Perdoe-me pela notícia: você está morta.
Perdoe-me por ser tão abrupto nas
breves palavras, mas na falta delas os sussurros já se faziam claros há algumas
estações. Perdoe-me também por abandoná-la em qualquer esquina ou em uma
segunda-feira qualquer, ante o desespero de encontrar forças para uma
significação última que eu, bobo, não notara o desaparecimento. Perdoe-me por
desová-la em um beco qualquer, de uma ruela qualquer, de um bairro qualquer. Perdoe-me
por não honrar o romance que trouxe comigo por toda “nossa” existência, mas fui
eu a carregar esses dois corpos que não mais unidos eram – carreguei-a com meus
ombros ralados, sustentei-a com meus braços vacilantes, fui até o fim enquanto
todas as línguas duvidam do meu fervor e caçoavam da missão. Perdoe-me,
inclusive, por não ceder à palavra mais reles, impura e indigna do teu rosto: é
que desapego nunca esteve no meu
dicionário tão facilmente como nos dicionários de todos os outros. Daí o fato
de eu carregá-la tão longe, daí o fato dessa jornada ter durado praticamente
uma vida inteira, afinal o tempo é longo para aqueles que pelejam. Perdoe-me
por hoje calar-me nas palavras (perdoe-me
por nem sequer tê-las como outrora), por carecer o que antes foi meu
combustível diário, mas a verdade em si é que sua morte não ocorreu de um dia
para noite: ela foi gradativa enquanto nem eu percebia, ela foi gradativa
quando nem eu queria. Você morreu em uma esquina qualquer em uma quarta-feira
temorosa, quando em uma canção busquei em ti os vestígios da vida passada – a nossa vida passada, pelo menos na vã
utopia do meu íntimo. Você morreu quando encontrei na busca de uma canção para
ti, o abrigo em outra. Você morreu quando encontrei abrigo em uma improvável,
mais acolhedora, mais real e mais quente morada. Perdoe-me por nunca
oficialmente enviá-la um adeus, é que julguei desnecessário: há tempos só havia
ecos por essas bandas de gritos meus desesperados, carentes por atenção e
carentes por um retorno impossível. Estive aqui por tempo demais, construindo
dedicações primorosas que cedo ou tarde o tempo apagaria o significado,
permanecendo somente o estético.
Perdoe-me pela sua morte, mas ela foi
tão necessária para mim quanto o sopro de vida para um messias. Sua morte não
se deu em um raiar de sol, deu-se por uma estação inteira, maturando a próxima,
preparando-me para a desesperada experiência de ser menino de novo, imaturo,
desconhecedor do mundo e dos segredos escondidos em longos cabelos. Agora eu
troquei a cor, troquei a pele, troquei os sonhos e troquei o arranjo das letras
do nome. Agora eu troquei de vida, embora não tenha a mínima certeza do quão
longe esta estação irá – o tempo não importa, pois enquanto carrego esta nova estação
com todo vigor meu, para o relógio não ouso olhar. Uma vida se passou e que
agora outra vida igualmente se passe. Que outro corpo eu carregue pela próxima
meia-década, que outras tão belas e primorosas palavras eu construa, que a
atual vida me renda também boas construções, boas memórias e belos significados. Atualmente, muito mais
do que você jamais rendeu, pois eu mais
te carreguei do que te devorei.
Perdoe-me por não glorificar sua
morte, perdoe-me por “esquecê-la tão
rápido” como dizem os olhos alheios.
É que encontrei eu vida melhor no
caminho.
Perdoe-me pela sua morte, é que encontrei
eu vida melhor no teu natural esquecimento – a melhor coisa que me aconteceu.
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