Ela cobre as costas com o lençol,
como se sentisse vergonha do próprio corpo despido diante de mim. Eu não sabia
quanto tempo duraríamos, talvez as primeiras semanas, talvez os primeiros anos
ou nem sequer as próximas horas, mas eu beberia por uma eternidade daquela
suave sensação de compartilhar com alguém o suor e a respiração levemente
ofegante, já recuperada, em meio à madrugada. Estava deitada de costas, o rosto
apoiado pelas mãos, parcialmente em cima de mim. Daquela posição, eu podia
sentir seu rosto direcionado ao meu, olhando-me com certo interesse enquanto eu
fitava o teto com uma expressão talvez compenetrada, mas que no fundo não
passava de boba euforia e alegre reflexão.
Ela ajeitou o cabelo negro e
bagunçado.
Retomou o assunto que havíamos
começado antes de interrompermos para obrigações mais urgentes:
- Tu me explicaste uma vez que odiava
quando te pediam pra escreveres um texto pra elas.
- Ah, foi. Vai me pedir que eu faça
isso?
- Tu já fizeste.
- Ih, é verdade. Perdeu otária.
Ela esboçou uma risadinha e mordeu
meu ombro. Em resposta, circundei com o indicador as manchinhas em seu ombro
que imediatamente a fez entender a referência, mostrando-me aqueles brilhantes dentes
pequenininhos.
- Algumas meninas me pediam isso
antigamente, mas todo mundo tinha dezessete anos nessa época.
- Quem desenha também tem esse grilo.
– Deu de ombros, numa clara tentativa de justificar meu ato. – Porque todo
mundo pede pra ser desenhado, já reparou?
- É um saco.
- Eu me mataria se as pessoas
pedissem todo dia que eu fizesse uma planta pra casinha dos sonhos delas.
- Finalmente alguém que entende o que
digo.
- É, eu entendo, mas... – E aí
esgueirou-se um pouco mais sobre mim, num tom de voz oportunista. – E aí, me
diz, nessa atual conjuntura da tua vida, posso ser a Maria?
- Não dá pra esquecer isso?
Eu não devia jamais ter contado sobre
House of Wolves. Ela não devia jamais ter perguntado sobre. Cocei a cabeça com
uma careta e ela continuou, imitando minha frase:
- Perdeu,
otário.
- Belessa.
Uma vez me perguntaram se eram a Maria. – Mordi o lábio, zombeteiro.
- E aí, o que tu fizeste?
- Eu enrolei.
- Que canalha!
- Aí perguntaram “eu sou a Lúcia, né?”.
- E aí?
- Deixei em aberto.
- Que filho da puta, mano!
- Ou talvez tenha apenas mentido.
Acho que menti, no fundo eu sabia a verdade.
Ela gargalhou. Estava à par demais
daquela história e tapava a boca com as mãos, sempre com a humana e filosófica
preocupação de não ser ou soar tão maldosa.
- Essa tua lua em capricórnio te
demoniza.
- Verdade. – Desviei os olhos do teto
para os olhos escuros dela, organizei com a ponta dos dedos os cabelos
bagunçados, afastando a franja da testa e dando ali um beijo calminho e
carinhoso. Aí balbuciei, sugestivo: – Mas a minha Vênus compensa tudo.
- É, bem fodido e apaixonadinho.
- Achei que fosse tudo a mesma coisa.
– Sussurrei.
Ela sorriu e passou um braço em volta
de mim, apertando como todo bom felino costuma fazer em dias chuvosos.
- Eu sei que no fundo desse coração
meloso tem um canalha imprestável, mas o que eu quero saber é se eu sou a
Maria.
- Atualmente?
- Não, que mané atualmente. –
Mordiscou novamente meu ombro.
- Quer ser a Maria?
- Quero saber se você projeta em mim
coisas da Maria.
- Por que tanto interesse na Maria? Que
tal ser a Lúcia?
Ela gargalhou aquela gargalhada
gostosa e me mostrou o dedo do meio. Em seguida, um beijinho. Sempre desfazia
um ato violento ou ofensivo com um carinho imediato, maneira admiravelmente
astuta de ser passiva-agressiva.
- Certo. Então digamos que a profecia
se cumpra e você se torne a Maria...
- Uma projeção dela. – Corrigiu.
- Beleza. Então digamos que a
profecia se cumpre e você se torne uma projeção da Maria. – Ela assentiu,
atenta. Aproximei o corpo ao dela, como se ainda houvesse espaço a ser
contemplado. As costas dela estavam completamente nuas, já não tão suadas, mas
o leve contorno que lhe eram as nádegas ainda estavam escondidos sob o lençol.
Passeei a os dedos pelas costas, subindo e descendo ao longo da coluna. –
Acontece que talvez com a Maria as coisas não terminem bem.
- Ah, merda, eu sabia. Por isso essa
relutância toda?
- Por isso essa relutância toda.
- Tu sabes que é só uma historinha,
né?
- A vida andou imitando a “arte”
muito bem, ultimamente.
- Acho que tu deverias escrever
histórias menos tristes. Nem todo mundo vai te deixar ou te trair na vida,
Felipe.
- É verdade, mas a felicidade não
rende boas histórias. Dor, lágrimas, chifres e sofrimentos, sim.
- Ah, é?
- É.
- Frozen é legal.
- Up é melhor.
- Ruby Sparks, eles ficam juntinhos.
- Na verdade, é sugerido.
- Ficam juntos.
- Talvez.
- Cadê meu ultrarromântico favorito?
O que fizeram com ele?
Fingi uma carranca.
- Tem aquele com o Bradley Cooper e o
cara da Lolita.
- Sei qual é, mas esse filme é
sacanagem, Fê.
- Sim, porque é triste e legal.
- Hum...
- Dois...
Outra mordiscada no ombro, outro
beijinho.
- Você não precisa ser a projeção de
porra alguma do que escrevo. Não preciso que seja projetada pra que eu escreva
sobre ti.
- Lembra aquela frase em 500 dias com ela?
- Qual?
- Alguma coisa sobre mulher e
literatura ou quando você escreve sobre...
- “Henry Miller disse que a melhor maneira de superar uma mulher é
transformá-la em literatura”. Caralho, claro que lembro. Casa comigo, por
favor!
- Mas é claro que eu caso.
Às vezes, ela me parecia uma típica
francesa saída de um filme da década de noventa com aquele cabelo meio Chanel e
a franjinha que vivia balançando sobre a testa. Havíamos assistido aos mesmos
filmes nos últimos 24 anos e mais da metade das obras ou vídeos idiotas do
youtube mencionados eram, imediatamente, aplacados por um “sim, eu conheço!” deveras eufórico.
Apertei-a entre meu corpo e puxei-a para
mais perto.
- O problema é que eu não quero te
superar, muito menos que tenha o mesmo destino que Maria. Quer dizer, a Maria
tem um destino bom, o narrador, não. Não quero mais ser o narrador, não por
enquanto. Não contigo.
- Não precisa ser.
- Perfeito.
Então passou uma das pernas delicadas
e finas pela minha cintura e posicionou-se sobre mim, enquanto mergulhava o
rosto entre meu pescoço. Notei que apesar da troca de posição, o lençol não
saía ao redor da bunda. Ela prostrou-se e ergueu o tronco, de repente esquecendo
da vergonha de mostrar-se despida diante de mim.
- Eu não sou uma garota de dezessete
que pede que escrevas pra mim, mas o que preciso fazer pra que...
- Pra que...?
- Pra
que escrevas sobre mim?
- Ahhh... – E fiz, não tanto pela
revelação, mas sim pelo singelo movimento que fez com os quadris. – Vai ter que
se esforçar. Eu sou difícil de convencer.
- Com essa vênus em Peixes? – Sorriu
daquela forma meio canalha, inclinou-se pra empregar um beijo no meu pescoço
outra vez, agora que descobrira o ponto fraco. Suspirou devagar, o hálito
quente contra minha pele. – Eu duvido bastante.
- Eu já escrevi.
- Escreve mais. – Apoiou as mãos no
meu peito.
- Vou pensar.
- Me dá um nome de mentira. – Afundou
as unhas no meu peito.
- Tipo qual?
- Seja criativo, sr.
Escritor-Intelectual. – Apertou as unhas no meu peito.
- Ah, vá se foder.
- Sozinha? Não, não. – Arranhou as
unhas no meu peito.
- Sozinha não? – Olhei para aquelas
longas e magras mãos de esmalte negro e descascado. O quão clichê seria lembrar
que ela esteve mordendo o lábio inferior naquele instante? O quão clichê seria
colocar, nestas linhas, que ela
esteve mordendo o lábio inferior naquele instante? Foda-se. Ela mordia o lábio
inferior naquele instante. – Então me chama.
- Já chamei, bestão.
Pensei em Minerva. Talvez Minerv...
Mi... Milena.
Pensei em Vênus. Talvez Ven... Ver...
Verônica.
Pensei na última boa música que
escutara com nome de garota.
Pensei na noite em que nos
conhecemos, a luz avermelhada do Café com Arte, sentados no banco sob a árvore.
Contei que estava preso há meses nas páginas de Chuck Palahniuk, porque não
conseguia e nem queria chegar ao fim de um dos livros que mais me reviravam do
avesso e deixava meus nervos à flor da pele. Já ela, contou-me sobre a webcomic
que andava lendo, “Jordana”. Havia nela Jordana e sua filha, Eva.
Eu poderia chama-la de Eva, mas já
possuo uma Eva em meu catálogo de personagens.
Seria pedantismo demais.
Jordana era perfeito.
Perfeito do mesmo modo como ela
encaixava o quadril sobre o meu e continuava a arranhar o meu peito. Pousei a
mão esquerda na lateral da cintura dela, apertei por um instante, pensei em
conduzi-la no movimento, mas ela sabe bem demais o que faz, então deixei que
prosseguisse – permito que ela assim o faça por enquanto, pelo tempo que quiser.
Era ela quem estava no comando.
Clichê verossímil ou não, ela continua
mordendo o lábio, continua a me olhar com aquela fúria compassiva.
Maria alguma me olharia desse jeito,
somente Jordanas têm esse olhar.
É, acho que escolhi um nome.