06/23
O
passado não me assusta tanto quanto deveria, não diária nem constantemente,
exceto quando
adiante
miram os meus olhos, rumo ao futuro, às novas mãos amigas e aos novos universos
desbravados, contatos e afetos e leitores e críticos. Acima de tudo esses
últimos: desdobramentos do meu eu, não o antigo, porém o novo, este mais
maduro que o de antes, menos homem que o que deveria, mais impaciente e mais
seleto, mais envergonhado pelo que ontem foi pura pirraça e pelo que hoje é
danoso desgosto; novas faces da minha, mitoses perfeitas do que de mais autopunitivo
há de mim sobre mim.
O
passado não me assusta tanto quanto deveria, é só diante do futuro que ele se
lança. Pois se sou a somatória de todos os meus erros, mesmo que tenham sido
alguns, então ainda sou cada um deles? Em algum ponto? Um homem é aquilo que
dizem dele, o que há muito disseram ou um homem ainda tem chances de ser outra
coisa, qualquer coisa? Eu sou tudo aquilo, eu fui tudo aquilo ou não sou
mais o que fui?
(assim
bem tento, assim bem sei).
Que
importa?
A
verdade é só uma e a verdade é que algumas delas são imutáveis e estão
lapidadas na pedra. Sob sol e chuva. Vento e vilania. A verdade é o que outros cospem.
Imutável como a vida. Estática como a química de nossos corpos. Dita. Jamais
desfeita. Absoluta como todo documento histórico. Alheia de futuros recortes.
Alheia de alma e coração. Alheia de chances ou de imparciais recomeços.
O
passado não me assusta tanto quanto deveria, exceto quando bate à porta,
cerca-me os círculos, expõe antigas línguas sabedoras dessa verdade. Pois o
passado é presente quando insiste em arder nos confins da lembrança – e no
peito daqueles e daquelas que penaram. E se arde, queima. E se queima, está
aqui: produzindo ainda queimaduras mais ou menos visíveis, postas na pele ou sob
ela como tatuagem.
O
passado não me assusta tanto quanto deveria, só quando vem a
sombra
do assombro, o futuro e provável e talvez improvável ou nem tanto assim comentário.
A reminiscência, o consequente conhecimento de que, da parte de cá, nunca foi
escondido, mas sempre escrachado, pois se desejam saber o que fui e quem sou,
que olhem para o dia de meu pecado, a fera que fui, a fera pouco
distinta que nada teve de tão diferente das outras feras e dos outros animais
que diariamente topam em nossos ombros, tecem palavras levianas, empunham
piadas e adagas, esmigalham corações, esfarelam cabelos e fazem das outras
vidas meras lápides. Eu fui a besta enjaulada e estive a um, a dois ou a três
passos de romper o cárcere. Saibam. Saibam disto. Saibam que eu sei.
Saibam que eu sempre soube. Saibam que estas palavras são, antes de mais
nada, primeiramente anunciadas a mim, para só então, sob a permissão do
cilício, serem apontadas aos outros, ao presente-passado de outras feras que um
dia, quem sabe, e com sorte, talvez tenham um futuro de autoconsciência, de
reparo e de vergonha – pois é do arrependimento, da pedra atirada e da face
ferida, e tão somente deles, que vêm
as
boas atitudes,
as
obrigações,
os
deveres,
o
mínimo – e nem mais este há de bastar.
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