22 de março de 2021

Tartaruga

Old French Fairy Tales by Virginia Frances Sterrett (1920)



as winter approaches

the panted turtle burrows into the mud

to avoid the harsh cold

and holiday family parties.

 

(Autor desconhecido)

 

Nesta cidade, dizia-se que  Celina era um recipiente podre, um corpo ambulante de drogas vivas. Olhavam e viam nela a figura carimbada de doces, ácidos e coisas mais. Coisas mais porque eu não entendia tanto sobre drogas como gostaria de entender para confeccionar minhas linhas ou o quanto aparentei conhecê-las tão empiricamente em outras histórias, portanto deixava a cargo dos aventureiros. Talvez, se a encontrasse por aí, quem sabe me ensinasse não com exemplos práticos, mas com toda a forma didática com a qual possuía a capacidade de esclarecer tais dúvidas de roteiros psicodélicos e melhores rotas de fuga. 

 Celina já era uma professora formada com credenciais certificadas, honras aos méritos e uma infinidade de outras parabenizações no assunto. 

Nesta cidade (e aparentemente em todas as outras), ter conhecimento e vivência da causa parece uma regalia social garbosa, detentora de um charme bobinho, transcendental e espiritualizado. Era possível conhecer uma trupe inteira de monges diplomados que entupiriam frotas de kombis lotadas, com viagens às ilhas metropolitanas em passeios com cavalos estranhos e seres fantásticos mais ainda. E quanto mais especializado na área, melhor seria seu dinamismo social.

Outro dia, sem esperar por isto, reencontrei  Celina. Algo aqui dentro fantasiava o reencontro como em uma letra de música: eu entrando em uma cafeteria e ela ali, sentada. E o resto seria como em uma letra de country-meio-blues-com-final-triste. Mas esse é o final planejado de outra narrativa em outro plano de lobos interdimensionais, aqui nem caberia citação. No entanto, foi um encontro normal de conversas normais. 

— Oi, como vai você? 

— Ah, eu vou bem — era a minha resposta automatizada. A resposta de  Celina não automatizada era um sorrisinho cabisbaixo, típico dos que se acostumaram a responder sinceramente a perguntas. 

Em seguida, vieram as notícias sobre a mãe, sobre a irmã, sobre o mergulho fundo dado pela velha e sobre o mar colorido e destoante no qual ela mesma, como filha, também mergulhara. Sentamos não em uma mesa para um café, mas para uma gelada. Celina tratou logo de acender um cigarro e me ofereceu, coisa que nenhuma de nós andava negando durante aqueles tempos. A moça divagou por mais lembranças de caminhos desastrosos dos quais acabamos nos perguntando o que merecíamos para tomá-los. Contou-me sobre a história do soco e do olho num interior do estado, um road movie decadente sobre o qual nunca se cogita um dia participar. Contou-me uma porção de histórias com aquela voz alterada que já não mais parecia com a de antes, mas literalmente a de outra mulher, porque os anos mudam nossas atitudes, nossos rastros, nossas impressões digitais e até nossas cordas vocais. O formato do rosto de  Celina mudara, mas nesse quesito até o meu. Nossos corpos estavam diferentes: os cabelos dela menos castanhos, menos jovialmente vivos, agora apenas um úmido caído, realçando a ponta das orelhas, enquanto os meus estavam mais quebradiços e grossos, um peso interno calcificado, os pés de galinha gradativamente mais agressivos e um mar grisalho cheio de ressaca batendo na orla. E tudo isso em menos de uma década desde o início daquela aventura.

— Mas acho que é assim — disse ela. — Acho que a vida é mais ou menos isso. 

— Pois é, né? — eu disse por fim, sádica por defesa, porém sorridente em meio ao peso psicológico das melancólicas conclusões não pronunciadas pela boca. 

Foi assim que  Celina também sorriu, porque não parecia ser o tipo que costumava extrair graça das desgraças, somente por não possuir o hábito. Só isso explicava o modo que o fez naquele instante com um avivamento específico nos olhos castanhos (que também andavam meio apagados) como se a possibilidade de fazê-lo se mostrasse uma experiência inédita. E o ineditismo da ocasião alegrou-a. Descobriu que podia rir das coisas tristes, tornar o peso delas menos pesado, embora voltem a nos esmagar logo em seguida, como bem costumam esmagar os bons e todos os pesos.

— Outro dia — falei, aos sorrisos — coincidentemente li algumas coisas suas…

A resposta que Celina deu, mesmo após uma década, foi a mesma de antes:

— Ah, não. Por que você fez isso? — Então se enfiava dentro do casco. Quando questionada, dizia que eu não devia ter feito aquilo, que eu não devia ter ido ali, que agora sentia-se julgada pela forma abstrata com que escrevia, porque não era boa como eu, como se eu fosse boa, como se eu fosse a melhor, como se eu não houvesse partido para os olhos do mundo inspirada no modo como ela já caminhava nele. 

— Às vezes você esquece que é boa nisso.

– Porra, não acredito. Você não devia ter feito isso, xxxxxxx.

Um fato sobre Celina era que ela ainda usava os apelidos cafonas, os apelidos perdidos de éons imemoriais. Porém quando percebeu a atitude, recolheu-se ainda mais dentro do casco, bebericou a cerveja e limpou a espuma sobre o lábio superior com as costas das mãos não do jeito tectônico e desengonçado como eu fazia, mas daquele jeito lento e discreto das tartarugas. 

De dentro do casco, ela tentou falar:

— Eu não sou tão boa quan…

E cortei:

— Eu perdi aquela forma de escrever — molhei lábios e garganta na cerveja. — Aquela forma sinestésica. A mistura das metáforas… Gostava de fazer aquilo, tipo como você ainda faz.

— Um bando de metáfora piegas.

— Que seja — dei de ombros. — É como se não houvesse mais coração nas coisas que faço por aqui. Ao contrário de ti.

— Ainda somos jovens.

— Cada dia menos — soltei, melancólica, mas agora sem sorrisos. — Cada vez não mais.

— Você ainda tem coração. Deve haver em algum lugar aí dentro, caso duvide ultimamente, xxxxxxx.

Fui tomada pelo silêncio instantâneo. Não que eu considerasse um coração jovial ainda batendo neste peito de alma tão tísica. Fraco, ele ainda estava por aqui, curvando-se às topadas que o confrontavam e entregando-se cada vez menos aos delírios de sonhos. Mais cansado que resiliente, não estava morto, mergulhava apenas em uma bradicardia solene. Apesar disso, fosse a terceira garrafa de cerveja, fossem as palavras de  Celina, fosse o apelido agora dito de maneira menos acanhada, a tartaruga mantinha-se no casco, mas lá de dentro me sorria. E estranhos galopes se avivaram.

— E o seu? No que anda o seu coração ultimamente? — Cortei, tarde, aquele constrangimento.

— Acho que em nada. 

— Como em nada?

— Em nada, sabe? — Bebericou a cerveja. Os olhos baixos, um castanho que nem mais era castanho. — Só em nada — as sobrancelhas arquearam rapidamente. Ela nunca ousou me olhar nos olhos ao responder aquilo. Se tivesse, eu conheceria o peso do nada

Ao invés disso, assim como eu, cortou o assunto, abrindo um sorriso que contemplava apenas as boca, porém não os olhos. Desviou-se dele com exemplar habilidade, dissolvendo minha preocupação naquele nada para mais tarde, quando eu deitasse na cama e disso relembrasse brevemente; desviou-se com exímia esperteza, esfarelando minhas conclusões e deixando-as mortas por meses adiante, quando eu só retornaria a elas já tarde demais.

As conversas que vieram no restante daquela noite foram de todo banais: uma leve discordância política, uma piada sobre nossas configurações astrológicas, uma atualização sobre nossos novos pets – pois o cachorro dela, Perseu, falecera há três anos – e mais quaisquer coisas pequenas que lembrarei com amargor de não insistir em questionar.

O nada de  Celina esteve evidente em cada conversa não aprofundada de detalhes omitidos, em cada grande coisa que tratava com pouco caso, como se a ascensão profissional pouquíssimo valesse comemoração ou como se a vitória de consumir cada vez menos um sem-número de doces, ácidos e coisas mais não fosse um contagiante avanço, embora sua reputação pela cidade ainda a precedesse. Um grande e desastroso nada, latente nas entrelinhas de suas frases, berrando ao fim de cada discurso vago. Ainda assim, ela permaneceu sentada naquela mesa por horas e horas, com um evidente interesse em continuar, apesar do desinteresse em falar de si mesma.

O nada esteve ali, aguardando para ser percebido. 

Não percebi.

Despedimo-nos com um abraço longo e apertado. Aqueles olhos castanhos tinham no nada de seu olhar uma mensagem que me escapou. Seria o convite que não fiz? Seria a deixa para estender a noite de conversas banais? Eu nunca soube.  Despedimo-nos como se não quiséssemos uma a presença da outra por toda a madrugada, por todo o resto da vida. Despedimo-nos com a falsa certeza de que voltaríamos a nos encontrar.

Meses depois, a notícia de sua partida me atingiu desprevenida.  Celina era uma tartaruga. Uma longeva criatura com a vida engolida por um impiedoso nada. Isolou-se no próprio casco. Já não via sentido em sair dali, pois não via sentido no mundo fora dele.  

Dentro do casco, a tartaruga adormeceu com uma alta dosagem de Alprazolam. Deitou-se no chão do próprio quarto e ali foi engolida pelo grande nada que naquele encontro deixei passar.

Nos fragmentos que me são a memória, junto aos galopes que deixaram de fazer barulho, só os ecos de uma distante conversa ainda me assolam:

 

E o seu? No que anda o seu coração ultimamente?

 

Acho que em nada. Em nada, sabe?

 

Só em nada.

 

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