28 de março de 2020

Homens de verdade





Falemos a respeito deles: homens de verdade. Esses varões respeitáveis com os quais pela rua tropeça-se aos montes. Estão nas esquinas, nos bares e nas padarias, nas grandes empresas e nos caixas de lojas, estão nas motos de delivery e nos requintados escritórios dos maiores conglomerados mundiais. Estão empreendendo com o capital suado de suas mães, tias ou das pensões de seus desconhecidos e desleixados pais – que sequer conheceram, mas deles conservam os genes. Estão a um passo de onde quer que estejamos: são pais de meninos e pais de meninas, são administradores do lar, sempre trazendo para baixo de casa o dinheiro suado do sustento, provendo a sobrevivência de suas famílias. Aos domingos, peregrinam às suas respectivas igrejas – e que de antemão seja sabido que nem todos eles creem no Senhor Jesus Cristo, pois é justo. São católicos e adventistas, evangélicos e pentecostais, agnósticos e ateus, futebolísticos e transcendentais.
Homens de verdade que são a base da sociedade contemporânea – foram da moderna, foram da antiga e também da clássica. Existem por pura necessidade antropológica, pois as culturas precisam deles, sem eles não sobreviveriam. São o pilar da moralidade, dos bons costumes, da força e da virilidade. Sem seus braços fortes de torneados músculos ou meramente fortes de vigor e caráter, o Mercado ruiria e os cartórios tão pouco registrariam crianças – com ou sem vínculos de paternidade, não importa, desde que façam sua parte.
Dê um passo e eles estarão lá. Dê dois passos e se aproximará de um deles. Dê três passos e eles, cordialmente ou não, dependendo de quem esteja ao seu lado, serão muito amistosos e amigáveis, todos sorrisos, todos confiantes e muito seguros de suas integridades. Dê mais de quatro ou cinco passos e qual um abrigo sujo de cachorros, você pisará em um deles sem querer. Pare os passos, olhe para o solado de seu sapato e lá estarão: fatalmente verídicos na verdade que são, não mais intactos, não mais sorridentes, não mais amistosos nem amigáveis, mas baforentos, exalando o que melhor guardam dentro de si – a moralidade impecável e a virilidade rija, ambas em tons de marrom.
De preferência, não esbarre nem pise sem querer nos homens de verdade. Caso contrário, testemunhará uma peculiar exaltação encarnada em palavras bem montadinhas em períodos gramaticalmente bem alinhados com escolhas lexicais muito belamente planejadas e minuciosamente articuladas. Perceberá o quanto domam o dom da língua e o quão recentemente aprenderam a organizar parágrafos de modo coeso (porém com pouquíssima coerência), talvez com o auxílio de um Olavo ou de um André Fernandes. Argumentarão de maneira muito elaborada, como um neandertal se regozijaria ao descobrir faísca após lascar duas pedras. Tome muito, muito cuidado com o dom argumentativo e linguístico desses homens de verdade – oh, talvez eles até o (a) derrubem.
Mas isso é apenas sorte. Poucos deles leram de fato um Olavo para que saibam montar as peças de quebra-cabeças dificultosamente encaixadas que lhes são os parágrafos. Alguns não chegaram a isso, pois os argumentos que o velho sábio cuspiu em suas páginas ainda é muito a ser absorvido por suas mentes de magnífica funcionalidade. Com demasiado e recorrente azar, você encontrará aqueles homens de verdade que não passaram por um Fernandes ou por um de Carvalho, muito provavelmente, no máximo, por um Nando, por um Weintraub, por um Malafaia, por um Macedo ou pelas inspiradoras musas dos vales de Urach. E com demasiado e recorrente azar elevado ao quadrado (o que costumeiramente acontece) você topará com aqueles homens que por nenhuma dessas grandes mentes foram lapidados, apenas pelas emanações de repetições do que foram os ecos de uma voz há muito proferida no interior de uma gruta.
São esses homens de verdade que aos montes encontramos por aí. Homens que são de moralidades incontestáveis – que cortejam esposas, filhas, primas, colegas, amigas e cunhadas alheias, homens que com seus músculos torneados e seus grandiosos instrumentos de virilidade possuem autoestima inegável e elevada; cortejarão moças mais novas e até aquelas com as mesmas idades que possuem suas filhas, seja a mais velha, seja a mais nova delas, e persistirão até que obtenham positivas respostas. Quando ignorados, cuspidos ou desprezados, estes homens de verdade sentem-se ofendidos, pois aquelas moças jamais seriam dignas de vossas companhias, pois ao contrário deles, não são mulheres de verdade, apenas meras meretrizes de sovaco cabeludo que se julgam a última Cream Cracker num pacote amassado. As alcunhas que depositarão às personalidades delas são as mais variadas – bastam um acúmulo de expressões culturalmente repetitivas, pouquíssima criatividade e teremos uma lista complexa.
E quando descobertos, apontados, revelados, acusados ou expostos publicamente por perturbarem a fidelidade de casais alheios, ao cortejarem as moças alheias com seus emojis de palminhas, com seus emojis de corações brilhando, com seus comentários recorrentes, com suas intermináveis tentativas em puxar conversas ou tecer elogios sem criatividade, com suas fotos no espelho de abdomens torneados ou relógios brilhantes em volantes de Hondas Civic, quando finalmente expostos diante de suas “más intenções”, então exibirão o argumento mais familiar da história de sua espécie:
Estás ficando louco (a)? Eu jamais faria isso.   
Deixa de insegurança. Eu sou homem de respeito, achas que eu sou moleque? Eu sou homem de verdade, eu jamais faria isso.
Deixa disso, estás louco. Vai cuidar do que é teu e deixa de paranoia.
Estás maluco (a)? Eu sou homem de Deus! Eu sou casado – e nesse momento exibirão as alianças nos dedos anelares, após encoxarem moças em filas ou em transportes públicos lotados. Esses, em especial, erguerão a mão esquerda com firmeza, ofendidos, descabidos em tamanha integridade e descrentes de tamanha acusação. – Eu sou casado! Tenho mulher e filhos. Tenho família! Eu jamais faria isso! Não tenho o porquê fazer!
Esses são homens de verdade da classe A – a classe Familiar. São o nível mais elevado, o topo da evolução da moralidade e do caráter. Argumentarão de forma impecável, porque foram educados durante a infância e adolescência em boas escolas de Belém, providas pelos altos salários de seus pais Delegados que também eram sujeitos íntegros e respeitabilíssimos. Enquanto os filhos enrolavam seus becks e fumavam a verdinha escondidos dentro de um Impacto ou de um Marista, os pais proviam sua sobrevivência atirando em bandidos e bicudando vagabundos até o momento em que a profissão se mostrasse promissora. Não mais adeptos de limpar as ruas, seguiram a carreira política – foram vereadores ou deputados estaduais em Belém, eleitos devido a uma fama de fúria e ferocidade nas periferias da cidade, acumulando cadáveres pelas valas. No cargo público, tiveram dinheiro em grande escala para financiar a faculdade particular de seus filhos, que agora percebiam que a verdinha era coisa de vagabundos de universidade pública, finalmente conhecendo o pó mágico de pirlimpimpim que entrava pelas narinas e os fazia voar.
Esses homens de verdade de classe A cresceram em profissões não muito promissoras. Encheram as paredes com cursos técnicos pagos, tentaram o mercado de trabalho cruel por um tempo, porém sempre sem muito sucesso, mas pouco desespero, é claro. Empreendedores natos, utilizavam com frequência o capital de investimento dos pais (agora ex-delegados militares) para criar novos negócios. Enriqueceram por um tempo. Obtiveram com emprego duro o carro dos sonhos – talvez um Honda Civic, um City ou, com muita humildade, um Fit, geralmente um HB20... com esforcinho um Sedan. Cresceram, evoluíram. Cultivaram um casamento conturbado, todavia proliferaram – três meninas lindas, pois língua não tem osso e tudo há de ser pago um dia, em nome daquelas moças que tanto xingaram, anos e anos atrás. Floresceram seus laços familiares, fortaleceram o interior de seus lares com as regras de Deus – que consistiam, nos fins de semana, em duas putas e cinco carreiras de pó. Após os cultos de Domingo, jantavam com as meninas e punham-nas para dormir, e então beijavam suas esposas e pediam a elas (“só hoje, vai, amorzinho”) um pouquinho de seus rabos. Quando não passavam a elas verrugas no ânus, passavam algum tipo destrutivo de HPV, causando um princípio de câncer no útero das esposas que quase, quase, por muito pouco as fez desistirem de tudo, mas com o apoio de Deus e o apoio familiar, superaram as provações.
Chamavam-se Andrés, Alcides, Sydnes e Bernardos; Cláudios e Edivandos, Hugos dnkvvvdknvkHugos e Ítalos, Wilsons e Thiagos. Todos com alianças nos dedos, Deus embaixo dos braços e messias nos congressos – amparados pela fé, pelo caráter, pelo Mercado, pelo capital de investimento dos próprios pais (mesmo aos 40 anos) ou pela boa moralidade.
Em passos desastrosos também é possível tropeçar por aí com aqueles homens de verdade da classe B – que ainda não possuíam família, mas testavam, inconsequentes, suas tentativas entre as mais diferentes pernas da cidade, com sorte pagando um aborto ilícito que, se Deus quisesse, daria certo. Estavam a um passo de conseguir tudo o que almejavam. Frequentemente repetindo as artes dos gracejos e dos cortejos para com moças comprometidas ou menores de idade, não cansavam de verbalizar as mesmas desculpas supracitadas quando desmascarados:
Estás ficando louco (a)? Eu jamais faria isso!  
Deixa de insegurança. Eu sou homem de respeito, achas que eu sou moleque? Eu sou homem de verdade!
Deixa disso, estás louco! Vai cuidar do que é teu e deixa de paranoia!
Estás maluco (a)? Eu sou homem de Deus!
Igualmente adeptos a faculdades particulares, amantes de verdinhas em ambientes sumariamente secretos (“porque isso é coisa de vagabundo de universidade pública!”), diferiam dos homens de verdade da classe A em um importante aspecto: eram eles quem pagavam as mensalidades de suas próprias faculdades. E isso, ah, isso era um motivo de orgulho, um imperativo categórico na boca de muitos deles:
Esse carro é meu!
Essa moto é minha!
Eu consegui com o fruto do meu próprio trabalho. Eu trabalho e compro o que quero, pago minha faculdade!
Achas que sou moleque? Eu não preciso fazer essas gracinhas, não.
Sou homem de verdade, não sou moleque! Me respeita!
Diferentemente de homens normais que trabalhavam e sustentavam seus filhos e sempre tentavam um negócio novo às custas do próprio suor e do próprio empenho, estes homens de verdade da classe B adoravam exibir suas conquistas. Sempre cresciam para cima dos outros, fosse quem fosse, ao estufarem o peito e exibirem o que compraram com o próprio dinheiro, o que tinham ou o que deixaram de ter, como se recentemente houvessem descoberto que era uma atitude normal, não algo digno de relinchos exasperados: comprar o que se quer com aquilo que se conquista. Entretanto, geniosos e revolucionários, exibiam seus bens para que todos vissem – fossem seus 30g de pó guardados no bolso esquerdo ao lado da chave de casa ou fossem seus relógios brilhantes no pulso que segurava o volante de seus HB20-não-Sedans – “QUE CONSEGUI COM MEU PRÓPRIO DINHEIRO!”, jamais esqueçamos.
Eram sujeitos com traumas na infância, comumente criados por mães desgostosas vindas de clássico abandono paternal – coisa da qual estavam fadados a repetir. Eram de integridade tão sólida quanto os da classe A. Chamavam-se Arnaldos, Antônios, Brunos e Carlos; Matheus e Orlandos, Thenórios e Renatos, Kaios e Fernandos.
É graças a eles que o mundo gira, que estamos aqui sendo meros subservientes de suas palavras bem articuladas ou não, de suas presenças deificadas por Salvadores em carne e sangue, de sua extrema e digna necessidade de autoafirmação, superioridade, eloquência e virilidade. Homens de verdade que mostram a todos nós, homens pífios e menores, mulheres indignas e meretrizes, que devemos a eles nos ajoelhar e louvar.
E que assim o façamos.
Pobres de nós.




14 de março de 2020

Esboço




Este é o esboço de uma cena. Uma dúzia maldita de bêbados espalhados pelo salão, barrigudos fedorentos foragidos da justiça devido a pensões atrasadas. Eles bebem e apostam sinuca, não fazem barulho pois ainda mantêm o cavalheirismo: a mulher no palco está tocando. Ela tem cabelos castanhos oleosos, emaranhados, mais por desleixo que por estilo – e tudo bem. Ela arranha na guitarra um solo melancólico, acordes tristes de uma canção há muito escrita por algum homem de preto. Os olhos dela caem até o chão, de lá não conseguem levantar e ali parecem de acordo num nível adequado de áurea. É pela música? Aqueles homens, todos aqueles velhos bêbados, não saberiam dizer nem se houvessem passeado pela superfície do questionamento – e tudo bem. O solo melancólico continua: aqueles olhos caídos, aquela voz sonolenta enrolando-se na letra da música como dois amantes abusivos e desvairados prestes a se matar depois do primeiro orgasmo. A quem pertencerá? Ninguém sabe – e tudo bem. A mulher continua com o solo que faz um barrigudo errar a  bola 7. O outro barrigudo, o barrigudo-adversário, se posiciona e encaçapa a 6, a 2 e então a 8. Fim de jogo. A música fez isso, a música da mulher com os olhos no chão, com olheiras em volta deles, com a pele tísica, com o filho frio, silencioso e envolto por um caranguejo dentro de um túmulo, e tão brevemente ela mesma presa ao balançar de uma corda – talvez esta seja a última canção da noite e a última de sua vida. A mulher se chama Lira, tal o instrumento que Hermes deu a Febo Apolo para conciliar aquela confusão com os bois e que no fim em nada deu – e tudo bem. 
O solo continua.
A mulher que se chama Lira canta.
Os homens fazem silêncio.


Love is a burning thing
And it makes a firery ring
Bound by wild desire
I feel in to a ring of fire


E a cena termina aqui.
Pois assim são os esboços.