1 de julho de 2016

Perdoe-me pela sua morte



Perdoe-me pela notícia: você está morta.
Perdoe-me por ser tão abrupto nas breves palavras, mas na falta delas os sussurros já se faziam claros há algumas estações. Perdoe-me também por abandoná-la em qualquer esquina ou em uma segunda-feira qualquer, ante o desespero de encontrar forças para uma significação última que eu, bobo, não notara o desaparecimento. Perdoe-me por desová-la em um beco qualquer, de uma ruela qualquer, de um bairro qualquer. Perdoe-me por não honrar o romance que trouxe comigo por toda “nossa” existência, mas fui eu a carregar esses dois corpos que não mais unidos eram – carreguei-a com meus ombros ralados, sustentei-a com meus braços vacilantes, fui até o fim enquanto todas as línguas duvidam do meu fervor e caçoavam da missão. Perdoe-me, inclusive, por não ceder à palavra mais reles, impura e indigna do teu rosto: é que desapego nunca esteve no meu dicionário tão facilmente como nos dicionários de todos os outros. Daí o fato de eu carregá-la tão longe, daí o fato dessa jornada ter durado praticamente uma vida inteira, afinal o tempo é longo para aqueles que pelejam. Perdoe-me por hoje calar-me nas palavras (perdoe-me por nem sequer tê-las como outrora), por carecer o que antes foi meu combustível diário, mas a verdade em si é que sua morte não ocorreu de um dia para noite: ela foi gradativa enquanto nem eu percebia, ela foi gradativa quando nem eu queria. Você morreu em uma esquina qualquer em uma quarta-feira temorosa, quando em uma canção busquei em ti os vestígios da vida passada – a nossa vida passada, pelo menos na vã utopia do meu íntimo. Você morreu quando encontrei na busca de uma canção para ti, o abrigo em outra. Você morreu quando encontrei abrigo em uma improvável, mais acolhedora, mais real e mais quente morada. Perdoe-me por nunca oficialmente enviá-la um adeus, é que julguei desnecessário: há tempos só havia ecos por essas bandas de gritos meus desesperados, carentes por atenção e carentes por um retorno impossível. Estive aqui por tempo demais, construindo dedicações primorosas que cedo ou tarde o tempo apagaria o significado, permanecendo somente o estético.
Perdoe-me pela sua morte, mas ela foi tão necessária para mim quanto o sopro de vida para um messias. Sua morte não se deu em um raiar de sol, deu-se por uma estação inteira, maturando a próxima, preparando-me para a desesperada experiência de ser menino de novo, imaturo, desconhecedor do mundo e dos segredos escondidos em longos cabelos. Agora eu troquei a cor, troquei a pele, troquei os sonhos e troquei o arranjo das letras do nome. Agora eu troquei de vida, embora não tenha a mínima certeza do quão longe esta estação irá – o tempo não importa, pois enquanto carrego esta nova estação com todo vigor meu, para o relógio não ouso olhar. Uma vida se passou e que agora outra vida igualmente se passe. Que outro corpo eu carregue pela próxima meia-década, que outras tão belas e primorosas palavras eu construa, que a atual vida me renda também boas construções, boas memórias e belos significados. Atualmente, muito mais do que você jamais rendeu, pois eu mais te carreguei do que te devorei.
Perdoe-me por não glorificar sua morte, perdoe-me por “esquecê-la tão rápido” como dizem os olhos alheios.
É que encontrei eu vida melhor no caminho.
Perdoe-me pela sua morte, é que encontrei eu vida melhor no teu natural esquecimento – a melhor coisa que me aconteceu.



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