13 de setembro de 2020

Só pra ti


 


And I will open my heart

And I will, oh, only for you

 

(Only for you – Heartless Bastards)

 

 

Os olhos de Catarina são canção que encontram o insosso Marcel aos domingos e às terças. Eles fazem parte de uma playlist particular, espremidos entre dezenas de outras canções. Todas de mínima importância, não passam de meras antecipações para a sua chegada ou de melodias posteriores à sua vinda.

Sem que possa repetir ou retroceder para esses olhos-canção ou colocar a playlist em modo aleatório, o sujeito está fadado a esperá-la acabar, a fim de aguardar o momento em que os olhos-canção de Catarina tocarão novamente. A ordem em que eles tocam seus ouvidos, tocam seus lábios e tocam sua vida é determinada somente por forças maiores que ele: a cabal maestria de sádicos deuses ou de um impronunciável outro nome, de outro. Sem que possa acelerar as banais canções que deixam os olhos-canção de Catarina num entremeio tão aguardado, a melodia que Marcel tanto anseia – leia-se o ansiar com o mais grotesco dos advérbios de modo para desesperado – toca somente nesta precisa ordem: aos domingos e às terças.

Catarina assim se aproxima. Concede a ele rastros e minúcias antecipadas, concede a ele angústias posteriores. No entremeio das terças e dos domingos são dias piores: longos e arrastados, braços compridos que se estendem por horas e por dias e pelas pequenas efemeridades de que é feita a insossa vida de Marcel. A mão, ao fim do percurso, são os domingos. As pontas dos dedos seriam as terças, separadas por uma distância bem menor e bem menos desesperada que lhe são as segundas-feiras. Nessas pontas de dedos ele sente o aroma do trabalho, do suor do dia-a-dia e das longas vinte e quatro horas que dela esteve afastado, das longas vinte e quatro horas que foi obrigado a dela estar recluso, escondido e proibido.

Catarina assim se aproxima. São imensos os olhos dela. De fato, nem grandes são, tornam-se gigantes nestas linhas por conta do abissal castanho-escuro de que são feitos. Bailam finalmente ao enlace do pobre sujeito. Enlaçam-no. Enlaçam-no com dedos, braços e fatos inéditos: porque o insosso Marcel não se sente assim, enlaçado, desde uma ou mais de uma década. Ele não escutava olhos-canções desse tipo há quase uma vida. Quem ele foi antes de Catarina? Quanto tempo pôde sobreviver a olhos-banais, a nomes-banais, a cheiros-banais ou a olhos-esquecíveis de uma noite ou duas? Quantas outras canções que não eram canções, só ecos, passaram por ali antes que ele escutasse os olhos-canção de Catarina e que nele não repousaram como repousam os olhos-canção de Catarina neste domingo?

Ela assim se aproxima. Tira as roupas, abre um sorriso, corre para o banho. Tagarela sobre seus dias, sobre sua rotina, sobre seus saltos enérgicos nas questões que ele não esteve verdadeiramente saltando nas últimas décadas. Acolhe-o com seus achismos, com seus punhos cerrados ante um mundo frouxo. Ele a prepara a refeição principal da noite: ovo frito temperado, arroz, farinha e um imenso copo gelado d’água. É tudo o que eu amo, ela diz ao sentar-se na mesa. Em seguida, sussurra que sentiu a falta dele.

Catarina assim janta. O melhor prato do mundo para um domingo à noite, acrescenta com aquele sorriso tímido que ainda não se cansou de ser tímido, como se não se conhecessem há todo este tempo de playlists iniciadas e findadas. Mastiga como um animal esfomeado, tagarela por mais uma infinidade de minutos e cobra que o insosso Marcel diga-lhe alguma coisa, que não fique ali calado feito um panaca-idiota. Panaca-idiota, assim ela diz, tu pareces um panaca-idiota desse jeito todo caladão.

Catarina assim sorri. Larga os pratos na pia – detalhes: irão lavá-los depois. Os olhos-canção dela continuam tocando a letra secreta que ambos decoraram de cor. Atravessam corredores, sobem as escadas, sobem níveis e sobem ombros. Despem-se no domingo à noite. Ignoram os versos tristes e também todas as prosas de mesmo cunho – como esta, que assim seja e esteja sabido.

Ela assim gira ao redor de Marcel. E em volta da cabeça dele também giram as mentiras sobre dias longínquos de playlists que enfim permitirão o modo aleatório, o retroceder e o repetir dos mesmos olhos-canção de Catarina – os únicos que importam –, de novo e de novo. As mentiras são ditas. Mentiras beijadas, não verbalizadas. A cada beijo, uma promessa, a cada promessa, a constatação da mentira que são aqueles olhos-canção.

E assim Marcel deseja escutá-la. Anseia ouvi-la antes que o domingo se torne segunda e a segunda se torne quarta e a quarta se torne quinta e a quinta se transforme em eternos dias até que se finde o sábado.

E assim Marcel deseja estendê-la, prorrogá-la, reconhecê-la nas núbias nuances de sua nudez, nas numerosas núpcias da alma. Porque domingos e terças, embora pertençam aos dois, mais dele do que dela, carregam consigo o significado desta prosa triste, daqueles versos carrascos que são os olhos-canção de Catarina.   

E assim ela se levanta da cama. Nestas linhas já é sabido, por frenética, proposital e cansativa repetição, que os olhos de Catarina são canção, porém há outra que ela pôs para tocar no autofalante do celular. Os lábios dela são o choro de uma lira censurada ao cantarem para ele que oh, seus olhos cantam uma música pra mim e eu gostaria de dançar ao som dela, oh, de verdade, sim.

E assim Catarina estende os braços. A luz da noite entra pelas janelas e recai sobre eles com a cautela que Marcel não possui, não aos domingos nem às terças. E assim ele toca as mãos dela, atende ao chamado que durante cinco dias semanais tanto clama calado, caído na abstinência de silêncio que exigem os vícios proibidos. Finalmente tem para si o aperto daquelas mãos, o calor daqueles longínquos braços inalcançáveis.

E assim eles dançam.

Dançam antes que este domingo em segunda se transforme e ao impronunciável outro nome, ao outro a quem de fato pertencem nas claras luzes e praças do mundo, os olhos-canção de Catarina, devotos, tenham de retornar. Olhos-canção que ao impronunciável outro nome, nas segundas e nas quartas e nas quintas e nos eternos dias que findam nos sábados, o embalarão, amorosos, ternos, fiéis, porque a ele de fato pertencem diante de Deus, diante dos sagrados votos e diante de carrasco mundo.

É assim que eles dançam.

Embebidos por promessas.

Salpicados por delírios.

– Quando? – O insosso Marcel pergunta. O corpo rente ao dela, os anseios não sanados e os vícios duplicados. – Quando eu vou ser teu?

– Logo. Em breve – Catarina responde como bem já respondeu em tantos outros domingos e em tantas outras terças. – Só mais um pouco. Só mais um pouquinho.

E assim Catarina mente, de novo outra vez.

E assim o insosso Marcel com ela continua sua dança. Possui nas mangas um naipe de questionamentos, um sem-número de cobranças que bem poderiam ser abusivas, caso não estivessem idosas, calcificadas e centenárias. Porém nunca foram feitas, não sabemos se por covardia, se por devoção ou se por um estranho senso deturpado de moralidade. O insosso Marcel se manterá firme, corroído e corroendo-se por dentro, querendo gritar ao mundo, delirando estampar ao público dedos entrelaçados, bem como as palavras proferidas no escuro daquele quarto aos domingos e às terças. Permanecerá sólido, inatingível, solícito e compreensível,

Pois embora o mundo desconheça que Marcel e Catarina dançam juntos aos domingos e às terças, que não seja suspeito que os olhos-canção de Catarina amem Marcel durante o velar dos olhos de um Argos e ninguém mais que não esteja passeando ocasionalmente por estas fictícias linhas (esta mera criação passageira) vislumbre o que sente e o que deseja o insosso Marcel, ainda assim, resiliente e guarnecido na promessa de Catarina, ele estará.

E todas as helênicas musas haverão de saber.

Erato e Calíope,

Polimnia e Terpsícore,

Melpômene e Euterpe,

sobretudo Euterpe!

Todas elas, cada uma delas haverá de saber que naquele quarto, no domingo à noite que pertence aos dois, mais a Marcel do que a Catarina, eles dançam uma canção.

Marcel dança os olhos-canção de Catarina.

 – E só pra ti eu danço – diz ele, o insosso Marcel, mergulhado em palavras que descobrirá serem mentiras de uma maneira muito triste e penosa, que nestas linhas nem cabe mencionar.

E só pra ti eu danço, ele haverá de dizer.