o mundo, mas primeiramente para si mesma. Haviam os curiosos e os enxeridos que desejavam enfiar o nariz na história de Cyntia, confundindo certas liberdades estabelecidas (e muito bem respeitadas por quase todos) no Paradise. A eles, a verdadeira história não importava. Poucos a conheciam, apenas aqueles que mereciam, aqueles que acreditavam. Ian era um deles.
– Coma, menino. Deve estar faminto – Cyntinha apontou para o prato.
Ian apenas assentiu e começou a comer.
Sentada na mesa ao lado de Hank, a velha Cherokee permaneceu com os olhos pousados sobre Ian como uma velha parente que há muito tempo não vê um sobrinho, talvez um neto. Embora fizesse apenas um ano desde a última visita (Hank parava por ali mais vezes), Ian voltava sempre com uma mala diferente nas costas: às vezes, com os bolsos cheios de piadinhas, a língua carregada de trocadilhos sacanas e historietas que faziam os outros dois rirem; às vezes, voltava daquela forma taciturna, com as mãos nos bolsos e com alguma história não tão agradável entre os punhos cerrados, garatindo que não pudessem escapar. Porém em nenhuma das ocasiões natalinas ele aparecera com um presente ridiculamente embrulhado debaixo dos braços. Essa foi a única coisa que fez Cyntia desviar os olhos de Ian.
– Que porra é essa, menino?
– Fome – ele disse com a boca cheia e os olhos fixos na comida.
– Não, pirralho. Estou me referindo a essa coisa embrulhada aqui. Que merda é essa?
– É um presente – ele ergueu o rosto, forçou um sorriso. – É isso o que as pessoas fazem no Natal, não é? – E pôs um punhado de bacon na boca. – Elas dão presentes – Então abanou a mão, incentivando-a a abrir. – Dê uma olhada.
Cyntia abriu o embrulho que sequer estava embrulhado no termo mais apropriado, a palavra certa seria “enrolado”. Dentro dele, uma pequena árvore de natal de plástico revelou-se amassada, com alguns galhos caídos, tortos ou quebrados, mas suficientemente conservada para uma única noite de uso. Enrolado nos pés dela, um jogo de luzes amarelas como uma espécie de cereja do bolo. Cyntia arregalou os olhos e gargalhou, tão surpresa com o presente quanto Hank. Ela enrolou o jogo nos galhos resistentes da árvore e acendeu perto da parede, sobre a mesa. Ian sorriu, agora menos forçado, matar a fome o deixava com o ânimo revigorado.
Com as luzes brilhando e Ian mastigando, a velha índia inclinou-se sobre a mesa e revezou os olhos entre o garoto e o “velho”.
– E então? Quem vai começar?
Quando perguntou isso, o relógio no pulso dela marcava dez horas e trinta e seis minutos. Cyntia fez questão de mostra-los, batucando o indicador no visor do relógio como sinal de advertência. Ian não expressou reação alguma, apenas permaneceu mastigando com os olhos vazios.
Após meio minuto de silêncio, foi Hank quem levantou a mão.
– Ótimo, Henry – ela segurou a caneca e Ian fez o mesmo. Ambos as ergueram no ar em sinal de saudação.
Hank pigarreou e então começou.




II
A (verdadeira) lenda de Sunnyside-Tahoe City



Hank sorveu um pouco de cerveja, obrigando-se a não exprimir uma careta quando o líquido desceu gelado e amargo pela garganta. Ou era azedo? Não importava. Os dois perceberam o tamanho do esforço exigido para não reclamar da bebida, e enquanto Ian ria apenas para continuar caçoando, Cyntia fazia com ar de diversão. De qualquer modo, o homem obrigou-se a mais um trago e pôs a caneca na mesa, sem separar a mão de sua alça.
– Esta é de longe uma das minhas favoritas. Cyntia, após todos estes anos, acho que você já está preparada para ouvir esta história.
– Preparada não – corrigiu Ian –, merecedora.
– O que, Diabos, estão falando?
– Esta história é sobre Sunnyside-Tahoe City. Quero dizer... é sobre Peter, A Lenda de Sunnyside.
Cyntia continuava sem entender nada.
– Quem é Peter?
– Tio Peter, irmão mais velho de Andrew e de minha mãe – Ian explicou.
– Na época, Peter era jovem – Hank prosseguiu com a história –, portanto Andrew e Rebecca eram ainda mais. Becca e eu éramos adolescentes, e como forma de castigo para Peter, enviaram a filha mais leal dos Morgenstern para supervisioná-lo. Acontece que Peter sempre foi o filho menos exemplar da família, era conhecido em toda Bakersfield e visto com maus olhos.
– Assim como eu, até hoje – Ian reiterou, com um punhado de bacon gorduroso na boca.
Hank assentiu de forma trágica.
– Mas Peter se redimiu depois de Sunnyside. Na verdade, foi adorado. Ainda mais do que Becca. E, veja bem, não há quem não goste de Rebecca Morgenstern por aí – quando mencionava o nome da filha preferida da família Morgenstern, Hank o fazia de forma apaixonada, sem tentar e sem ao menos querer manter em segredo quaisquer de seus sentimentos e admirações pela (então) garota. – Os Morgenstern foram contratados na época para resolverem algum problema de “encanamento” em Sunnyside. O pai e os tios dos três Morgenstern foram à região antes do serviço, avaliaram os sintomas, os vestígios e o número de vítimas. Pelo que Rebecca me contou à época, eram três corpos na região. Sunnyside-Tahoe City faz parte de um condado perto de Truckee, e isso foi muito antes dessa região ser incorporada pela Califórnia. O turismo em Sunnyside não funciona durante o inverno, o lugar prospera durante a primavera e o verão, é cheio de hospedarias e hotéis em função dos lagos – Após um longo tempo falando, Hank pareceu se lembrar da caneca de cerveja, bebeu um pouco e continuou: – Estavam todos fechados e reabastecendo as despensas e se preparando para as próximas temporadas. O problema de encanamento em Sunnyside começou no início do outono de 78.
– Espera aí, que merda é um problema de encanamento? – Cyntia o interrompeu.
– São problemas que envolvem água – Ian engoliu o ovo. O prato já estaria vazio se Cyntia não o tivesse preenchido de comida até as bordas. – Sabe? – E gesticulou a mão que segurava o garfo, ondulando o objeto e espetando a comida como se a ponta do talher fosse um tubarão, qualquer outra criatura com garras, pontas de metal ou dentes. – Entende? Problemas que nadam, esse tipo de coisa...
– O quê? – Cyntina sorria, confusa. Continuava sem entender porra alguma do que Ian tentava explicar e acabava piorando.
– O tipo que fode as pessoas... sabe... no mal sentido – ele sorriu.
– Que porra é essa, menino?
Hank, àquela altura, mantinha as mãos no rosto para ignorar tantas asneiras, embora quisesse rir. Então pigarreou forte e apontou para a comida, sugerindo que Ian continuasse apenas comendo.
– Nos referimos como “Problemas de encanamento” a tudo aquilo que envolve mortes, entidades ou criaturas elementais, mais especificamente aquelas ligadas à água – Hank ignorou o “garoto”, como se este fosse um professor inexperiente. – Havia três mortes e várias testemunhas, incluindo o sheriff do condado. A maioria dizia que viu uma mulher agarrar as vítimas e levá-las para o fundo do lago, outras testemunhas afirmavam que “uma sombra vinda do fundo” atacava-os e depois os puxava. Duas pessoas nunca foram encontradas e três apareceram estraçalhadas e mastigadas nos dias seguinte.
– Era um animal?
– Não. Três policiais, inclusive o sheriff, viram uma mulher levando uma das vítimas. 
– Você tá de brincadeira, não tá? – Cyntia ria, incrédula. – Você tá me dizendo que eram ser...
– Não! – Ian bradou. Um pedaço de comida voou até o colo de Hank, que imediatamente gritou um palavrão. – Essa merda não existe.
– Claro que existe, Ian – Hank espalmou a própria roupa. – A lenda de Sunnyside é sobre Peter, o matador de sereias. Esqueceu?
Ian mostrou o dedo do meio.
– Esperem, você não deveria contar uma história sobre Rebecca ao invés de desenhos infantis ou o irmão mais velho dela? – Cyntia interviu.
– A história é sobre Becky, Cyntia – Hank respirou fundo, pediu calmamente um tempo para Ian, apontando novamente para a comida dele e, dessa vez, para o espanto dos outros dois, Hank virou um trago maior. Prosseguiu: – Peter nunca quis fazer o que a família faz, Peter nunca possuiu responsabilidade alguma nem mesmo para as coisas mais imbecis. Mas o nome da família estava em jogo ali, e ele não possuía autonomia alguma para lutar contra a tradição dos Morgenstern. Sunnyside-Tahoe City foi um teste final, Deus sabe o que aqueles loucos fariam com Peter caso ele se voltasse contra a própria família e todas as outras de Bakersfield. Então após quase um inverno inteiro tentando capturar a criatura, Peter conseguiu. Ele matou a sereia de Sunnyside. Tornou-se uma lenda, como Sinbad ou os antigos heróis gregos. Nunca antes homem algum do qual se tenha conhecimento capturou uma sereia e mostrou o corpo a todos os outros.
– Peter fez isso? – Cyntia por um momento esqueceu a introdução da história e perdeu-se pelo impacto ante o feito de Peter Morgenstern.
Tanto Hank quanto Ian riram como alguém que compartilha um segredo sacana.
– Peter passou dois meses inteiros nas camas das velhas donas dos hotéis de Sunnyside e com as estudantes de Truckee. Peter não fez porra alguma senão trepar com todos os rabos de saia que via por lá – Outro gole de cerveja. Aquele desceu com mais facilidade, embora a caneca nem estivesse na metade. – Fui eu que busquei os dois irmãos e levei o corpo numa caminhonete até Bakersfield. Rebecca me contou toda a história no caminho e me fez jurar nunca dizer a verdade aos outros caçadores. Foi ela quem localizou, perseguiu e capturou a sereia com as próprias mãos.
Cyntia soltou uma gargalhada, perplexa.
– Becca matou uma serei...
– Claro que não – Ian interrompeu novamente. O prato já estava vazio. – Sereias não existem, Cyntia.
– Mas...
– Há alguns anos, fui a uma cidadezinha com um velho amigo meu, um inglêzinho desgraçado de sotaque elegante. Um velho conhecido de família me enviou uma carta pedindo ajuda. Quando chegamos lá, o desgraçado havia desaparecido. Depois de algumas semanas, descobrimos um... cardume de peixes carnívoros. Eles estavam capturando vítimas para um ritual de acasalamento... foi uma tremenda sacanagem. No fim, não passavam de peixes místicos, amaldiçoados por algum deus babilônico, um tal de Dagon. Eram peixes fêmeas que soltavam feromônios através de um muco na água. O cheiro era nauseante e extremamente alucinógeno para... para... sabe, criaturas do sexo... masculino...
– Homens – Cyntia concluiu, curta e grossa.
– Pois é – Ian deu de ombros. Enfiou o dedo indicador no prato, rodou e lambeu a gordura do bacon. – Algumas dessas criaturas foram trazidas por um colecionador de animais no mercado negro. Já outros, como desse cardume inteiro, pararam naquela cidadezinha pesqueira. Os Crawford de New Jersey se envolveram no caso. Will Crawford pediu minha ajuda... através de uma carta, dá pra acreditar? – Ian acendeu um cigarro e bebeu sua cerveja. – Esses animais confundiam as vítimas, acasalavam com eles e os levavam para o fundo. O ritual tinha como objetivo despertar esse antigo deus babilônico e trazê-lo de volta.
– Seu amigo inglês e você deram um jeito no cardume de sereias? – Cyntia cuspiu com deboche.
– Mais ou menos – e deu de ombros. – No fim, não são sereias.
– Não, não são, apenas peixes – Hank concordou. – Levamos o corpo para Bakersfield, todos constataram e louvaram o garoto pelo feito. Tornou-se A Lenda de Sunnyside-Tahoe City. A palavra de Rebecca deu veracidade ao fato. Peter virou uma lenda e saía sempre com Becky. Ela resolvia os problemas, chutava todos os rabos e acabava com tudo – de bêbados brutamontes e espíritos perseguidores até objetos de família amaldiçoados. Às vezes, Peter levava todo o crédito. Ele ficava nos bordéis enquanto Rebecca sujava as mãos; em outras vezes, eu mesmo os acompanhava e trabalhava com ela.
– Que filho da puta aproveitador...
– Não, não – Hank balançou a cabeça, assim como Ian. Estavam, ambos, rindo. – Peter é uma ótima pessoa, a ovelha negra adorável da família. Andrew Morgenstern? Esse sim é um filho da puta sem coração.
– Um cuzão – Ian concordou novamente.
– Peter é um bom homem, apesar da canalhice. Enquanto esteve viva, Rebecca e ele amavam um ao outro. Ele a aconselhava e ela o acobertava. Ela o transformou em uma lenda.
Cyntia bebeu da própria cerveja enquanto refletia, pensar na verdadeira responsável pela fama de Peter era, para ela, imensamente divertido. Assim a imagem de Rebecca tornava-se ainda mais clara e condizente com aquela moça que Cyntia conheceu, com aquela moça que salvara ela e a pequena Tala, quando essa ainda era uma criança.
– Onde esse Peter está agora?
– Caçando demônios carnais no oriente... O que significa “dormir, beber, coçar o saco e trepar em algum litoral da Tailândia”. – Hank consertou.
– E Rebecca? Ela realmente matou aquele peixe? Quer dizer, aquela “sereia”?
– Mas é claro – Ian inclinou a cabeça para trás, deitando-a no encosto da cadeira e fechando os olhos.
– Como?
Novamente, os dois riram.
– Ela usou o próprio irmão como isca. O peixe o puxou até o fundo e...
– E...?
– Rebecca mergulhou e o acertou com um arpão.
– Uau... – Cyntia estava, definitivamente, boquiaberta.
– É, pois é. Uau – Hank finalizou.


  

III
O verão de 1995



Cyntia levou consigo as três canecas (Henry finalmente conseguiu esvaziar a sua) para trás do balcão. Encheu novamente as três na torneira de cerveja e com a habitual habilidade de equilibrista trouxe de volta o combustível tão adorado por ela e por Ian. Henry tentou sorrir com menos incômodo, mas algo no olhar do velho homem sugeria um já esperado abalo no nível de sobriedade. Duas canecas até então, aquela seria a terceira.
Ao contrário de Ian, o bom Henry visitava o Paradise mais vezes durante o ano, sempre que estava perto ou voltava para casa, em Bakersfield, o homem dava um pulinho até ali, tomava um copo d’água e pedia qualquer refeição na tentativa de se camuflar em meio aos beberrões e narrava suas aventuras por aí. Apesar de fazer profunda questão de não deixar a máscara cair, Cyntia adorava conversar com homens que procuravam se manter sóbrios, pois como proprietária de um bar ao nível do Paradise, ela só conversava com três tipos de homens: os bêbados, os que desejavam se embriagar e os irritantemente calados. Você nunca descobria de que tipo de perrengue haviam escapado os do terceiro tipo (eram fugitivos, foragidos da polícia? Eram assassinos desnorteados por massacrarem os vizinhos, os filhos, as esposas ou os maridos? Eram sujeitos com cordas no pescoço ou sujeitos a caminho da Bixby Creek com o azul do oceano como última visão de vida?). Cyntia não sabia e isso a irritava. Irritava ter pouca ou quase nenhuma leitura daqueles que pisavam em sua lama lá fora e sujavam o chão do seu Paradise. Não à toa odiava quando Ian passava por aquela porta com as mãos nos bolsos e uma porção de segredos, terrores ou consternações presas nas mãos; não à toa odiava o silêncio que emanava dele e que combinava tão pouco com o silêncio ao qual o Paradise mergulhava nas vésperas de natal de todos os anos desde que os três começaram com aquelas reuniões.
Ela mirou a árvore: o brilho do jogo de luz amarelado contrastando com a iluminação vermelha do bar, a árvore tão singela, quebrada, raquítica, mas ainda ali, representando qualquer coisa que Ian desejava que significasse. Para Cyntia, havia um sentido, mas e para aqueles dois homens? O velho homem e o outrora menino?
Ian voltou do banheiro com as mãos limpas. Esparramou-se no assento e não disse coisa alguma por algum tempo, nem mesmo fez. Manteve os olhos prateados imersos na caneca de cerveja.
– Muito bem, e agora? – Ele perguntou após voltar dos devaneios. Esfregou as mãos e exibiu um sorriso cínico e sonso que nada tinha de sorriso.
Ian sabia. Conforme a tradição daquelas reuniões demandava, ele sabia a ordem, mas novamente (como em todos os anos) perguntou como se tão pouco ou de nada soubesse.
– É a sua vez, menino – Cyntia balbuciou, enviando a ele um sorriso encorajador. – É a sua vez.
Ao lado dela, Henry assentiu da mesma maneira cuidadosa, cordial e encorajadora.
– Ok – disse num suspiro, então acendeu um cigarro. Tragou fundo. Por dez segundos, quase doze, a fumaça dentro da garganta. Depois ela escapou entre lábios e pelas narinas ainda enquanto ele começou a falar: – Eu não posso fingir que essa merda não existe, nem posso fingir que me obrigo a decidir qual história contar um ou dois meses antes do natal. Ora, merda. Sem essa. Eu começo a pensar na próxima história no exato momento em que saio por aquela porta, Cyntia. Penso na porra da história sobre Becca assim que termino de contar a anterior, quando te abraço ou te prometo que virei aqui antes do próximo natal e nunca cumpro. Mas, querem saber de uma coisa? – Mais um trago, um dos longos, e em seguida a fumaça serpenteando a árvore de natal. – Existe uma história que ninguém ainda ouviu, um lado de uma história antiga e muito bem conhecida que ninguém nunca ouviu falar. Eu sempre desejei contá-la a vocês, e, bem... – Deu um peteleco sobre o cinzeiro. – É sobre o verão de 95.
– Ian...
– Ian, você não precisa fazer isso – Henry foi mais rápido, percebeu Cyntia. Como se já estivesse preparada para a possibilidade.
– Relaxa, Hank. Tá tudo bem. Você não escutou? É sobre a história que ninguém nunca ouviu ou considerou sobre aquele verão – Um longo trago de cerveja, um longo trago no cigarro.
– Tem certeza, menino? – Cyntia estava tão desesperada quando Henry.
Ian balançou a cabeça, positivamente.
– Existe aquela história que termina de maneira trágica. Existem todas as coisas que a rodeiam: boatos, mentiras, invenções, mais boatos e mais invenções. No meio de tudo isso, existem as poucas pessoas que sabem o que realmente aconteceu – por um segundo, o cinza dos olhos de Ian vacilou em direção a Henry e depois voltou na direção da caneca. – Mas o que ninguém sabe é a outra parte da história contida nessa primeira história trágica: o verão de 95 – Ian intercalava poucas frases com tragos de cigarro ou petelecos no cinzeiro. – Mamãe vivia quase sempre fora de casa, se é que eu poderia chamar aquilo de casa. Os únicos que se salvavam por ali eram Hank e os Barnes. Eu estava quase sempre na casa de Annabelle junto com os pais dela. E então mamãe voltava e haviam as brigas: ela sempre sabia o que acontecia comigo e saía de casa com uma... com uma .12 nas mãos pra apontar na cara de quem quer que tivesse mexido comigo – nesse momento, Ian começou a rir. Henry também fez o mesmo, dizendo “é verdade”. – Eu nunca fui uma criança muito esperta, Cyntia. Eu usava óculos imensos, era quase cego naquela época e os adultos e os moleques da vizinhança vivam escondendo aquela merda de mim. Eles viviam pra me foder. Mamãe nunca me repreendeu por não reagir. Quando voltava das viagens, ela chutava o rabo de todo mundo ou simplesmente soltava os cachorros dos vizinhos. Ela soltava os bichos das correntes e dizia pra mim e pra Ann: “fiquem dentro de casa, eu vou fazer todo mundo correr agora”. Então os cachorros atacavam todo mundo, fossem adultos, fossem crianças, fossem mulheres, velhos ou os cuzões do partido conservador. Aquilo era um caos, ficavam desesperados, corriam por todo o bairro, irritados porque certamente a polícia apareceria. Quer dizer, os chefes de polícia sabiam quem éramos e o que fazíamos, então as ordens eram de não aparecerem por ali, nem de nos encherem o saco. Mas qualquer coisa que chamasse atenção já incomodava. Minha mãe era... Sabe, ela fodia com todo mundo que não a respeitasse ou não respeitasse qualquer coisa que ela dissesse. “Não mexam com o Ian” era uma delas.
Ele amassou o cigarro no cinzeiro, molhou os lábios e acendeu outro.
– Ela sempre me dizia que um dia voltaria para casa e ficaria de vez, que então não precisaria mais sair para as viagens. Eu achava que ela vivia trabalhando, impedindo que alguma coisa acontecesse com as outras pessoas, mas depois de muitos anos, percebi que era mais que isso. Era ainda mais nobre. Enfim – e sorriu com descrença. Descrença por todas as surpresas que uma morta ainda era capaz de reservar. – Um dia, já era tarde da noite, ela entrou pela porta de casa e me acordou, ela me balançou na cama e disse “Ian, querido, venha comigo”. Eu vesti o que pude e a acompanhei. Eu já era mais velho e já sabia usar uma arma e enxergava melhor, nem precisava mais da merda daqueles óculos. Então fomos até uma lanchonete e ela me encheu de sorvete e cheeseburguers. Ela me perguntou se eu queria fazer uma viagem, tinha um sorriso desgraçado na porra daquele rosto, meu Deus, aquele sorriso... – E então se calou, perdido numa risada que fazia escapar a fumaça do cigarro pela boca. Mais dois goles de cerveja e a caneca ficaria seca. Cyntia ofereceu-se a buscar outra, mas ele negou a gentileza, tomou um longo trago e puxou a caneca de Henry, que apenas sorriu com a atitude. – Se eu não fosse seu filho (não que de fato eu seja), certamente ficaria louco por aquela mulher. Entendo porque o Hank aqui nunca a esqueceu. E aí comemos e rimos pela madrugada inteira. O verão ainda não havia começado, mas as madrugadas não estavam tão frias. Andamos pelo parque e conversamos sobre... Sobre a filha dos Castle. Fiquei surpreso com o fato de nunca ter sido surpresa para ela o quanto eu tinha uma queda por Gloria.
– Sempre foi óbvio – Henry sinalizou com o indicador.
– Vai se foder, Hank – então começaram a rir. Ian não encarou nenhum dos amigos enquanto contava a história. Esteve sempre focado tão somente na cerveja. – Quando o dia amanheceu e voltamos pra casa, arrumamos nossas coisas e entramos no carro. Ela desceu a rua, passou por três quarteirões e estacionou na frente da casa de Hank. Ela bateu na porta e vocês conversaram por cinco minutos.
– Isso.
– Eu não sei o que conversaram, mas você riu durante todo o tempo, Hank. Mamãe tinha essa capacidade: ou te fazia rir ou te fazia cagar na cueca – Henry ria com cada frase de Ian, sempre tão nostálgico quanto o outro. – Então vocês se beijaram. Você a abraçou, beijou-a de novo e se despediram. Você acenou pra mim, Hank. E aí dirigimos por mais de 800 quilômetros até o norte do Arizona, onde ficamos em uma cabana no meio da floresta, dá pra acreditar? – Ele mordeu o lábio, rindo suavemente. – Foi lá onde Becca me ensinou a caçar. Foi lá onde ela me ensinou o que era preciso para ser um bom caçador, um bom perseguidor das coisas que você quer.
Após o silêncio que Ian fez enquanto bebia da caneca de Hank, Cyntia perguntou:
– O quê, Ian?
– Você só terá o que quer quando souber esperar. – Um peteleco. Um trago. – Sabem o porquê mamãe amava tanto tio Peter?
– Não – respondeu a velha Cherokee.
– Porque ele nunca derramou uma única gota de sangue. Ele sempre se negou à herança da família. Por isso ela detestava pensar na ideia de me ver seguindo seus passos e por isso relutou por tanto tempo desde que me encontrou naquela estrada quando eu era criança em me ensinar qualquer ensinamento mais aprofundado sobre... sobre... Isso – Ian girou os dedos indicador e médio, que seguravam o cigarro, num movimento referindo-se a tudo que os cercava no mundo. – E por isso ela ficou feliz quando respondi à pergunta que me fez assim que chegamos na cabana.
– O que ela perguntou? – Henry mudou a posição ao lado de Cyntia. Apesar de não reagir com muitos movimentos, o homem estava tão interessado na narrativa quanto Cyntia.
Olha, querido, eu tenho que fazer essa pergunta e ela é muito importante. Quero que me diga, com sinceridade, o que você prefere – quando Ian respondeu, todos sabiam que não era ele quem estava falando, eram os ecos que reverberavam das lembranças de Rebecca. – Quer fazer isso com ou sem sangue? – Novamente ele riu, agora falando sem ecos: – É claro que eu escolheria com sangue, mas não naquela época, o que provavelmente a deixou aliviada. Como recompensa ela me prometeu que não fumaria enquanto estivéssemos lá, e cumpriu.
– Tá de sacanagem, garoto? – Inquiriu um Hank perplexo e descrente.
– Ela não fumou. Um dia sequer.
Henry puxou a caneca de volta e virou um trago. Todos riram.
– Então pelo verão inteiro caminhamos pela floresta e ela me mostrou como ela funcionava, principalmente à noite. Mostrou-me a natureza do silêncio, aquele que traz a paz e aquele que antecipa a tragédia. Mostrou-me animais que sabiam que estavam seguros e sozinhos e outros que ocultavam qualquer ruído de seus corpos enquanto espreitavam suas vítimas. Todo um verão com Becca, a verdadeira Becca, não a lenda desconhecida de Sunnyside, tampouco a filha mais fiel da família Morgenstern.
Quando terminou, ele trouxe de volta a caneca de Henry e virou num shot longo e único. Limpou a boca com as costas da mão, amassou o resto do cigarro no cinzeiro e acendeu outro.
Isso ainda vai te matar, garota, era o que todos (ou os mais corajosos) diziam para a mãe de Ian.
Se continuar fumando assim, Rebecca, vai acabar com um câncer, diziam os mais velhos.
Isso ainda vai te matar, pirralha, e tomara, ela ouvia sempre de Andrew.
No fim, estavam todos errados.
E todos souberam disso da pior maneira. Todos sabiam, mas ali, naquela mesa, ninguém disse, em absoluto, nada a respeito do pensamento. Pegaram-no e o jogaram fora, deixaram-no passar direto porque estavam presos demais à história e às imagens de Rebecca, naquela época, tão sorridente e com os cabelos tão longos e louros quanto os de Janis Joplin. “Janis” era como alguns a chamavam, especialmente a família Castle de Nova Orleans.
Mas Ian tinha um apelido especial para ela. Um que somente ele tinha direito de chamá-la, muito embora não tivesse o sangue dos Morgenstern correndo nas veias.
Ele tragou um cigarro e finalmente levantou os olhos, afastando-os da caneca. Encarou um Hank com ombros tensos e respiração estranha, porém não o culpava, jamais poderia. Ele apenas retribuiu o mesmo sorriso do início, aquele encorajador e depois encarou uma Cyntia com olhos marejados (não que os de Hank também não estivessem, só estavam menos, desgraçado mentiroso).
Ian levantou e levou consigo as canecas vazias. O cigarro na boca. Encheu-as na torneira e trouxe as três nas mãos – colocou uma na frente de Cyntia e as outras duas diante de si. Piscou para Hank.
– Você passou da conta, Hank. Conseguiu até mesmo não chorar.
Henry não protestou.
Os dois permaneceram em silêncio por quase cinco minutos enquanto Cyntia mantinha a caneca intocada e o rosto abaixado, ninguém a encarou, entretanto souberam e até cogitavam ouvir as lágrimas caindo sobre as coxas. Apesar disso, Henry envolveu-a em um abraço por todo o tempo, enquanto Ian levou aqueles curtos minutos para consumir o cigarro recém-aceso. Pôs outro na boca e virou para trás, lembrando de conferir se o estoque de nicotina de Cyntia, na prateleira espelhada, estaria cheio.
– E aí, de quem é a vez agora? – Ele brincou com um dos galhos quebrados da árvore, olhou para a Cherokee, que agora estava recuperada, e então sorriu.





  
IV
A maldição Cherokee



– É sempre a mesma história em todos estes anos e vocês sempre vêm com outras novas e melhores – Cyntia protestou com a voz cabisbaixa.
– É quase sempre a mesma reclamação em todos estes anos – frisou Hank.
– Nós viemos aqui, ano após ano, para ouvir exatamente a mesma história, Cyntia. Enquanto você nos fecha no Paradise para escutar novas. Vá em frente, só nos conte a melhor delas.
Ela suspirou e começou:
– Meu avô costumava nos contar que nossos ancestrais mais recentes nasceram nos arredores de Asheville, muito antes de que a tempestade branca varresse nossas terras e desse nomes a elas. Asheville então não era chamada desta forma. Além de todas essas histórias que eu ouvia quando o visitava na reserva onde nasceu, muitas outras eram contadas a respeito de nossos ancestrais mais antigos, os primeiros de nosso povo a andarem sobre aquela terra criada pelo grande Criador, Ouga – o pronome “aquela” foi pronunciado com um peso sutil, mas de profundo pesar e lamento, entrecortado por uma perceptível pausa para designar a dor de estar tão distante de um antigo e já inalcançável lar de onde viera todo um povo. – Alguns dizem que após fazer o dia e a noite, luz e trevas, Ouga tratou tão imediatamente de erguer o Great Smoky e toda a vida que conhecemos hoje.
O Greaty Smoky Montains era uma área com mais de duzentos hectares de florestas, vida selvagem e picos de até dois mil metros de altura, envoltos por neblinas que fundem-se às cores dos céus e das estrelas; também localizado na área que cobre as fronteiras dos estados do Tennessee e da Carolina do Norte, berço do povo nativo norte-americano, chamado de Cherokees, o Great Smoky era um dos parques nacionais mais visitados do país.
– Então houve um tempo de escassez e fome, pois a terra não dava ao nosso povo nenhum fruto, nenhum cultivo. Nossos ancestrais ajoelharam diante de Ouga e pediram a ele que não trouxesse mais a noite, pois precisaríamos da luz do dia para fortalecer as plantas e fazer com que as chuvas caíssem finalmente dos céus. O Criador então ouviu suas preces e fez com que houvesse apenas o sol acima deles em um dia que nunca terminaria e nunca pararia de iluminá-los. Então as árvores cresceram e deram frutos, a terra nos concedeu alimentos e a chuva caiu novamente, mas com o passar do tempo, ela ficou cada vez mais quente, os rios secaram, os animais morreram e o povo ficou fraco, tão logo sofrendo o mesmo destino que os animais. Desesperadas, as pessoas mais uma vez pediram a Ouga que desfizesse o seu feito e trouxesse a eles apenas a noite para que o calor não devorasse seus filhos e que as sombras esfriassem a terra.
Cyntia bebericou sua cerveja, o suficiente para que os lábios ficassem molhados. Hank conservava uma expressão de concentração, os braços cruzados sobre a mesa e um sorrisinho no canto dos lábios pela satisfação de escutar as palavras da velha Cherokee novamente. E Ian amassou o que sobrara do cigarro. No cinzeiro, oito ou dez sobras de filtro amarelo jaziam espremidas entre as cinzas.
– Comovido pelas súplicas dos homens, Ouga mais uma vez atendeu ao pedido, jogando sobre a terra a escuridão das noites e o pincelado brilho das estrelas. O calor que antes matou tantos de nós então esfriou e nos acolheu, impediu que todos morressem, inclusive as próprias florestas e os poucos animais. A noite restaurou, por um momento, o equilíbrio roubado pelo intenso calor, no entanto, com toda a noite, vem o medo. E com todas as trevas, vieram o frio e em seguida a morte. Da maneira como esquentou, a terra também esfriou e os poucos de nosso povo que antes sobreviveram, pereceram para a escuridão que os abateu. Antes que os últimos homens e as últimas mulheres desaparecessem, eles clamaram por mais uma intervenção de Ouga, admitindo que o equilíbrio natural arquitetado por ele era o ideal para a vida, e que portanto estavam errados.
– Que povo mais indeciso este seu, Cyntia – Ian murmurou em meio a outro cigarro.
Ancestrais – advertiu, com uma risada que já esperava pela velha piadinha.
– Ok. Ancestrais.
– Reestabelecendo a dualidade primordial da vida, como luz e trevas, vida e morte, calor e frio, O Criador sentiu-se compadecido pelo sofrimento de suas criaturas e devolveu aos nossos ancestrais o funcionamento orgânico e original da terra – ela bebeu um gole maior, impediu que um arroto escapasse e levantou o dedo, sinalizando o detalhe mais importante da história e aquele para a sua própria: – Tocado pelo sofrimento de tantos entes queridos, Ouga carregou consigo todas as almas que sucumbiram no calor e no frio e os colocou dentro de uma imensa árvore, A Primeira Grande Árvore, o primeiro Cedro, para sinalizar que ali residiam e residem todos os ancestrais de meu povo. Então chegamos ao pai de meu avô, que de alguma forma, levou-me até Rebecca.
“Ele nasceu em um mundo que pertencia em partes ao nosso povo, em grande parte aos descendentes dos colonos, chamávamos isso de A Tempestade Branca quando as invasões ainda eram recentes. Awan, o pai de meu avô, foi separado da família e obrigado a trabalhar nas lavouras, tirado por muitos anos de sua terra natal, e cresceu curvando-se aos brancos, renegando a própria linhagem e temendo o poder que seus carcereiros tinham sobre ele. Desde criança, meu avô contava, o pai dele aprendeu a ajoelhar-se perante o Deus dos homens brancos, aprendeu a reconhecer a Cruz e a temê-la. Ele também conheceu vários outros deuses, deuses que foram homens enquanto estiveram na Terra, mas que fizeram milagres e fizeram a travessia para tornarem-se deuses. Ele aprendeu os seus nomes, carregou os seus nomes e venerou cada um deles. Após muitos anos longe, voltou para a sua terra natal, embora não mais a reconhecesse como tal. Ele trabalhou em prol dos homens brancos, em prol da religião deles, dos deuses deles. Lutou contra o seu próprio povo e fez as mesmas piadas que faziam para rir de seu próprio povo, ele as repetia e não as sentia, nunca julgou-se, apesar de tanto se parecer com um de nós – Cyntia deslizou a palma da mão sobre seu rosto, tocando a pele com a ponta dos dedos até o meio do peito. – Pelo interesse dos homens brancos, tomou para si as mesmas causas: tentou tomar de nós a terra que nos pertencia, que sempre nos pertenceu, a terra que também pertencia a ele. E foi lá, em nossa terra natal, nos arredores do Great Smoky, que ele conheceu Takayla, sua esposa. Ele se apaixonou por ela, mas seu coração ainda pertencia aos brancos, e graças a essa paixão doentia, traiu seu povo e amaldiçoou nossa família. A minha família”.
“Para saciar a fome dos homens brancos, Awan os ajudou a invadirem um dos vilarejos que ainda não era considerado reserva indígena. Expulsaram os últimos descendentes e com ajuda das autoridades locais mataram homens, velhos, estupraram mulheres e fizeram com as crianças o mesmo que fizeram com Awan na idade dele. Quando se deu conta de toda aquela barbaridade, o traidor obrigou Takayla a partir ao seu lado. Awan traiu seu povo e não teve coragem de assistir ao que fez e deu as costas ao sofrimento de seus iguais. Uma lua após o massacre, enquanto seu povo sofria em meio à Trilha das Lágrimas, Awan teve um sonho: nele, O Criador, Ouga, lamentava pela traição e revelava um vale inteiro de Cedros derrubados pelos homens que ele ajudou. Junto com cada um destes Cedros, um milhar de almas em agonia: crianças, homens, mulheres e velhos, todos gritavam o nome de Awan. Ao final do sonho, o grande Ouga amaldiçoava o sangue de Awan, ao dizer que, do mesmo modo que uma árvore doente, seus frutos não cresceriam e suas raízes jamais se alongariam em solo fértil”.
“Takayla já estava grávida, mas perdeu o bebê durante o parto. Outros dois bebês morreram. O quarto foi meu avô, e por fim sua irmã, ambos nasceram saudáveis. Mas a menina viveu talvez mais que os dez anos de idade: uma doença enfraqueceu seus ossos que se quebravam com facilidade. Meu avô viveu até tenra idade, mas no fim também foi atingido por uma doença que atingiu os músculos das pernas e de um braço. Dois de seus seis filhos morreram no nascimento, uma quando jovem e outro já velho – era meu pai. Apenas uma delas ainda está viva, porém deformada como meu avô. A história de Awan é passada de geração a geração, no início com temor, mas de meu pai até nós, como uma lei”.
“Quando engravidei, a maldição de minha família não fugia de mim: eu sempre pensava nela, porém Tala nasceu saudável. Desde a geração de meu pai, não morávamos mais na Carolina do Norte e com o tempo até eu me afastei dos hábitos de minha família. Quando soube da morte de meu pai e herdei o Paradise, as coisas mudaram. Tala tinha três anos de idade quando os primeiros sintomas surgiram: primeiro, várias debilidades nas mãos e nos pés, em seguida os mesmos de meu pai, os músculos das coxas pararam de funcionar gradativamente, atrofiaram em poucos meses, e por fim o coração, a bexiga e os músculos da face. Os médicos deram uma centena de nomes para a doença... ou para as doenças... sempre surgiam novos nomes, porém nunca uma solução, nunca um diagnóstico claro”.       
“Desesperada e desacreditada da medicina dos homens e suas explicações lógicas que davam à minha filha apenas contagens regressivas, dei ouvidos às histórias que havia esquecido e voltei para a terra de meus ancestrais. Foi lá que soube o quanto a maldição de Ouga era real. No entanto, os descendentes do meu povo, do meu próprio povo, não quiseram participar do ritual. Eles consideravam a mim, a meu pai, aos meus tios e ao meu avô como traidores, pois tínhamos sangue de traidor”.
“Uma velha Cherokee veio a mim e disse que não poderia ajudar, já que Ouga deveria ser tão temido quanto respeitado. Por outro lado, ela me disse aonde buscar ajuda, e foi como cheguei a Bakersfield e conheci a família Morgenstern. Foi como conheci sua mãe, menino”.
Ian esmagou o que sobrara de mais um cigarro. Na carteira, haviam apenas três sobreviventes, mas ele hesitou e por fim decidiu que não acenderia. Não ainda. Também havia naquele rosto uma expressão de tão leve satisfação, satisfação singela e verdadeira, porém frágil, que se por acaso alguém piscasse os olhos, seria bem capaz de perdê-la e sequer presenciá-la.
E perguntou:
– O que ela fez?
– Ela se propôs a fazer o ritual e não cobrou nada por ele.
Hank não perdeu a oportunidade:
– Vê se aprende, Ian.
Ela não cobrou – Cyntia elevou o tom de voz, exigindo atenção. – Ela fez o ritual nos fundos do hospital em que Tala esteve internada. Ele exigia a minha presença, por isso sua mãe ouviu tanto quanto eu quando a voz de Ouga soou em nossos ouvidos. Ele não estava lá, mas ao mesmo tempo estava: falando conosco, chamando-me de sangue de Awan. Rebecca prosseguiu com os passos necessários, todos os elementos que exigiam do ritual estavam ali: as palavras, a velha língua Cherokee, o sangue do traidor e um ancestral vivo da vítima... eu. A princípio, sua mãe pediu clemência e minha absolvição ao Criador, disse que minha filha e eu não tínhamos nenhuma ligação com Awan, exceto o sangue, e que os pecados de Awan pertenciam somente ao próprio Awan, mas Ele não a escutou, ele a ignorou, ignorou-a porque não possuía nosso sangue, ignorou-a porque era uma mulher branca como os homens que arrancaram nossos ancestrais da terra, apesar de obedecê-la graças somente às amarras ritualísticas que ligavam um ao outro. Então... – a velha Cherokee tomou o último trago da cerveja que esvaziou de vez sua caneca. Balançou-a pela alça, entre os dedos. – Então eu disse ao grande Deus Criador, a Ouga, que Rebecca possuía sangue branco, porém não possuía sangue de meus ancestrais, e que embora eu tivesse em mim o sangue de Awan, este sangue – ela indicou o próprio pulso – ele ainda pertencia à nossa terra, ainda pertencia a mim, ao meu pai, ao meu avô e aos meus bisavós, que pertencia tanto a Awan quanto a Takayla, tanto aos pais deles quanto aos pais antes deles. Eu falei que meu sangue pertencia a Ouga, pois eu também era uma de suas filhas.
“Você já arrancou alguma coisa de um Deus, menino? E você, Henry? Vocês já obtiveram qualquer coisa do deus de vocês, por menor que seja? Pois eu sim: eu recebi d'O Grande Ouga cinco segundos de silêncio, seguidos por outros cinco de hesitação. A voz dele soou em meus ouvidos novamente e sussurrou-me que pouparia a vida de Tala pela minha e que ali acabaria a maldição de Awan. E eu estive a um passo de aceitar. Ao contrário do Grande Criador, eu não hesitei, porém Rebecca foi mais rápida e fez a proposta final”.
– “Dê aos meus filhos a maldição de Awan e de meus ancestrais brancos”, foi o que sua mãe disse, menino. “Dê aos meus filhos o que a mim pertence por direito, deixe Cyntia e Tala em paz. Encerre a maldição”. Então eu juro pela minha vida que Ouga olhou para ela, apesar de não enxergarmos nada, nunca enxergamos nada além de ouvirmos aquela voz que não existia em lugar algum a não ser em nossas cabeças. Ele olhou, Ian. Eu juro que olhou para sua mãe e então disse: “eu aceito”.
– Mas houve uma condição – Hank deixou escapar devagar.
– Sempre há... – Dessa vez, Cyntia disse isso com felicidade e com lágrimas escorrendo pelas maçãs do rosto. – Ouga precisava de um galho de Cedro, foi o que ele me disse. Que aos filhos legítimos da mulher branca daria a maldição, mas que de mim levaria apenas um dos galhos – ela indicou o lado esquerdo da perna em que mancava com orgulho. – E eu aceitei de bom grado. Rebecca sabia que não obteríamos mais do que aquilo, e foi o que tivemos. A palavra de um deus nunca muda, e ao fim do ritual, enquanto o coração de Tala batia com a força novamente e as doenças neurológicas desapareciam, eu perdi o equilíbrio e desabei no chão. Rebecca me levou à emergência e no dia seguinte minha filha abria os olhos. Em uma semana, ela já mexia os pés e os bracinhos, e na mesma semana eu perdia uma perna. Fiquei no hospital durante um mês, comemorei o natal em cima de uma cama com minha filha ao lado, viva e saudável. Sua mãe nunca saiu de nosso lado, menino. Nunca.
A carteira de cigarros passou de uma mão para a outra, mas Ian os reservava para minutos à frente enquanto não desviou a atenção de Cyntia. Por fim, ela disse:
– Naquele natal, Rebecca não parou de falar sobre você, menino. Eu a chamei de louca e estive a um passo de morrer quando soube que ela tinha um filho, mas...
– Mas ela era mais esperta – Ian riu, vitorioso. – Apenas os descendentes diretos de Rebecca sofreriam com a maldição.
– E ela nunca pôde ter um – Hank deitou a cabeça para trás numa longa gargalhada, finalmente (e novamente, como nos natais anteriores) vendo graça em uma piada que pareceu atormentá-lo por muitos anos antes de escutar aquela história indígena.
Ian acompanhou a gargalhada de Hank e logo Cyntia também o fez. Se a velha Cherokee enxergava o pedaço de prótese que possuía no lugar da perna com tanto orgulho e como marcas inegáveis de sobrevivência dela e da filha, então o velho Hank também o faria.
Assim como Ian.





V
Five hundred miles



Ele levantou para beijar a proprietária do Paradise na cabeça e apertar o ombro do amigo, que na mesma proporção em que Rebecca esteve como mãe, sempre esteve por ali como um pai. Recolheu as canecas e outra vez foi à torneira, entretanto não trouxe consigo nem duas nem três, e sim quatro delas cheias de cerveja. Ofereceu uma a Cyntia, uma a Hank, uma à posição onde esteve sentado e pôs outra diante da árvore de natal, que como todos ali, com galhos quebrados e cheios de marcas, ainda ousava piscar uma vez mais. Ano após ano.
O filho de Rebecca não se sentou, ao invés disso foi até a jukebox e retirou o que quer que houvesse de trocados nos bolsos. Não teve dúvida alguma sobre qual música escolher, pois assim que pôs as moedas e respirou relaxado, a voz de Mary tomou conta do Paradise, seguida pelas vozes de Peter e de Paul.
 If you miss the train I'm on, you will know that I am gone,
You can hear the whistle blow a hundred miles...
– Vocês sabem qual a distância de Bakersfield até aquela cabana no Arizona? – Ian os questionou, ainda absorto diante da jukebox.
Ambos negaram.
– Umas 500 milhas – ele respondeu sem esperar que tivessem a resposta gravada.  Voltou ao seu lugar.
Ele retirou a carteira do bolso de trás, que trazia um bocado de dinheiro e uma foto que estava surrada, mas perfeitamente dobrada e da qual ele esticou com demasiado zelo. Abriu a fotografia e a colocou ao lado da caneca cheia de cerveja, olhando para os três. Nela, uma mulher de cabelos longos, ondulados e de um castanho claro contrastando com um loiro refletido pela luz sorria de maneira não muito amigável para a foto, um pouco carrancuda, sim, mas sorria.

Lord, I'm one, lord, I'm two, lord, I'm three, lord, I'm four
Lord, I'm 500 miles from my home…

Ian finalmente pegou um de seus últimos cigarros e o acendeu. Os três seguraram suas canecas e ergueram no ar, uma espécie distorcida e moderna de morituri te salutant.
– De quem é a vez agora?
Olharam todos em direção à foto iluminada pelas luzes natalinas e se calaram, como se prestes a ouvirem a próxima história. E o Paradise só não ficou mais silencioso porque Peter, Paul e Mary continuavam a cantar:

Five hundred miles, five hundred miles, five hundred miles
Lord, I’m five hundred miles from my home…











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