20 de abril de 2020

Os cinco anos depois




Fala-se muito sobre o isolamento social, mas alguns estudos já mencionam a necessidade de um isolamento que talvez leve de 18 a 24 meses, no mínimo. Teríamos, portanto, um isolamento de 2 anos, na melhor das hipóteses. Já quanto a descoberta, produção e teste de uma vacina? Só a vacina para o surto de Ebola em 2013 levou cinco anos até circular.
A nível de Brasil, vejo que esse quadro prolongado de isolamento social é praticamente impossível, se levarmos em conta nossa crescente cultura de anti-intelectualismo, sobretudo fortalecida pelo nosso governo de extrema-direita. Aliás, ainda podemos chamá-lo assim ou decididamente cabe uma alcunha pior, mais baixa e desumana?
Aí eu penso naquele filme que foi lançado ano passado e que arrebatou, de um jeito positivo, milhões de pessoas pelo mundo: Vingadores Ultimato.
Cito esse artigo do Omelete, escrito por Nicolaos Garófalo. Breve, mas incisivo no que quero dizer:

"A história não é exatamente nova. Um líder idealista, carismático e com um discurso chamativo atrai seguidores fanáticos, chega ao poder e passa a eliminar, um por um, aqueles que possam interferir em seus objetivos. Podia ser Alemanha, Brasil, União Soviética, Itália, Venezuela, mas é a Marvel".

Em uma boba análise pautada nesse filme do qual todos assistimos... (e, afinal, não é para isso que também serve a ficção?)... vale a pena considerar aqueles cinco anos em que a humanidade mergulha depois do estalar de dedos que nem os Maiores Heróis da Terra conseguiram reverter.
Alguns sobreviveram?
Sim, pô!
Sobreviveremos ao novo Coronavírus?
Ora, claro, tá ok?!!
Pelo menos como espécie. Não falo especificamente de mim... De você... Ou de quem amamos...
Do jeito que estamos, com amigos visitando amigos para assistirem juntos lives de famosos, com a pelada da galera no campinho do bairro ainda realizada, com festas de aniversário, casamentos e churrascos de fim de semana, e com essas mesmas pessoas andando por aí e afetando até aquelas próximas a elas que respeitam o isolamento, fica difícil alguns de nós sobrevivermos.
Há um caso na minha família de uma pessoa que por conta de uma particularidade de saúde (na verdade, por conta de quem ela é), quase nunca sai de casa. Bom, agora ela está na UTI com um quadro de piora que fica variando há dias. Uma das pessoas mais amáveis que você poderia conhecer. A Covid-19 já foi confirmada. E embora a maioria de lá não queira admitir ou arrume subterfúgios para culpar o hospital, já que a pessoa "saiu 'tão bem' de casa", nós sabemos o que houve, sabemos o porquê.
Quem sofre não são apenas aqueles que perpetuam a ignorância e fazem pouco caso dessa "CUEStão" mundial. Infelizmente, aqueles de nós que estão precavidos também sofrem, sofreram ou sofrerão com essa conduta estúpida pautada em defender bandeiras políticas e ideologias tão danosas que hoje comandam o Brasil.
A diferença é que nossos grandes cientistas não possuem nanotecnologias sobrehumanas, não são amigos de seres milenares, de deuses ou de super soldados, de escaladores de parede ou de magos poderosos. Nossos cientistas, no fim de tudo, talvez consigam um tratamento, quiçá uma vacina, mas as vidas que foram ceifadas jamais serão trazidas de volta – aqui a ficção difere da realidade. O sacrifício não será de duas vidas versus metade da população da Terra, porque já perdemos mais de duas vidas e estamos perdendo muito, muito mais que isso.
Mas são apenas números, certo? São apenas casos distantes noticiados nos jornais sobre pessoas que não conhecemos, não são rostos conhecidos, não são entes queridos que viveriam ainda por anos e anos ao nosso lado.
Enquanto ainda forem números, tá tranquilo. O churrascão no fim de semana continua, o baile funk com azamiga também, assim como a pelada com os brothers ou o aniversário do amigo em restaurante aglomerado. As palmas nos aniversários continuarão, os casamentos também (vide uma família aqui de Belém que esteve em um evento assim dias antes de perder dois de seus membros).
Tudo em perfeita ordem, porque números não importam, porque as secretarias de segurança divulgam assim em seus boletins:

"Homem, 47 anos, Belém"
ou
"Mulher, 31 anos, Santarém"
ou
"Homem, 15 anos, Ananindeua"
ou
"Mulher, 67 anos, São Paulo".

São números sem nome, sem quaisquer vínculos conosco. Inominados, não terão funerais, serão enterrados e nem saberemos onde, foram totalmente irrelevantes para o cotidiano maravilhoso e importantíssimo de nossas vidas. Quem liga?
Ah, isso porque nem falei em idosos. São só idosos, certo? Já estão fadados a um fim próximo, e igualmente não possuem rostos. Nem de longe são aqueles seres humanos que nos criaram durante a infância, que estiveram conosco, que nos levaram à escola e são todos cheios de orgulhos por quaisquer besteirinhas irrisórias que façamos – um conto nem tão bom assim, não dos melhores, publicado em uma antologia com gente mais talentosa; um acesso à universidade; a conquista de um estágio, de um emprego, de um diploma ou meramente qualquer coisa que você faça. São só idosos, certo? O fim de suas vidas está próximo mesmo...
Ah, e há também os outros. São só doentes crônicos, certo? Não importa a idade que possuem, são fracos e debilitados por natureza, quem mandou não levarem uma vida saudável? Quem mandou nascerem assim? Hein? Nas palavras de um rapaz que outro dia soltou um comentário por aí, nesta mesma rede social: "é a seleção natural! Quer reclamar? Reclama com a mãe-natureza". Sábio, muito sábio.
Ou aqueles sem doenças pré-existentes que apenas deram azar? Acontece! "Vão morrer alguns? Vão! Mas não pode deixar esse clima aí!".
São apenas números.
Quem liga, né?
Como estaremos do outro lado depois que tudo isso passar, com uma vacina e uma distribuição mundial que levará ainda mais tempo? Superaremos, como os mais otimistas insistem? Ou estaremos como aqueles personagens cinco anos após o estalar de dedos? Desolados, deprimidos e frustrados por termos perdido entes queridos não necessariamente para o vírus, mas para o negacionismo dele, para a ignorância, para o pouco caso, para o deboche, para a tirania e a réplica fanática de uma crença em só um indivíduo paranóico e desvairado? O que vai doer mais: a saudade, a injustiça ou a revolta?
Não teremos um segundo ou um terceiro estalar de dedos redentores. Nesse ponto, a ficção nos dá apenas uma pista metafórica do que ainda pode ser feito diante daqueles que ainda estão aqui. Mas, resta a pergunta: será feito?
Sinceramente, ando desacreditado – nas pessoas, na democracia, na liberdade, na "consciência coletiva" que de fato pouquíssimo existe, e quando existe, é fraca e impotente.
Aqueles "cinco anos depois" do filme vêm aí.
Boa sorte, amigos. E força a todos, força pra caralho.