10 de maio de 2024

mínimo




06/23


O passado não me assusta tanto quanto deveria, não diária nem constantemente, exceto quando

adiante miram os meus olhos, rumo ao futuro, às novas mãos amigas e aos novos universos desbravados, contatos e afetos e leitores e críticos. Acima de tudo esses últimos: desdobramentos do meu eu, não o antigo, porém o novo, este mais maduro que o de antes, menos homem que o que deveria, mais impaciente e mais seleto, mais envergonhado pelo que ontem foi pura pirraça e pelo que hoje é danoso desgosto; novas faces da minha, mitoses perfeitas do que de mais autopunitivo há de mim sobre mim.

O passado não me assusta tanto quanto deveria, é só diante do futuro que ele se lança. Pois se sou a somatória de todos os meus erros, mesmo que tenham sido alguns, então ainda sou cada um deles? Em algum ponto? Um homem é aquilo que dizem dele, o que há muito disseram ou um homem ainda tem chances de ser outra coisa, qualquer coisa? Eu sou tudo aquilo, eu fui tudo aquilo ou não sou mais o que fui?

(assim bem tento, assim bem sei).

Que importa?

A verdade é só uma e a verdade é que algumas delas são imutáveis e estão lapidadas na pedra. Sob sol e chuva. Vento e vilania. A verdade é o que outros cospem. Imutável como a vida. Estática como a química de nossos corpos. Dita. Jamais desfeita. Absoluta como todo documento histórico. Alheia de futuros recortes. Alheia de alma e coração. Alheia de chances ou de imparciais recomeços.

O passado não me assusta tanto quanto deveria, exceto quando bate à porta, cerca-me os círculos, expõe antigas línguas sabedoras dessa verdade. Pois o passado é presente quando insiste em arder nos confins da lembrança – e no peito daqueles e daquelas que penaram. E se arde, queima. E se queima, está aqui: produzindo ainda queimaduras mais ou menos visíveis, postas na pele ou sob ela como tatuagem.

O passado não me assusta tanto quanto deveria, só quando vem a

sombra do assombro, o futuro e provável e talvez improvável ou nem tanto assim comentário. A reminiscência, o consequente conhecimento de que, da parte de cá, nunca foi escondido, mas sempre escrachado, pois se desejam saber o que fui e quem sou, que olhem para o dia de meu pecado, a fera que fui, a fera pouco distinta que nada teve de tão diferente das outras feras e dos outros animais que diariamente topam em nossos ombros, tecem palavras levianas, empunham piadas e adagas, esmigalham corações, esfarelam cabelos e fazem das outras vidas meras lápides. Eu fui a besta enjaulada e estive a um, a dois ou a três passos de romper o cárcere. Saibam. Saibam disto. Saibam que eu sei. Saibam que eu sempre soube. Saibam que estas palavras são, antes de mais nada, primeiramente anunciadas a mim, para só então, sob a permissão do cilício, serem apontadas aos outros, ao presente-passado de outras feras que um dia, quem sabe, e com sorte, talvez tenham um futuro de autoconsciência, de reparo e de vergonha – pois é do arrependimento, da pedra atirada e da face ferida, e tão somente deles, que vêm

as boas atitudes,

as obrigações,

os deveres,

o mínimo – e nem mais este há de bastar.

 

 

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