27 de dezembro de 2020

Ariadne, a outra


 



Ariadne levou quarenta minutos para chegar em casa aquela noite. Estava sem paciência depois da última reunião com o Comitê de Insurreição. Expelia a fumaça do cigarro em bufadas. Caminhou um quarteirão inteiro do lado mais movimentado, parou diante do primeiro restaurante que encontrou e fingiu olhar o cartaz da calçada. Analisou os preços, dissimulou escolher. Não tinha fome. Fazia-o apenas para, vez ou outra, olhar para trás em direção à esquina do último quarteirão que cruzara, atenta a sujeitos meio sonsos ou a carros suspeitos.

Nada.

Faria isso pelas quadras seguintes. Decidiu que compraria alguma coisa, qualquer coisa, para quando a fome viesse na madrugada. Aproveitou a oportunidade, novamente, para averiguar o perímetro. Nada. Então rumou para casa, onde a vizinhança era menos comercial e mais soturna.

Cruzou o muro, fechou o portão. Ficou encolhida no escuro do pátio por algum tempo, alerta aos ruídos da rua. Nenhum carro. Nenhum passo. Nada de novo. Era um prédio de apartamentos amontoados, com roupas penduradas em janelas ou em cordas pelos corredores e gente pulando e arrastando móveis para a fúria dos moradores nos andares de baixo. Ela subiu pelas escadas até o quarto e último andar. O elevador estava quebrado, se é que um dia chegou a funcionar. Quando entrou, deparou-se com uma pilha descomunal de louças do dia anterior junto com as sobras do café da manhã. Ótimo. Na infância, quando morava com as irmãs e o irmão, o tio e a tia, o pai e a mãe, suas irmãs e ela lavavam uma quantidade imensurável de louças, sempre dando sossego aos lordes provedores que nada faziam e disso tanto se beneficiavam. Era tarefa injusta, mas assim eram certas injustiças: imortais e duráveis.

Agora, no entanto, não havia mais louças de outras pessoas nem injustiças parecidas dentro daquela casa. Os tios haviam partido da pior forma por causa das crenças de seus pais, sequer sabia aonde o irmão zanzava pelo mundo, enquanto as irmãs estavam, perdidas, em quaisquer das valas que Belém andava tão sedenta em te jogar.  

Pôs a comida sobre a mesa e retirou as roupas da rua. Vestiu apenas um short velho e rasgado. Começou a lavar as louças. Era um ato terapêutico, pelo menos com as suas próprias louças em sua própria morada, o resto seria exceção. Clareava a mente a cada esponjada, a cada xícara limpa e a cada talher minuciosamente esfregado. O tempo fluía como se não existisse: horas transformavam-se em minutos e minutos eram liberdade. Planejava o que faria a seguir, confabulava sobre os parágrafos que tão logo escreveria – fossem aqueles que o mundo veria, fossem aqueles que o mundo nem deveria ousar em saber que existiam, por ora.

Ideias novas surgiram. Abismos foram clareados e as lacunas nebulosas que ligariam o início ao fim se dissiparam, revelando campos abertos de pensamentos e de argumentos que mais flertavam com uma prosa poética pacífica, polida em sua elegância, do que necessariamente com as reverberações de quem lá fora e há muitos anos Ariadne vinha sendo.

Esses momentos de pré-preparo à escrita traziam a outra mulher, a outra Ariadne de quem ela gostava mais. Por vezes essa outra era direta e objetiva, por vezes perambulava longos caminhos para escrever o que deveria ser escrito, contrariando uma série de mestres que disseram o contrário, taxando-a de displicente ou de sem talento. E que Eliot e que Barthes, pelo menos naqueles momentos, fossem à merda. E também todos os outros que comungavam com esse tal Eu Universal que precisa se abster de tudo para alcançar a verdade alheia no peito de pessoas terceiras.

Os versos de Pessoa diziam que o poeta é fingidor nato e isso esteve em partes correto, porque àquilo que Pessoa quis se referir, referiu-se muito bem. Anos atrás, entretanto, quando o país ainda se preparava para o salto democrático rumo à não-democracia, e nas palavras de uma escritora paulistana que Ariadne lia no ímpeto do final de sua adolescência, o verso de Pessoa foi por ela enveredado em outra direção. Dissera tão sabiamente que de maneira alguma o escritor ou o poeta eram fingidores ou mentirosos, pois para criarem o que nas linhas é sentido, explorado e extraviado, é necessária uma sinceridade imensa; pois para criarem o sentimento, seja ele qual fosse, e atravessá-lo nos olhos do leitor ou do mero espectador para então repousar dentro dele uma chama vívida e latente, é preciso ser mais que mentira. É preciso ser verdade

Mas alguns daqueles mestres do Eu Universal estavam todos mortos, em determinados aspectos eram mentes calcificadas por uma técnica obsoleta e pouco maleável, ditando regras quando construíram uma falsa utopia de que a escrita era um mar de não-regras. Estavam todos mortos. Alguns eram senão ossos reverberando nos ouvidos dos que ainda se lembravam, daqueles que os guardaram às sete chaves. Eram senão ossos de respeito, embora vez ou outra alguns deles tenham proferido asneiras ou sido homens monstruosos – quanto a esses, Ariadne reconhecia os méritos, mas não fazia questão de perpetuá-los. Alguns ecos ecoavam em outras cavernas, não na dela.

Terminada a louça, Ariadne deu-se por satisfeita. Tinha a pia limpa e a cabeça preenchida. Tomou banho e deixou que a água lavasse os longos cabelos. Sentia falta de tê-los curtos, mas dada sua posição de visibilidade, e por motivos maiores, precisava se camuflar na lamacenta abadia que Belém se tornara.

Sentou-se diante da mesinha na sala de estar. Ligou o computador, leu as mesmas notícias diárias através dos dois únicos jornais vigentes no país – o maior deles era a fusão de duas grandes emissoras dos tempos antigos. Leu sobre elogios. Leu sobre a crescente na economia. Leu sobre o progressivo e exitoso extermínio da homossexualidade na infância e adolescência com métodos clínicos comprovados. Leu sobre a completa inexistência de violência urbana e rural – principalmente a segunda. Leu sobre o atual chefe de estado que continuava adoentado e mantido por aparelhos em casa, dando ao filho mais velho, dos quatro, a linha sucessória de poder do país. Era ele quem estava sentado nos últimos meses fazendo não muito diferente do que o pai fizera nos últimos doze anos.

Ela fechou todas essas notícias. Anos e anos atrás, numa época já extinta de sua vida, leu uma historinha que era mais ou menos assim: na época do fascismo italiano, um sujeito ia todos os dias à banca de revista, olhava o obituário e depois colocava o jornal de volta, sem comprá-lo. Fazia isso com regularidade antes de ir ao trabalho. Certo dia, o dono da banca de revista perguntou ao homem por que ele parava ali, todos os dias, abria o obituário e partia, sem comprar o jornal. Então o sujeito respondeu que a morte sobre a qual queria ler ainda não estava ali.

Ariadne queria lembrar onde lera aquela história. Provavelmente, seja onde ou por quem fora contada, decerto parou em uma fogueira pública, como a primeira que fizeram na Visconde de Souza Franco, quando páginas e páginas do que diziam terem sido “décadas de doutrina, de falsa História contada e de Literatura transgressiva” foram queimadas. Ou talvez o seu contador tenha mergulhado nas valas desconhecidas de Belém, como fizeram a seus tios e a suas irmãs.

A notícia que Ariadne esperava não estava ali e muito dificilmente estaria do modo como ansiava. Por isso ignorou o desgosto, abriu uma página em branco na tela e começou a escrever. Era o momento da outra mulher, a outra Ariadne, vir à tona.

Gostava da outra mulher porque ela era aquilo que Ariadne desejava ser: melhor e maior. Certa vez, escutara um antigo namoradinho cantarolar distraidamente desculpa, mas me perdi no meio do caminho, devem ser os problemas emocionais. Ariadne gostava mais dessa música do que do namoradinho, um sujeito qualquer que se perdeu no fuzuê dos anos e que deveria estar por aí hoje, recolhido, acovardado ou indigente, como as irmãs. Não que essa outra mulher não estivesse também embebida de problemas emocionais, e a verdade (olhem ela aí) é que ela era cheia deles, mas sabia lidar, pois tinha classe.

Essa outra mulher era a Ariadne que surgia nas páginas, uma evolução de sua versão anterior, de sua versão em carne e osso. Essa outra Ariadne sabia administrar o ódio. Quando possuída por ele, não cuspia, não esbravejava, não era inundada pela raiva de um mundo cão que bate e mata, que abusa e esfola, um mundo masculino, por essência. Sabia fazer piadas, sabia se enfiar em situações constrangedoras e absurdas, sempre saindo risonha, resignada, embora o mundo-cão-masculino a tenha destruído e desmoralizado incontáveis vezes. Apesar dos problemas emocionais, essa outra mulher era melhor, mais contida, mais irônica e piadista, porém sumariamente altruísta. Algum velho desses já mortos e de temas calcificados para ela, porém não para o mundo, e que até a divertia nos silêncios da madrugada, havia escrito que “(...) rir de si mesmo é sinal de grandeza, ou pelo menos (e ela acreditava mais nisto) de que se pode alimentar a esperança de que venha a ser algo mais que um simples e pretensioso cagalhão intelectual. o mundo anda repleto de cagalhões intelectuais pretensiosos (...)”.

Em contrapartida, a mulher de cá, a Ariadne longe da escrita, andava perdida. Perdida e violenta, tal qual cantarolou o antigo namoradinho. Cansou-se do pacifismo, perdeu a esperança. Enxergava o mundo não apenas como um mar de predadores insanos, mas um onde todos eles eram senhores: afoitos pela razão e pelo poder, guiados por imaginárias verdades que matam, esfolam e deturpam – todos os dias um pouquinho de cada vez, de novo e de novo.

A Ariadne de cá andava mais falastrona nas reuniões do Comitê de Insurreição. No trabalho, dividindo o escritório com aqueles almofadinhas que criam em Deus e na Pátria Amada, estava prestes a explodir e a entregar seus verdadeiros ideais que insurgiam, eufóricos, ao lado das comparsas e dos comparsas de resistência. Ocultamente, no âmbito secreto de sua subversiva vida, era uma tagarela cheia de convicções, com arranhados na garganta de tanto praguejar aos oficiais nas ruas e aos Deuses no Poder, à Sagrada Família do Chefe de Estado.

A mulher de cá era fervorosa em seu sentir – na dor e na indignação, na vontade e no estúpido sonho de que o mundo fosse menos cruel para com aquelas e aqueles que diariamente apanhavam ou, miseráveis, desapareciam. A mulher de cá soava extremista, porque era. Estava cansada de deuses silenciosos e de uma nunca chegada Justiça – a dama mentirosa, a meretriz que se deixava envolver por homens de braçadeiras e de botas, que escapava e se deitava com os homens de uniforme. Onde havia lido aquilo? Nem mais importava, eram palavras agora transformadas em cinzas, incendiadas nas maiores e mais privilegiadas avenidas do país.

A Ariadne de cá era insegura.  Antes de dormir, longe do manuseio da .40 ou das secretas afrontas de fins de semana, possuía sonhos imbecis e contestáveis. Libertar a nação e expurgá-la do atual fanatismo era tarefa árdua – limpar carvão com lenço umedecido. Sentia ódio em demasia somente por aqueles que o usavam como arma, pois aprendera que amor e diálogo e gritos pacíficos em avenidas lotadas não soldavam escudos de proteção, apenas utopias infantis e mortes injustas – assim vieram as injustas mortes e assim morreram as infantis utopias.

Não acreditava em figurões poderosos prestes a salvarem a todos com seus milagres ou com seu retorno. Não acreditava nos homens que os copiavam, tampouco nos homens que arrombavam suas entrelinhas para escreverem eles próprios seus achismos acerca da Palavra. Seus pais acreditavam. Em nome de levianas divindades entregaram os de seu próprio sangue. A exaustão de lutar em vão contra as crenças desvairadas daqueles que nisso acreditavam a suprimia na claustrofobia de uma lata gigante, um tubarão em um fosso. A Ariadne de cá não se orgulhava do que havia se tornado. Tornou-se por obrigação. Era mover-se ou omitir-se. E omissão era uma forma acovardada de apoio.

A Ariadne de cá estava exausta de julgar-se violenta e por ser tão intolerante frente às intolerâncias. Exausta não porque deixaria de bater, exausta, apenas, pela inevitável vontade de fazê-lo – a resposta mais genuína. O ódio queimava as veias e esquentava a respiração. A taquicardia vinha se tornando frequente desde que atravessara os trinta. E os pensamentos avermelhados de aroma metálico assombravam seus sonhos. Ora era ela quem estava neles, ora eram as irmãs e os tios; ora era quem deveriam ser, e somente nesses casos oníricos é que se sentia como o sujeito que checava todos os dias o jornal, com a diferença de que nesses sonhos ele encontrava o obituário desejado. Almejava uma noite de sono tranquila, uma só, sem os anseios de pisões na porta nem os horrores de sua carne esfolada e dilacerada no asfalto ou coisa pior. Bem preferível a morte que a coisa pior.

Acendeu um cigarro. Junto com longos suspiros vieram longas palavras, parágrafos fluidos e ceifas de páginas. Graças a raras concessões permitidas pelo Estado, que geralmente existiam para atender aos caprichos de pequenas corjas e caprichos elitistas, existia o Hedium, plataforma digital onde os usuários escreviam e publicavam textos. Os devidos filtros eram impostos pela ABIN, frequentemente monitorados e sumariamente restritos a uma longa lista com centenas de palavras proibidas em todo o país, as quais estampavam-se pelos murais e paredes e quadros nas escolas. Alguns teimosos e corajosos insistiam em abordar tais temas ou vocábulos malditos. Havia minúsculos grupos no site compostos por sujeitos promissores que alcançavam o êxito no feito: artistas natos que nas esquinas e nos becos suscitavam um novo movimento marginal e revolucionário artístico. Valiam-se de palavras bem articuladas que flertavam com o latim vulgar, deveras rebuscadas no português arcaico dum Gregório de Matos ou num regionalismo expressivo e periférico dum Mário de Andrade que confundiam a atual cultura sulista implementada como lei, a ponto de causarem, todas essas, nódulos nos parcos cérebros dos asnos-fiscais da ABIN, tão incapazes de interpretá-las quando as encontravam.

Deliciava-se com isso. Finalmente entendia e testemunhava na prática vários daqueles novos Cálices de novos Buarques passarem despercebidos. No mais, pelo Hedium havia o público fervoroso de jovens que amavam a Pátria Amada e teciam longas abobrinhas elogiosas, paradisíacas, sobre o esplendor de suas vidas – a ignorância, comprovadamente, era um modo de vida abençoado. Outra parte do público adorava aquelas balelas sentimentais que empilhavam o site. Alguns eram temas tão medíocres e negligenciados que os bobões da ABIN por eles passavam direto. Palavras sobre dor, depressão e o porquê ela não volta pra mim? Já outros eram refinados, uma nata da qual Ariadne adorava consumir. Desconfiava, em certos casos, sobre o real posicionamento político daqueles autores, embora fossem inteligentes ou resignados demais para ali transparecerem em palavras. Eram bons pensadores e ótimos questionadores dos trágicos e interiores encalços humanos, a ponto de ser quase impossível imaginá-los erguendo as mãos direitas em saudação à atual bandeira nacional – um “B” branco e gigante dentro do globo azul sem estrelas sobre os fundos amarelo e verde.

Na plataforma do Hedium, ela assinava seus textos como Antero. Palavras escritas por homens eram levadas mais a sério, sobretudo naqueles tempos – a possibilidade contrária te levaria a um quarto escuro, a uma cela ou à famosa vala belenense. Geralmente, se é que liam ou sabiam fazê-lo, os fiscais da ABIN adoravam consumir determinados conteúdos de Ariadne, vulgo Antero. Sentavam-se na frente de seus computadores e masturbavam-se feito animais, mesmo não compreendendo mais da metade daqueles léxicos.

O que homens adoravam naquele tipo específico de literatura era a fuga do tema: enxergavam o sexo como mera desculpa masturbatória ao invés do teor filosófico por trás dele. Quando a temática era abordada por autores masculinos, ela despertava em outros homens uma ruptura com a realidade: imaginavam-se sabedores natos das filosofias da conquista, enxergavam-se como Dons Juans e julgavam que o mundo funcionava conforme as regras daquelas linhas – o que, de um jeito ou de outro, todos os homens acabam por fazer funcionar. Outro importante detalhe é que quando tais temas eram escritos por outros homens, serviam quase como um manual do macho aprendiz: os leitores agiam daquele jeito e acreditavam, tanto quanto acreditavam na Pátria Amada, que assim as engrenagens cósmicas girariam ao seu redor. Sentiam-se heróis e protagonistas de uma novela feita para eles e por causa deles. No fim, também invariavelmente, enxergavam os autores de tais linhas como sacerdotes, respeitavam-nos, pois era um camarada que também portava um pau entre as pernas, assim como eles. Só que muito, muito mais sabido.

Já o tema escrito não por camaradas, mas por mulheres, mesmo nos tempos de antigamente, não era visto com respeito, admiração ou inspiração – afinal, se lessem corretamente o que elas escreviam ou diziam, então saberiam onde e como encontrar aquilo que nem sabiam que residia a uma língua ou a um suave tato de distância, aquele estranho órgão que, ao contrário do que acreditavam, não era uma proparoxítona. Ao invés disso, o tema se manifestava como uma grande e magnífica brecha para algo mais, para o ela tá querendo. Através de mulheres o sexo não era lido sob o filtro da arte nem da filosofia moderna corpórea nem da simples poesia. Era lido apenas como um convite, um cartaz público para um parque recreativo gratuito, sem respeito, sem valores. Meramente diversão.

Fosse naqueles tempos extintos ou nestes atuais, o tema evoluíra em questionamentos, em ângulos e em profundidade, falava mais a respeito daquelas minas interiores inexploradas de quem os escrevia (Ariadne ou Antero) do que de fato a respeito de carne, suor, muco, gozos e berros. Contudo, a leitura a respeito deles, vinda de homens que tão pouco sabiam ler linhas, versos ou vidas, permanecia a mesma.

A outra mulher, a outra Ariadne, não escrevia para os asnos dos fiscais, muito menos aos que como eles não saíam das superfícies textuais. Um lamento penoso que Antero fosse lido por insapiências tão rebuscadas. Isso porque, vez ou outra – muito vez ou outra! – é que ele abordava a epifania dos atos carnais em seus escritos. Ao fazê-lo, geralmente baseava-se em frames perdidos ou em frames inventados do que um dia foram os frames de uma antiga amante que há anos fora roubada para as trincheiras. Recordava-se e escrevia e fantasiava e inventava e delirava com ela sobre distantes e apoteóticas noites de uma vida passada. Foi na época extinta, quando tudo ainda era permitido, pelo menos do ponto de vista cívico – beijos, abraços, sorrisos e laços; na época em que não batiam em sua porta para puxá-la pelos cabelos e darem um fim à depravação de sua existência.

Mas isso não era mencionado, é claro. O que explicitamente Antero escrevia tratava-se de amores partidos, fisicamente distantes, enrolados nos braços do desgosto ou de outros homens – o público adorava essas leituras. Era aí que Ariadne insurgia, a outra Ariadne, aquela mais segura de si e a mais aceitável. A Ariadne que Ariadne queria ser. Não um Antero – que se fodesse o fato de assinar como homem. O que procurava através da escrita não era transmutar-se no animal sádico e violento que eram todos eles, mas uma iluminação própria, uma jornada pessoal e diária onde o Estado, aquele Estado, não existia. Não queria tornar-se o que tanto enojava. Não queria tornar-se o que em essência era a Pátria Amada: um rebuliço de cólera indiscriminada, irracional, inviolada.

Por isso tecia.

A resposta do público era enérgica. Recebia elogios em comentários e lia várias daquelas jovens garotas clamando por mais textos ou pelo anseio de conhecerem Antero, O Grande Antero. Ariadne se divertia. Quando não escrevia para o Hedium, tecia alguns memorandos para o Comitê de Insurreição, que por acaso também não eram assinados como Ariadne – não havia pseudônimos por questões lógicas de segurança e por questões de unidade. Ela não era um indivíduo autônomo, era a hemácia de um corpo libertário, tísico e cansado, mas libertário. Todavia, o teor das palavras em tais textos pertencia a Ariadne de cá, não à outra mulher. E da Ariadne de cá ela estava exausta, pelo menos aquela noite.

Alimentava prosas poéticas com e para o público que a lia e verdadeiramente a admirava, que sabia o que significava o espetáculo tragicômico da espécie humana exposto e não vilipendiado em suas linhas. Respondiam-na, pediam mais – talvez a única distração e apreciação que possuíssem na única vida da qual conheciam ou eram permitidos ter. Isso a fazia lembrar de um velho amigo dos tempos antigos. Um sujeito que adorava os mesmos heróis literários que ela, embora fosse mais velho e mais experiente na profissão do tecer. Ariadne, à época, adorava lê-lo. O sujeito peregrinava por caminhos semelhantes aos de seu Antero. Utilizava filosofias fajutas e hedônicas, às vezes carnais, às vezes urbanas, quando necessárias. Também o latejar da melancolia poética, da desesperança suave, calorenta, úmida e cinzenta de uma Belém de outras épocas – uma que tanto desejava ter saboreado. Na maioria das vezes eram linhas de escárnio cruel, necessárias e imperdoáveis para com as personas que as mereciam. E de igual modo que escrevera o velho que a fazia gargalhar em certas madrugadas, esse antigo amigo também sabia rir de si mesmo, sabia apontar o revólver para o espelho e crivar-se de palavras, fossem elas expiatórias e penitentes, fossem elas cômicas.       

Mas o Hedium não existia à época. Apesar de adorá-lo, o pobre coitado nunca foi bem visto ou reconhecido. Dele talvez rissem em demasia, talvez não o levassem a sério, talvez tenha tecido verdades assertivas demais a respeito daqueles que poderiam levá-lo ao destino das regalias. Não foi um mártir, tampouco um intelectual cagalhão e pretensioso. Só não teve muita voz ou espaço. Não foi notado como o Antero de Ariadne. Não era lá requisitado, não era lá muito lido. Tecia em plataformas talvez obsoletas, desprezadas e desprezíveis. Ou talvez Ariadne o admirasse em excesso e não passasse de um peste falastrão, uma aranha fiadeira cheia de erros. Não possuía paciência ou dotes para revisões nem olho para pífias concordâncias verbais desleixadas que escapavam e deixava ali mesmo, pois não ganhava pelo que escrevia, não era convocado para ganhar nem levado a sério para tamanho absurdo.

– E se alguém reclamar das concordâncias tortas, pois que se ofereça a corrigi-las – disse ele em uma noite silenciosa, com um falso sorriso falho em esconder a decepção que nutria por si mesmo. – Eu vou ser muito, muito grato. – E concluiu com uma tristeza maior ainda, típica daqueles sujeitos com um pingo de talento que sabem o futuro de esquecimento que os aguarda: – Bicudar é fácil, Ariadne. Fazer igual ou dar uma forcinha que é o bicho.

Tornou-se mais um falador obsoleto, mais um sujeito eufórico, tal qual a Ariadne de cá que ela detestava ser. Um sujeito embebido pelas indignações certas, furioso pelos ódios cuspidos por tantos salvadores e Messias. Com o tempo, o sujeito não suportou a transição de um mundo onde suas palavras eram livres para um mundo onde se tornaram um crime. Ariadne soube de alguns de seus últimos feitos – histórias magnânimas, cômicas e trágicas de doerem a barriga e de apertarem o peito e de cutucarem feridas. Ele escreveu e escreveu e foi punido por isso. Nunca o encontraram por aí, mais um a mergulhar nas valas indigentes de Belém.

Ariadne apagou um cigarro. Sentiu a barriga roncar de fome. Deu uma pausa à sua escrita e comeu o conteúdo frio que comprara horas mais cedo na rua. Mastigou e alternou com um copo d’água. Palitou os dentes com a unha do mindinho. Acendeu outro cigarro.

Antero, a outra, finalizou três escritos diferentes após devaneios e supressões de raiva. Um deles sobre a antiga amante de épocas distantes sem mencioná-la como pessoa, mas como um sentimento – um texto leve;

mais qualquer um que tocasse os leitores, a respeito de nostalgias não politizadas que não incomodassem o status quo um texto leve;

outro sobre os pormenores de um vulto que partia para outras terras, permeado pela sutileza da pele e pelo perfume roçado em narinas apaixonadas, de dunas afrodisíacas com curvas singelas e deveras normais, em suma um ultrarromantismo piegas –  um texto muito, muito levemente pesado.

O que significaria um delírio punhetesco aos devidos asnos.

Ela bocejou e olhou no relógio. As horas voaram e metade da madrugada desaparecera. Em algumas horas a alvorada nasceria. Corrigiria os textos na noite seguinte, que ficassem para depois. Para certo tipo de gente, tudo terminaria em punheta, de qualquer maneira. E que se fodesse o verdadeiro centro poético da coisa, ninguém ligava mais para isso, certo? O que não significava que Antero, ou a Ariadne de quem Ariadne mais gostava de ser, deixaria de escrever.

Alguns atos eram mais do que políticos ou obrigatórios. Frutíferos ou fadados ao fracasso, eram essenciais. Como é, que é mesmo, havia escrito aquela escritora paulistana da qual Ariadne tanto admirava?

Ah.

Da prateleira ela retirou o segundo volume do “História Atual Brasileira – Pátria Amada, Brasil” que a nova Constituição de 22 os obrigava a terem em casa. Em um dos capítulos ela encontrou três pedaços velhos de papel dobrado. A cada vinte páginas, eles se repetiam. Guardava-os onde nunca procurariam. Asnos.

Abriu um deles:

 

[...]

- você continua escrevendo?

- Claro.

 

(essa pergunta sempre me ofendia.

como pode alguém pensar que eu não estou escrevendo? por acaso não fica evidente? o quanto a escrita é tudo o que tenho)

[...]

 

Assim Ariadne, a Ariadne de cá, recordou-se de suas outras obrigações. Aquelas que talvez estivessem fadadas ao fracasso, mas que não a permitiam desistir. Desistir não era uma escolha, mesmo que a linha de sucessão no Estado passasse de pai para filho, de irmão para irmão e de irmão para outro. A Ariadne de cá estaria fadada à existência perpétua, bem como a outra Ariadne.

Ela fechou o Hedium. Pôs de volta o pedaço de papel no mais completo e sincero livro de História Brasileira já escrito. Guardou-o na prateleira. Deu um até logo à outra Ariadne, a de quem gostaria sempre de ser, para dar lugar a Ariadne de cá.

Na frente das páginas, era a outra mulher, a outra Ariadne: a secreta voz que aflorava e se nutria, que germinava e sabia brotar; que alimentava e se deglutia, que garoava e precipitava molhar.

Nas reuniões do Comitê, era a Ariadne de cá: a mulher que gritava e se insurgia, que apontava e sabia atirar; que conclamava e se enfurecia, que praguejava e queria ceifar.

Abriu outra página em branco sobre a qual não assinaria como Ariadne nem como Antero. Escreveria um chamado, o verdadeiro manifesto, uma convocação para todos os Comitês de Insurreição do Estado do Pará, quiçá do país.

Ela acendeu um cigarro e acenderia também uma faísca.

E então escreveu.

 

 

 

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