1 de julho de 2015

Circo




Eu ri daqueles músculos e o modo como se distribuíam pelo corpo, como eram expostos em fotografias e todas as suas veias e suor e anabolizantes expelidos por substâncias exócrinas e toda aquela coisa técnica que nem eu sei o nome, muito menos eles.
Eu ri de tudo aquilo, e confesso que o fiz por prazer. Confesso ainda que sentia-me superior a tudo: essa devoção ferrenha à construção religiosa de tantos músculos e bíceps e tríceps e quadrociclos e aquela porcaria de música eletrônica tocando na academia, aquela fossa musical e espiritual que me deprimia com tanta comicidade. Confesso que ri – e confesso que, secretamente, ainda o faço bem no fundo. Todos aqueles cabelinhos penteados pra trás com um gel meloso ou a gola V Pólo com manga baby look realçando braços bem torneados e tatuagens tribais. Também obriguei-me a rir das garotas: calças coladas muito bem agraciadas, porém com uma meia quase na altura do joelho com uma cor limão-luminoso que descia até os sapatos de um rosa misturado com alaranjado estilo pisca-pisca da Estrela. Ri também do modo como elas se devotavam aos cantores sertanejos e vestiam exatamente o mesmo tipo de roupa em comitivas de forró, com uma fotografia bem delineada com seus corpinhos bem alienados segurando um copo bem cheio de cerveja na mão – ou outras bebidas, porque “nossa, veja como ela/ele bebe, nossa, que sinônimo de respeito, puta que o pariu, nem tem mais fígado, né? Que invejável. Caralho, tanta gente aí fazendo coisas memoráveis, mas isso, isso realmente é digno de respeito!”. Confesso pela divindade mais bem honrada na história da humanidade que pus-me a rir em escárnio a toda aquela imundice de existência.
Só que enquanto eu ria, havia atrás de mim de braços cruzados, com um fungar irritado nos lábios e uma fúria bem contida. Ela queria me chutar, espancar-me e por-me no chão – claro que metaforicamente. Desejava tudo isso com o mesmo ato que o meu, ela também ria de mim: ria pelas coisas que eu assistia, ria pelos heróis que eu venerava e o modo como eu me divertia dentro de um cinema, na mesma sessão em que uma centena de criancinhas se divertia com igualitária tonalidade. Ela ria pelas leituras que eu possuía (tanto de mundo quanto na cabeceira da cama); ria pela minha aparente e comprovada imaturidade, ria da minha inocência, da minha imbecilidade, dos óculos que eu usava e até do jeito como me portava em determinadas localidades no mundo virtual e fictício. Ela ria inclusive por eu ser criança, ria por ser mais esperta que eu e mais sabida, mais consistente em seus diálogos e todo seu olhar de repulsa pelas coisas que já pensei, vivi e senti. Ela ria pelas minhas costas, ria porque sentia-se superior (e sabia que de fato o era) por eu ter cometido jogadas erradas com peças erradas e parceiros errados, por ter feito cagada e por ser como era – de um modo geral. Ela ria com os braços cruzados, porque sabia que eu era menos, e se não sabia, apenas fingia que era verdade com uma convicção tão violenta que me fazia retroceder e dar o braço a torcer. A pessoa era uma, era duas, era três. A pessoa era mil. E de alguma forma andava aos montes por aí, com uma centena de nomes diferentes e superiores, rindo de mim da mesma forma (que eu garanto) que esses engomadinhos metidos a beberrões e ratos de academia acham-se superiores a alguns ou a todo mundo – mas, ora, nem de longe eles são, certo?!
A pessoa ria pelas minhas costas. Gargalhava. Rolava pelo chão. Apontava os dedos para mim. Sentia a cólica esmagar seus órgãos internos como um alien enfurecido tentando sair do casulo. Ela ria freneticamente. Louca. Lagrimando. Sabendo que eu era um inútil diante dela.
Atrás dela havia mais alguém – provavelmente uma criancinha mimada filhinha de papai de vinte e tantos anos, amante do fervoroso e santificado ato de glorificar a Deus e falar mal dos irmãos, que tinha tudo em casa e frequentava os melhores lugares (ou ao menos desejava ser como aqueles que frequentavam os melhores lugares), que amava declarar amor por comida e sono, que amava ser uma inutilidade ambulante e que amava, acima de tudo, achar-se superior à pessoa que ria de mim.
Eu ria deles, ela ria de mim, e a criancinha ria dela. Todos estão rindo de todos, apontando o dedo e rindo, rindo e rindo.
É um circo desgraçado de primeira, podre, fétido e maléfico, com palhaços indignos de superioridade e respeito caçoando uns dos outros, cuspindo uns nos outros, achando-se maiores enquanto são subjugados por outro lixo qualquer acima deles. Uma porcaria sobre a outra, rolando numa fossa gigantesca: uma hora em cima, uma hora em baixo, em cima, em baixo, em cima, em baixo. Rindo e rindo da miserabilidade alheia. Todos uns palhaços.
 É um circo e tanto.



2 comentários:

  1. O ser humano nunca foi algo muito útil visto por toda a sociedade, não é mesmo?
    As pessoas vivem julgando, nem sempre se sente superiores, às vezes julgam por se acharem inferiores e assim o querem fazer com todo o resto do mundo.

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    1. Exato. Todos julgando todos, independente do lugar que se sintam ou que estejam. Alguns mais, outros menos, mas sempre julgando.

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