3 de fevereiro de 2015

Sr. Muckie-Duckie



O senhor Muckie-Duckie tinha imensas olheiras sob os olhos. Aqueles olhos que já não eram naturalmente tão expressivos, muito menos vivos, não possuíam lá tanta vivacidade, e agora tinham olheiras imensas, monstruosas, do tamanho de devoradores de planetas. Pobre senhor Muckie-Duckie, diziam as boas línguas. Ele que um dia fora bem sucedido em seu ramo honesto e modesto de levar a vida, logo ele, o senhor Muckie-Duckie, que acordava cedo todas as manhãs depois de oito horas e meia de sono, ia à padaria, assistia aos jornais e documentários sobre a formação do universo no canal fechado. Pobre senhor Muckie-Duckie, diziam igualmente as más línguas: logo ele, tão sujo e cheio de si, ostentador de universos femininos em sua cama, em seus meios, em seus dedos, em seu ofício. Agora, tanto tempo depois daquela época tão duradoura de sucessos e sorrisos, agora limitava-se a um torcer de beiços, um arquear mofino de sobrancelhas que quase não existia, um dobrar de pés de galinha em volta dos olhos tão escuros, jovens, porém idosos, e, claro, repleto daquelas olheiras agressivas.
Pobre senhor Muckie-Duckie. Pela tentativa de um feito nobre, caiu em desgraças e equívocos, pintou o negro quando quis pintar o branco, tocou uma estridente nota aguda quando quis suavizar uma melodia grave, calma, tranquila e bondosa. “A maldade, sr. Muckie-Duckie”, diriam as boas e más línguas, “está em não fazer o que se deseja”, e foi tudo o que o pobre e velho senhor Muckie-Duckie andou fazendo com aquelas pesadas olheiras. Largou a padaria pela manhã, largou os documentários de como nascem as estrelas – talvez, agora, irônica e literalmente, para “como morrem os planetas” -, deixou até de caminhar pelo sol poente com as ideias do ofício, esquecendo-se do trabalho, das memórias, e de tudo o mais que o fazia ser o velho senhor Muckie-Duckie de sempre.
Em uma terça-feira qualquer, um de seus vizinhos, aquele pirralhinho filho da Marta e do Jurandir, vai chutar uma bola no jardim do senhor Muckie-Duckie. O senhor Muckie-Duckie gritará um palavrão, tomará uma tesoura entre os dedos e fará o serviço que o ânimo o ordenou. Pobre menininho, vai chorar e reclamar com os pais. Marta vai abraçá-lo e xingar o algoz. Jurandir vai no máximo baixar os olhos e fingir que nada aconteceu.
Jurandir sabe que a culpa não é do senhor Muckie-Duckie.
São aquelas olheiras – malditas olheiras.


Nenhum comentário:

Postar um comentário