30 de dezembro de 2019

As voltas que essa escrita dá





Foi num final de setembro ou num início de outubro de uma vida há muito distante. Foi uma prova profundamente temida de uma alma profundamente amedrontadora – cabelos curtos, loiros e cinzentos pela idade, roupas bem postas e classe evidente. Ela sempre dizia que possuía anos de experiência, décadas de sala de aula, e por isso não permitiria leviandades como celulares durante a aula ou preguiça para a leitura de seus textos tão severamente indicados. Poucas vezes sorria, e quando o fazia, era de uma indiferença tamanha, pois ao final de rápida piada, você saberia: não haveria nenhum tipo de empatia para com o público. Até as brincadeiras eram contidas e extremamente profissionais – tão logo você estaria de volta ao seu lugar, sentado naquela cadeira para absorver a análise sistematizada de um Mallarmé ou de um Baudelaire.
Voltando à prova, aquela época foi uma estranha época de provações que certamente não foram vencidas. Foram, aliás, magistralmente fracassadas. Para a primeira prova, naquele final de setembro ou início de outubro, alguém certamente mergulhou em todos os textos teóricos e poemas analisados, durante um, dois, três ou vários dias inteiros de um curto final de semana. Alguém certamente mergulhou com vigor, porque a honra e a sorte naquela época não andavam muito claras ou tão isentas de culpa. Tudo o que havia de ser feito, esse alguém o fez. E era certo de que conseguiria – como bem sempre conseguira até então, apesar da elementar preguiça e desleixado desdém por tudo o mais.
Aquela alma profundamente amedrontadora distribuiu as provas. E das duas questões longas e discursivamente muito bem elaboradas que exigiu, ambas eram especificamente pautadas em um texto teórico que aquele alguém sequer sabia que existia. Falha épica, dano fatal. Maldita desgraça. Aquele alguém riu, riu porque se fosse culpa certificada, ele aceitaria; riu porque fizera de tudo para entender tantas análises de Mallarmé, de Baudalaire ou de quaisquer outros simbolistas que ali foram cobrados – um Augusto dos Anjos, talvez? Esse alguém nem mais lembra. Não lembra sequer do teórico específico pela questão cobrada.
Lembra-se, contudo, da sensação: do silêncio na sala de aula, do lugar onde estivera sentado (o segundo ou talvez o primeiro da fila). Lembra-se de não poder fazer nada, embora muito soubesse sobre dos Anjos, de Mallarmé e de Baudalaire conforme suas próprias análises ou conforme as análises de todos os outros que houvera lido, exceto daquele específico que nem mais lembra o nome. Lembra-se igualmente dos olhos indiferentes e carrascos daquela alma profundamente amedrontadora como se soubessem de antemão sua ineficácia e despreparo, como se fosse um inútil, como se sempre fosse um desastre naquele que foi, em dois anos, seu primeiro tropeço na Literatura.
Nada podia fazer a não ser devolvê-la em branco, sem justificativas, sem choramingos,  era de um  destino hilário e de uma má sorte cômica. Antes de selar a piada e de nunca mais voltar àquelas aulas pelos próximos mais de dois anos, escreveu uma lauda inteira no borrão de sua folha com a única alternativa que lhe restou, com a única saída que lhe veio à mente. Ali nasceu Jordana, baseada nas manchinhas dos ombros de alguma outra professora de alguma outra literatura de alguma outra portuguesa por quem tanto estivera encantado na época. Jordana nasceu dos devaneios aleatórios sobre uma mulher academicamente inteligente a quem tanto admirava. Jordana fora uma invenção de sua alma meio desleixadamente sem amor naquela época: criou-a do nada, inventou-a do nada e deu a ela uma vida que transcendeu por muito tempo as páginas que teceu ao longo de meses à frente. Pouco a pouco além daquelas linhas, Jordana ganhou morada nas ruas da Campina, e Jordana ganhou as manchinhas dos ombros graças a descendência do pai, o velho marinheiro pilantra, que o adorava como quase-genro, e da risada estrambólica e deliciosa da quase-sogra, professora e recitadora de Drummond, que igualmente o adorava não-se-sabe-o-porquê. Jordana ganhou idade, ganhou apreço pela arquitetura e Jordana ganhou também até uma origem real de pedagoga, que no fundo não era tão real assim (porque ao contrário do que todos os que pousam nestas linhas imaginam, pouco ou nada daqui é real).
Eis o segredo.
Diga que até as coisas mais realisticamente inventadas têm um cerne na realidade aqui fora. Dê uma origem falsa e chame-a de verdadeira, chame-a de verdadeira nas entrelinhas, nos mais imperfeitos e sutis detalhes. Engane o público e ele terá a certeza de que indiretamente suas invenções possuem um pé na sua tão banal e tão monótona realidade. Engane o público até mesmo quando ele julga que estaria você em uma época de aventuras profanas e dores conturbadas.
Engane o público até a próxima vez quando, anos e anos depois, esse alguém encontrar novamente aquela alma profundamente amedrontadora.  Aquela mesma alma profundamente amedrontadora que continuará com suas roupas bem postas, com seus cabelos loiros de um cinzento da idade, com suas mais de quatro décadas de sala de aula e sua infinidade de romances brasileiros e de seus incontáveis textos teóricos a respeito dessas obras. Encontre-a de novo (e com a agradável certeza e comprovação de que ela não lembra de sua passagem durante aquela vida tão desastrosa e passada). Pois esta é a segunda primeira-chance desse alguém, e por sorte, a última primeira-segunda.
Desta vez, talvez esse alguém possua seus calos – um no calcanhar feito por um Mário de Andrade ou uma leve escoriação feita por outras leituras não-findadas de um Dalcídio ou de um Machado. Mas calos suportáveis, calos que tão logo passarão, diferente daqueles calos que o tomavam o corpo naquele ano distante (calos que não o permitiram seguir em frente; calos que mais tarde corroeram suas retinas e até impediram-no, neurologicamente, de andar).
Mas todos os calos passam.
Todos os calos, quando necessários para uma próxima jornada, haverão de passar.
Ganhe aquela alma profundamente amedrontadora por causa de um texto, em seguida de outro e depois de outro. E esse alguém perceberá que até a mais amedrontadora das almas temidas supera seus calos, revelando-se uma novalguém como qualquer outra, longe dos mantos pelos quais era coberta através das histórias alheias. E esse alguém perceberá nela uma alma, tantas e tantas décadas depois, ainda encantada pelas prosas e poesias, não só por Mallarmé, Baudalaire ou dos Anjos, mas pelas tensões criadas pelos Barretos, pelos Euclides, pelas Clarices, pelos Machados e pelas mágicas tecidas por um Guimarães Rosa. E esse alguém receberá um sutil elogio aqui e um sutil elogio ali daquela outrora alma profundamente amedrontadora.
– Não fizeste porque é perfeccionismo teu, não é?
Talvez seja essa a pergunta retórica que mais ficará na mente desse alguém, ao vir seguida de uma voz leve, pacífica, permeada de segundas chances.
Pelos tantos anos que virão à frente, talvez seja isso que fique. Pelos tantos anos que virão à frente, depois que todos os maiores e menores calos tiverem passado, talvez seja isso.
Porque a escrita dá voltas – tem ela suas fases ruins e boas, mas todas igualmente reveladores em seu potencial criativo. Naquela época, por delírio criativo ou por pura carência, foi Jordana e sua jornada regada a pura ficção.
E Jordana veio e partiu – como um calo.
Hoje, foi um alento.
Alento de saber que fases ruins vêm, porém são superadas com uma excelência que não importa estar colocada em um sistema ou em uma tabela num pedaço de papel. O que vale, de verdade, é a excelência pessoal diante de todos aqueles calos vencidos.
E eles foram.
E eles serão.