14 de março de 2020

Esboço




Este é o esboço de uma cena. Uma dúzia maldita de bêbados espalhados pelo salão, barrigudos fedorentos foragidos da justiça devido a pensões atrasadas. Eles bebem e apostam sinuca, não fazem barulho pois ainda mantêm o cavalheirismo: a mulher no palco está tocando. Ela tem cabelos castanhos oleosos, emaranhados, mais por desleixo que por estilo – e tudo bem. Ela arranha na guitarra um solo melancólico, acordes tristes de uma canção há muito escrita por algum homem de preto. Os olhos dela caem até o chão, de lá não conseguem levantar e ali parecem de acordo num nível adequado de áurea. É pela música? Aqueles homens, todos aqueles velhos bêbados, não saberiam dizer nem se houvessem passeado pela superfície do questionamento – e tudo bem. O solo melancólico continua: aqueles olhos caídos, aquela voz sonolenta enrolando-se na letra da música como dois amantes abusivos e desvairados prestes a se matar depois do primeiro orgasmo. A quem pertencerá? Ninguém sabe – e tudo bem. A mulher continua com o solo que faz um barrigudo errar a  bola 7. O outro barrigudo, o barrigudo-adversário, se posiciona e encaçapa a 6, a 2 e então a 8. Fim de jogo. A música fez isso, a música da mulher com os olhos no chão, com olheiras em volta deles, com a pele tísica, com o filho frio, silencioso e envolto por um caranguejo dentro de um túmulo, e tão brevemente ela mesma presa ao balançar de uma corda – talvez esta seja a última canção da noite e a última de sua vida. A mulher se chama Lira, tal o instrumento que Hermes deu a Febo Apolo para conciliar aquela confusão com os bois e que no fim em nada deu – e tudo bem. 
O solo continua.
A mulher que se chama Lira canta.
Os homens fazem silêncio.


Love is a burning thing
And it makes a firery ring
Bound by wild desire
I feel in to a ring of fire


E a cena termina aqui.
Pois assim são os esboços.



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