Na espessa e vasta floresta, o verde escuro do topo das
árvores caía sobre a noite como um véu negro. Em suma silêncio, apenas o som de
insetos e aves noturnos ecoava pela imensidão natural. A região possuía
diversos declives, em alguns pontos as depressões eram extensas, a duzentos ou
mais metros em meio às árvores espaçadas e à relva rala, enquanto em outras a
inclinação era íngreme, cinquenta ou oitenta metros acima, garantindo a errônea
impressão de que dali era possível tocar as milhares de estrelas que iluminavam
o céu ou o topo das árvores que farfalhavam com o vento gélido correndo
floresta adentro no último dia do ano.
Entre as árvores, Annabelle Barnes segurava uma garrafa
térmica de café fumegante nas mãos. Em intervalos de dez minutos, ela enchia a
tampa do objeto que servia de xícara improvisada e sorvia o café com profunda
calma, por vezes queimando a língua, porém jamais reclamando. Levava mais tempo
esfriando o café do que necessariamente para degustá-lo. Devido ao frio que a
abraçava de maneira não incômoda e acolhedora, vestia três camadas de roupa e
um par de luvas nas mãos, retirando-o apenas para que a fumaça dele esquentasse
as palmas e devolvesse a elas a sensação de calor e de vida.
A geografia do lugar em termos de vegetação assemelhava-se
muito com o restante da maior área do território búlgaro, embora aquela em que
Annabelle estivesse pertencesse à região norte da Grécia, território que correspondia
ao oriente da antiga Macedônia e Trácia, locais em que o ritual prestes a
ocorrer também era realizado há séculos, e onde, apesar do tempo e do
decorrente enfraquecimento da tradição de alguns sacerdotes, jamais fora
esquecido.
Apesar da baixa temperatura e da total solidão na floresta,
Annabelle esteve o tempo inteiro confortável enquanto tentava contar as
estrelas que salpicavam o céu acima das árvores. Seus olhos de profundas
piscinas azul-cristalinas não desprendiam-se da maravilha que enxergava nem da
calmaria que experimentava, e embora muito desejasse estar perto de seus pais
ou dos amigos a quem tanto estimava, nenhum traço de arrependimento ou tristeza
a invadia por estar ali: sentada no chão ao pé de uma árvore, a mochila ao lado
e os joelhos dobrados. Quando não sorvia a cafeína, abraçava as pernas e as
esquentava, cantarolando quaisquer canções (folclóricas ou não, rocks antigos
ou não) que viessem em sua mente como forma de preencher o tempo de espera.
Aquele era o seu segundo ritual desde que aceitara a tarefa
de bom grado das mãos de seu falecido amigo, Leonel. A primeira vez em que seus
olhos testemunharam a passagem do rito, o último descendente dos Cattaeno já
não era um homem em seu completo vigor: idoso, beirando os oitenta anos e
ciente de que o relógio em pouco tempo anunciaria sua partida, ele caminhou
lentamente pelas ruas do bairro de Trastevere, na Itália. Naquele ano (agora
tantos atrás), Janus realizou sua última caminhada ao lado do velho homem
devoto e fiel sacerdote, ou o último que sobrou para desempenhar longínqua função
sacerdotal. À época Annabelle não sabia,
talvez apenas o próprio Leonel já desconfiasse: aqueles seriam os
últimos passos, o último exercício de Leo Cattaeno como guia e amigo zeloso da divindade.
O bairro de Trastevere ficava no Janículo (o Gianicolo), uma das principais colinas
existentes na cidade, embora não uma das sete Colli das quais dizia-se ter sido fundada Roma. Apesar disso, o
nome tinha como origem os primeiros rituais de passagem oferecidos ao deus da
dualidade, da transição e da mudança, Janus, que representava o ato de olhar
para o futuro e para o passado, comumente responsável pelo ato de atravessar de
um ano velho para um ano novo, como se
estivesse de fato atravessando no tempo, atravessando uma porta.
Reverenciado pelos antigos romanos, Janus anunciava também
tempos de paz ou tempos de guerra, e não possuía caráter malevolente ou
diretamente pessoal com homens, culturas ou quaisquer pensamentos específicos:
em suma, era apenas um deus imparcial que fazia travessias e trazia consigo alertas
de bons tempos ou de maus agouros.
Na ocasião, anos atrás, Annabelle seguiu atrás de Leonel
que em momento algum permitiu que Janus soltasse de seu ombro esquerdo,
enquanto o guiava e tocava de forma lenta e fraca o batuque entre o triângulo.
Pela porta que era necessária, Leo guiou o deus que a abriu, em seguida
serpentearam pelas ruas de Trastevere ladeadas por muros arborizados e verdes, além
de casarões, cortiços e estabelecimentos alaranjados de telhas também
alaranjadas e vibrantes, todos serpenteados por ruelas estreitas que subiam e
desciam ao longo do bairro e do bairro vizinho, Monteverde, ambos fazendo
fronteira com o território do Vaticano.
Assim como o amigo fizera tantas décadas antes, Annabelle
abraçara a tarefa com responsabilidade e empenho, pois desde a infância ao
escutar histórias de família, percebera que consciências maiores e quase
desconhecidas também regiam o mundo tanto quanto os próprios homens, entretanto
com muito mais cautela e carinho, mesmo que nem mesmo soubessem disso. Com Leonel Cattaeno, aprendeu e absorveu ensinamentos,
propôs-se a continuar seu trabalho e sucessivamente transmiti-lo a quem se
dispusesse, ou meramente a armazenar o conhecimento acerca do ritual para que os
descendentes da família Barnes ou os descendentes de amigos também zelassem por
ele. A ordem dos sacerdotes d’O Gianicolo
desaparecera há centenas de anos, mas seus ensinamentos e suas tradições, não. Annabelle
aprendera com Leo, e Leo com uma velha senhora camponesa dos vales da
Cordilheira do Rópode, que por sua vez descobriu antigos pergaminhos que
datavam da última travessia de Janus, quase duzentos anos antes.
O exercício do sacerdócio, em vias de fato, não morrera,
porém não era efetuado por homens que nasceram exclusivamente para tal tarefa – agora, há três gerações,
desempenhado por vigilantes anônimos, pessoas comuns que o faziam por um bem
maior tão pouco notado pelos leigos. Quando não realizado o ritual, Janus
caminhava a esmo por entre as décadas, séculos ou milênios, e isso trazia
longos períodos de conflitos entre os homens. Por outro lado, o ritual não
significava o impedimento de tragédias, apenas sua anunciação. Janus não as
causava nem as impedia, fazia apenas a travessia e, através dela, trazia consigo a mensagem: se abrisse uma porta, significaria tempos de guerra;
se mantivesse uma porta fechada, significaria tempos de paz entre os mortais. Assim
era feito na Roma Antiga, e por isso Janus não possuía a tarefa de punir os
homens ou de agraciá-los, ele tão somente atravessava portas, tão somente fazia
a travessia, deixando o velho para trás e anunciando o novo à frente. Não havia
caráter malévolo em Janus, não havia necessária dependência dos mortais, mas
desde que auxiliado em sua travessia, o deus servia como mensageiro, um arauto
do que estaria por vir.
Durante os quase oitenta anos de vida, Leonel Cattaeno realizara
quatro caminhadas, todas com Janus segurando em seu ombro, todas entrecortadas
por anos de aguardo. Por essa razão, ensinou a Annabelle a leitura dos sinais,
a interpretação dos presságios e a sabedoria de onde o deus romano faria então
sua próxima travessia. Anos atrás, quando presenciara o amigo italiano
conduzi-lo, Janus caminhou pelas ruas da Itália, local onde também eram
realizados os rituais na época do Império. Desta vez, a mulher conduzia seu segundo
ritual por conta própria, novamente na região das Cordilheiras do Ródope. O
deus levara pouco tempo para retornar desde então, e diziam as tradições que
quanto menor o intervalo de tempo em que Ele fazia a travessia, pior seriam os
anúncios do futuro. Em épocas de demasiada paz, Janus permanecia décadas sem
atravessar, alertando os mortais sobre poucas preocupações ou desastres
vindouros.
No entanto, como o ser humano jamais permanecia em estado
letárgico de pacificidade e tolerância, não houve vez sequer em que Janus demorasse
mais de cem anos para retornar à travessia – com afirmativa certeza, a
humanidade jamais conhecera tempo tão longo de harmonia, e talvez jamais conhecesse.
De um jeito de outro, enquanto pudesse, Annabelle estaria
disposta a continuar o que foi iniciado milênios atrás e honraria a memória do
velho amigo Leonel.
Ela encheu mais uma “xícara” de café e o aroma da cafeína
subiu por suas narinas. Permitiu-se pensar nas pessoas que amava, aquelas que
estiveram com ela, que partilharam lembranças e momentos, além daquelas que não
mais estavam por ali. Pensou não somente em Leo, como também no velho amigo Ian
e também em Robert – estivessem onde estivessem, vivos ou mortos, queridos ou malditos.
Ela sorveu um pouco do café. O vento frio da noite
atravessou a floresta, enveredou árvores, relva, morros e depressões até
encontrá-la. Quando a encontrou, o vento fez com que o triângulo pendurado ao
lado balançasse, e assim Annabelle olhou para o relógio no bolso do casaco
marcando mais de duas horas da madrugada. Àquela altura, na aldeia mais próxima
dali, a mais de quarenta quilômetros de distância, os aldeões já comemoravam a
chegada do novo ano. Nenhum deles conhecia a velha tradição.
Ann levantou-se e guardou a garrafa térmica na mochila,
passou as alças pelos ombros e trouxe em uma das mãos o triângulo feito de
prata e o batuque na outra.
O vento soprou uma vez mais e então ela o viu. A poucos
metros dali, na posição em que se iniciava a depressão, e de costas para a
direção da cabana, um homem de longa túnica surrada e rasgada, cobrindo a
cabeça e descalço, estava de pé, olhando para o escuro da floresta. Annabelle
sorriu vagarosamente e batucou no triângulo, fazendo com que o agudo do
instrumento ressoasse.
Os animais ficaram em silêncio e o vento parou de soprar.
Ela caminhou até o velho Janus, sempre ressoando o som dos acordes para indicar
sua própria presença, mostrando que estava ali
para ajudá-lo a atravessar. Parou diante dele, visualizando atrás do homem
encapuzado a longa depressão que descia fundo e em seguida a cabana iluminada
ao longe, metros acima. Ao longo do caminho que percorreriam, haviam tochas
acesas de ambos os lados. Ela tocou uma vez mais o triângulo e o homem ergueu o
rosto na altura dos olhos de Ann, no entanto não a olhou diretamente. Assim
como ela, ele também mirava a atenção por sobre os ombros da mulher, para muito
além da escuridão, para muito além de trás dela, como alguém que está fadado
tão somente a enxergar o passado, o tempo
transcorrido.
– Exoptatus ades
– ela o recepcionou.
O deus então acenou para ela com um leve movimento de
cabeça, aparentemente sucinto e cordial, mas de extrema relevância vindo de uma
divindade tão ancestral. Na Roma Antiga, os romanos tratavam as entidades
divinas a partir de dois termos: deus, tal
qual conhecido hoje, e numem, que não
possui atualmente significado correspondente nas línguas neolatinas. O termo numem foi originado de uma raiz que
significava um respeitoso sinal ou gesto de aquiescência, portanto, “um aceno
de cabeça”. A partir desse significado, derivavam outros, ampla e
inconscientemente utilizados para aquelas ou outras entidades, tais como
“vontade divina” ou “comando divino”. Graças a isso, era possível compreender a
origem do termo numem para os
romanos, que vinha da raiz Dv-,
indicando que o gesto de respeito não partia primeiramente dos mortais para os
deuses, não de fora para dentro, mas de dentro para fora: do objeto louvado
para seus adoradores.
O rosto do deus-homem em nada tinha de anormal ao ser
iluminado pelas tochas e pelas estrelas: sob o capuz, apenas um ancião barbudo,
de pelos crespos e grisalhos, rosto arredondado envolto em sombras e com olhos
normais, sem cores belas, apenas pretos, envelhecidos e rodeados de rugas. Ele
repousou ambas as mãos sobre os ombros de Annabelle e após outro batuque no
triângulo, Janus começou a andar para trás. Ela o acompanhou com a mesma velocidade,
um ritual calmo e pacífico, de passos lentos, em nada apressados, sempre tão
severamente cautelosos que mal pareciam se deslocar. Embora fosse um deus,
Janus mais parecia um velho com dificuldades para andar, aparentemente
necessitando do auxílio da mulher e seguindo os passos dela. A cada passo, o
triângulo nas mãos de Annabelle seguia ressoando pela floresta uma antiga
melodia reproduzida nos territórios da Grécia: o κάλαντα,
ou Kalandra. A canção ainda era cantada em algumas regiões da Grécia por grupos
de crianças no último dia do ano, com o objetivo de anunciar o nascimento de
Jesus Cristo. Por outro lado, um de seus significados (pelo menos ali, durante
o ritual do deus romano) era o de conduzir os passos de Janus durante sua
travessia, deixando o ano percorrido para trás e iniciando a caminhada para o
novo ano em nascimento.
O significado de anunciação referente ao nascimento de algo
ou de alguém, nesse sentido, ainda era mantido.
Através do estreito e singelo caminho entre as tochas
fincadas no chão, Janus prosseguiu seu caminho de costas, segurando sempre em
Annabelle enquanto ela tocava a versão lenta do Kalandra. Como se conduzisse um ente querido, em dados momentos ela
arriscava uma expressão de deleite, satisfeita por saber que tão nobre e zelosa
criatura confiava nela, um vínculo que alguns humanos jamais manteriam durante
toda uma existência.
E assim eles desceram a depressão: a moça o guiando ou o
impedindo de tropeçar em algum arbusto traiçoeiro ou obstáculo mais agressivo
no meio da caminhada, e a atenção de Janus sempre direcionada por sobre os
ombros de Annabelle, parecendo enxergar algo que derradeiramente estaria atrás
dela, mas que Ann jamais conseguiria. O que viam aqueles olhos? O que
testemunharam, ao longo de sua trajetória divina? E como faziam isso?
Quando a depressão diminuiu e deu lugar à inclinação subindo
em direção às estrelas, Janus caminhou com mais dificuldades, com mais esforço
para prender as plantas dos pés descalços no chão e manter o equilíbrio. Nesse
momento, foi Annabelle quem proporcionou o apoio do qual ele necessitaria, pois
graças à barreira que exercia contra a gravidade e o declive, o deus romano
pôde chegar ao ponto mais alto da floresta sem passar por quaisquer
eventualidades. O percurso levou mais de trinta minutos e o suor de Ann corria
pelo meio das costas e despencava quase como cachoeiras pelas laterais do
pescoço ou têmporas, mas manteve-se firme, sem vacilar, sem reclamar, batendo o
pequeno bastão entre as hastes de prata e ecoando a melodia pela floresta.
Finalmente, chegaram à cabana que erguia-se solitária no meio
da floresta. Dali em diante, as tochas seguiam por mais quatro pares, um diante
do outro, e então terminavam no escuro da floresta da mesma forma que haviam
começado centenas de metros atrás. Entretanto, Janus não mais prosseguiu, pela
primeira vez ele girou sobre os pés descalços no chão e foi até a porta da
cabana, os olhos ainda tão compenetrados em visão intocável quanto antes. Annabelle
seguiu ao seu lado e aguardou pelas ações do deus. A porta estava entreaberta,
exatamente na mais mediana posição que deveria permanecer: nem tão aberta nem
tão fechada. Janus, então, também conhecido pelos antigos romanos como um nomina do lar e guardião das portas,
estendeu a mão que saiu de dentro da longa túnica que cobria seus braços e
revelou uma pele igualmente idosa, engelhada. Tocou a maçaneta antiga e
desgastada, segurou-a por um momento e então a empurrou, deixando a porta
escancarada e revelando um interior abandonado, cheio de plantas rasteiras e
paredes quebradas. O sinal, lamentou silenciosamente Annabelle, significava que
tempos de intensa guerra e conturbados conflitos atingiriam os mortais, fossem
de maneira local, particular, fossem de maneira globalizada.
Mais conflitos à
frente... Ann pensou com um triste pesar, pois
mantinha consigo uma leve e quase boba esperança de que tempos de harmonia
viriam. Mas as portas estarão abertas e
por elas somente os maus agouros chegarão a nós. E como se isso pouco
significasse a Janus, o deus romano não deu as costas à porta, mas já não mais
passou a olhá-la como um destino, um objetivo ou um lugar a se chegar, não mais
uma trajetória, pois assim como foi até ela, voltou dela, porém de costas, da
mesma maneira que se permitiu conduzir por Annabelle. Novamente, ela o auxiliou
quando as mãos dele voltaram aos ombros, e ambos puseram-se outra vez no
caminho ladeado de tochas.
Assim, lentamente cruzaram as últimas tochas até que apenas
outra vastidão escura floresta adentro os encarasse. Janus retirou as mãos dos
ombros de Annabelle, levou-as ao capuz que cobria parte de sua cabeça e o
retirou, fazendo com que caísse para trás. Somente neste momento, o deus cruzou
seu olhar pelo de Ann, somente neste a troca de olhares direta era permitida.
Ele abaixou a cabeça e virou de costas para a mulher que o auxiliara durante o
caminho, e quando fez isso, Annabelle encarou uma cabeça protuberante, disforme
e distorcida, deficiente: um crânio anômalo com uma espécie de deformidade
congênita.
De repente, a parte de trás da cabeça daquele homem não era
somente uma nuca ou um pescoço, mas rosto – o mesmo rosto idoso e barbudo que
estivera diante de Ann ao longo do caminho. Desta vez, os olhos estavam
abertos, porém não com a mesma expressão de outrora, pois pareciam enxergar
algo que já não exigia tanta atenção, que já não exigia tanto comprometimento,
amarras nem apegos. A face velha, a velha face, estava voltada para o ano velho,
para o velho ano.
Annabelle deu um passo à frente, colocando-se ao lado dele, e
então finalmente puderam trocar olhares, mas agora ela via o rosto da frente na
cabeça de Janus: o de um jovem careca, de traços limpos e lisos, não enrugados,
sem barba, sem quaisquer pesos sob ou nos olhos. Era a primeira vez que Ann
fitaria o novo rosto de Janus, o lado com a face nova, o lado que encarava o
novo ano e o futuro à frente. Da próxima vez que Janus desejasse fazer a
próxima travessia, e se caso ela ainda estivesse viva, então trocaria olhar com
aquele rosto uma vez mais, porém ele não mais seria jovem, e sim velho, idoso e
engelhado, olhando apenas para o tempo corrido, o tempo passado.
Pois assim era conhecido o deus Janus: o porteiro do céu, aquele que abre o ano e
aquele lembrado pelo nome de seu primeiro mês, Janeiro, divindade guardiã das
portas e representado, sempre, por duas cabeças – pois todas as portas voltam-se
para ambos os lados.
Ele então fechou os olhos de sua face velha, a face do
caminho passado, do caminho transcorrido, e levantou o capuz da túnica que
protegia a cabeça. Sem a ajuda de Annabelle, e com um único aceno para ela como
um típico numem faria, Janus
despediu-se e mergulhou na escuridão da floresta em direção ao novo ano ou aos
anos novos – infelizmente, de turbulência – que estariam por vir.
Pela última vez, Ann batucou o bastão entre as hastes do
triângulo, o som ecoou pela floresta e o deus desapareceu. Atrás dela, apenas
as chamas nas tochas ardiam, e acima, apenas as estrelas a iluminavam. A mulher
não sabia o que o tempo traria dali em diante, mas se estivesse no mínimo
preparada para eventuais desastres ou agradáveis surpresas, então tudo ficaria
bem.
Ela guardou o instrumento musical na mochila e de lá retirou
a garrafa de café. Encheu uma porção para si, manteve a porta da cabana escancarada,
da exata forma como Janus a deixara e voltou pelo caminho por onde veio.
Lá em cima, no topo das árvores, apenas o vento do novo ano
chacoalhava as folhas.
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