Tenho comigo dois pedaços de algo quebrado, duas partes roídas de
duas peças que não se encaixam, duas peças de um jogo de tabuleiro que foi
consumido, analisado e devolvido, retirado de todas as prateleiras das lojas ao
longo deste solo roubado.
Fora de estoque por decreto inviolável, as peças – as duas únicas
produzidas de maneira equivocada num processo de larga escala industrial – não
se encaixam, defeituosas por si só; as duas únicas que elevaram e puseram
abaixo um jogo intrincado e promissor de leituras esotéricas, fontes ocultistas
do leste europeu, galerias intermináveis de volumes nomeados por Helena e por
Blavatsky; intrincados e tão belos politeísmos, reflexões sobre a vida além
desta via Láctea e uma composição das mesmíssimas canções reunidas numa
espantosa e coincidente ordem, em ocasionais coincidências
termodinâmicas, milagres. Um jogo que
um dia possuiu todas as expectativas das listas dos maiores sucessos de todos
os tempos, dos mais vendidos ou, no mínimo, com as mais promissoras chances de ser esquecido, abandonado e
apaziguado pelo público massivo, e portanto apreciado apenas por seus seletos e
quase raros jogadores.
Um jogo que não era, em si, um jogo.
Peças que não eram, em si, peças de um quebra-cabeça, tampouco os
encaixes de uma Rainha Preta ao encontro derradeiro e quiçá romântico de um Rei
Branco, não pela óptica do iminente xeque-mate, mas sim pelo encontro
pré-definido, independente das cores, independente das estratégias ou das
tragédias.
Duas peças que não eram, em si, apenas peças, mas duas asas de
cores, músculos e cicatrizes destoantes. Ou talvez dois pares inteiros delas,
com o único e quase litúrgico mistério de se saber, precisamente, a quem de
fato pertenciam.
Duas peças fora de um jogo esquecido, que não era um jogo em si,
como bem supracitado.
Dois pedaços de algo.
Não para cobrir estratégias vis.
Não para suprimir tragédias ruins.
Duas peças num tabuleiro de encaixe.
Precisas,
como num salão
e agora num bolso.
Duas peças numa dança.
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