— Sabe, eu
nunca tive pretensão de nada. Não as grandes pretensões, pelo menos.
— Nada,
nada?
— Não vou
dizer que nunca sonhei, que nunca vislumbrei um cenário diferente desse aqui —
ele bateu na mesa com o dedo indicador. — Sabe por quê?
— Por quê?
— Podes
chamar de autoestima baixa, mas eu chamo de consciência. Autoconsciência.
— Como
assim?
Ele ergueu
o mesmo dedo indicador no ar, sinalizando atenção.
— Eu já
disse isso aqui uma vez, mas de maneira mais debochada. Nunca vou perder isso,
acontece que, desta vez, eu só tô cansado. Então vou dizer de novo: uma vez
conheci um cara que vivia pelas esquinas enchendo o peito e se proclamando
escritor. Estendia a mão, dizia: "Prazer, sou escritor". Frequentava
aniversário de criança e antes de dar o presente ao aniversariante de 6 anos,
dizia: "Você está ganhando este presente de um escritor. Parabéns".
Quando terminava de gozar, anunciava às mulheres: "Você recebeu a porra de
um escritor. É o que eu sou. Gostou?".
— E daí?
— Eu odiava
esse cara. Acho que odeio esses tipos de cara.
— Por quê?
— Deve ser
frustração.
— Deve
nada. Diz aí. Por quê?
Ele deu de
ombros, confuso. Mas continuou:
—
Recentemente ouvi de uma pessoa a ideia pra um projeto. Era mais ou menos
assim: a construção da imagem do escritor no curso de Letras. Eu só soube
disso, não sei de mais nada e só o que sei foi o que comecei a pensar sobre
isso.
— O quê?
—
Antigamente eu me imaginava de algumas formas e todas essas formas foram
obliteradas, porque o tempo traz amadurecimento e a desconstrução de certas
idealizações idiotas. Bom, cabe a você amadurecer certas ideias ou projeções e
ainda bem que isso me ocorreu. Com o tempo e com a prática da vida e da
escrita, você vai largando certas atitudes, certos temas e certas tendências
estilísticas. Eu era imaturo e muito sonhador, possuía essas pretensões
imbecis de ter reconhecimento, de produzir algo relevante, algo sério. Não eram
as maiores pretensões, mas eram mínimas. Queria produzir um tema universal que,
de tão universal, poderia se encaixar em qualquer gênero periférico
menosprezado pela crítica. Afinal, é o que todos tentamos buscar e representar
no texto: a universalidade humana. Mas pra chegar nisso, é preciso prática. É
preciso que você se debruce sobre a página, porque a escrita é esforço, é
trabalho duro, é tarefa árdua. E, antes de mais nada, é estudo constante,
certo?
— Certo.
— Metade
talento individual, metade mão na massa.
— Sim.
— Mas às
vezes te falta uma dessas metades. E quando te falta uma, você se esforça na
outra. É a lógica, né?
— É.
— Pois é. É
sobre isso. Eu quero muito acreditar que você pratica até ficar bom, bom-bom
de verdade. Tradição e talento individual: segurei firme nesse ensaio do
Eliot pelos últimos anos com a mais dedicada fé. Só que com o tempo, ele me pareceu
um pastor que já não consegue segurar a ovelha desgarrada na área segura do
cercado. Eu sou a ovelha. Entende?
— Entendo.
Você agora acredita na metade do talento inerente?
—
Ultimamente? Sim. O talento do qual sou desprovido. Bem, eu só falo por mim. E
tô falando exclusivamente por mim.
— Por que
dizes isso?
— Alguns nãos
sistemáticos que recebo e o engessamento temático me dizem isso. A cada não
recebido, penso que devo parar. Devo parar. Olho para trás e sinto vergonha. Os
grandes mestres, mesmo jovens, tinham uma obra minimamente consistente ou em
amadurecimento. Você olha pra uma Helena e pensa: "bom, é, esse
aqui é o Machado, mas ainda não o Machado propriamente dito que conheceremos no
futuro. Aqui ele ainda está amadurecendo". Nem em uma vida inteira o mais
magnânimo dos meus amadurecimentos se comparará a um Helena, por exemplo.
E não, eu não quero ser um grande mestre, mas não queria me sentir envergonhado
como uma troça de mal gosto. Quando olho pra trás, tudo o que vejo é bobajada,
putaria e piada sem graça. Ressentimento pessoal posto em texto de boa
coerência e coesão, mas qualquer um, com acesso digno à educação básica de
qualidade, consegue construir um texto minimamente coerente e coeso. Às vezes,
as pessoas se emocionam e veneram textos amadores como se eles fossem grandes
obras universais, como se o sujeito por trás deles fosse uma criatura de outro
plano celestial que deve ser louvada e apreciada, enquanto reina em sua torre
de marfim Quando, na verdade, ela só escreveu um texto minimamente coerente e
coeso. É o que separa uma redação de 20 linhas de um parágrafo de um Grande
Sertão Veredas, entende?
— Sim.
— E quando
olho pra trás, tudo o que vejo é um texto minimamente coerente e coeso. Não tem
muito valor poético, não tem rebuscamento na prosa, essa sobre a qual todos os
literatos, críticos e avaliadores nacionais julgam como verdadeira
Literatura. A Literatura por si só é excludente, ela começa excludente. O
ponto de partida é a exclusão. É o que, obviamente, separa um garoto de 17 anos
escrevendo em blog de delírios amorosos de uma imortal rainha do fluxo de consciência. A
Literatura se sustenta de cânones, de rigor artístico, quer você queira, quer
não. Cabe a você correr atrás do mínimo para compor uma obra literária
aceitável que se esprema e se encaixe no espectro literário. Entende?
— Entendo.
— É um
tabuleiro de egos inflados. O que me traz novamente ao cara do início. Tem
gente que se esconde e não grita aos quatro ventos que escreve, porque não se
sente confortável com essa autoafirmação, pois não soa certificada; tem gente
que se apresenta pelo que de fato é e essa gente é uma gente respeitável; e tem
gente como esse tipo de cara: inflando o peito, apresentando-se só porque fazia
poema adorado por garotinhas emocionadas ou por camaradas coniventes de abusos.
O que me incomoda é como você usa a Literatura. Enquanto alguns estão há anos
produzindo obras consistentes e não têm reconhecimento, outros recitam rima
ABAB pelas esquinas e bares e ganham aplausos. Muitas vezes sequer se
aventuraram desde cedo na prosa, na estrutura narrativa diária, nunca nem a
praticaram. Usam o termo ESCRITOR em caixa alta, enchem a boca, pesam as
línguas. Não existe um curso de graduação que faça de você um escritor de
verdade. Carolina Maria de Jesus nunca se formou na Universidade Estadual da
Galera da Pena, mas era escritora — inegavelmente. Até aquele porco eugenista
do Monteiro Lobato afirmou em carta que é isso, que você pode não conhecer as
regras da língua, mas um escritor opera pela prática. Se até um Ku Klux Kanner
consegue escrever por meio da prática, é porque ele praticou. Às vezes, o
conhecimento teórico vem depois do domínio da ferramenta. É quando você se
especializa. E aí eu preciso ver esses sujeitos, que nunca se aventuraram pela
prosa, autointitularem-se escritores só pra comer mulher? Esse é o problema,
mas também não só esse.
— E qual é
o outro?
— Sei lá —
ele deu de ombros outra vez, tão perdido quanto no início do diálogo. — Shhhiu.
Vê só, tá escutando?
No fundo do
cenário, que poderia ser um bar de pinguços, um pub burguês no Umarizal, um
quarto fechado de janelas abertas na madrugada, uma cozinha com cheiro de ovos
fritos ou um banco úmido de praça abandonada, uma canção suavemente deslizou
pelo ar com melodia lenta e acordes de guitarra melancólicos.
— Eu queria
que o meu livro tivesse a áurea dessa música — disse ele, levemente abobalhado
como quem fala de um filho recém-nascido.
— São os Stones?
— Sim. I got the blues. Cantada ao
vivo no Marquee Club, em 1971.
— O que diz
na letra?
— Não, não.
Não é nem tanto a letra, é a áurea. É diferente.
— Por que essa
áurea?
— Porque
sim. Eu não sei. Sabe, eu não sei. Não sei de muita coisa. Lembro do Ferreira
Gullar, em 2001, durante uma entrevista ao Roda Viva, tendo de explicar todas
aquelas perguntas e questionamentos sobre a própria obra. Às vezes, você tem
consciência do que faz. E esse é um fazer artístico claro. Por outro lado,
existe um fazer artístico tão genuíno quanto o saber, que é o de não saber: ele
opera naquela área do desconhecido. Inspiração divina? Agonia humana? Tanto
faz. Não importa. Críticos literários às vezes tendem a enfeitar as obras que
estudam com muito empenho, inventam abobrinhas, dão uma volta em Freud,
retornam e se sentem mais donos da obra do que a própria obra. E aí, perguntam
ao autor: "ei, neste trecho, que permeia grande parte da sua contribuição
literária, você diz que isto aqui significa isso, logo, a conclusão que tiramos
é que esta análise embasa a teoria da qual eu estudo. Você pode nos falar mais
sobre isso?". Eis que o autor responde: "rapaz, eu não faço a mínima
ideia do que você está falando. Quem está afirmando isso é você, não eu".
Então os críticos ficam coléricos, irritados, dobram os beiços e ficam
marrentos num canto. Como assim você não pode confirmar toda essa abobrinha
que desenvolvi sobre sua obra?! Não saber é uma boa coisa também. É válido.
— Então seu
livro tem a áurea dessa música, embora nem você saiba a razão?
— Tem. Ou
queria que tivesse. Mas não vai ter.
— Por quê?
— Porque
não importa a ninguém. Às vezes acho que a conclusão daquele livro foi o
sepultamento definitivo das minhas pretensões. Eu olho ao redor, pro tanto de
gente publicando suas obras e questiono o que, Diabos, tô fazendo. Qual a minha
contribuição aqui? Os mesmos velhos temas. A velha mesma abobrinha. Os prêmios
SESC e CEPE todos os anos recebem gente empenhada em fazer coisa boa de
qualidade, com rigor literário, operando naquele espectro minimamente relevante
que mencionei antes. Você vê as competidoras de um prêmio São Paulo e só
precisa aplaudi-las. Aquelas são obras de verdade, que te fisgam, que te
estilhaçam e que dialogam com a universalidade presente tanto num sujeito
dentro de um cenário fictício em Belém quanto num trabalhador honesto no Nepal.
Sei lá, eu nem precisaria ir muito longe, não nos prendamos às grandes
premiações: abra a obra de qualquer autor e autora paraenses e encontrarás isso
também. Entende? E aí eu penso: o que uma obra com áurea de uma canção como
essa fará no oceano gigantesco de obras literárias sérias e relevantes? Isso,
claro, partindo do pressuposto de que aceitarão meu livro.
— E se
aceitarem?
— Por que
aceitariam? E se as pessoas rirem? E se, mesmo em todos estes tantos anos, não
passar de uma piada: sem amadurecimento, sem relevância, sem seriedade? Eu
nunca serei um autor de linguagem rebuscada como os Jabutis amam bajular, mas
também não quero morrer sendo uma piada como um Marcos Bulhões — se bem que,
respeitemos, o cara só não é melhor que o Machado de Assis.
— Enquanto
aqueles que merecem uma oportunidade se questionam e não vão em frente, aqueles
que são piada, aos montes publicam. Isso é justo?
— Nada
nunca é justo. Se fosse, nem estaríamos tendo essa conversa.
— Então,
vais desistir? Isso tudo foi um sinal de desistência?
— Não sei.
Não sei. Realmente não sei. Acho que é um sinal de vergonha. De
auto-penitência. Autocrítica, com toda a certeza. Eu não sou o melhor no que
faço, nunca serei. Portanto, a agonia vem disso: não sou o melhor no que faço,
mas essa é a única coisa que melhor sei fazer.
— Então
faça.
— Ér…
Um silêncio
recaiu sobre o cenário fictício que poderia ser um palco de teatro improvisado
em escola pública, um apartamento apertado e cheio de gatos no centro urbano da
cidade, uma lanchonete espremida entre dois edifícios comerciais, uma
biblioteca onírica ou o fundo de um quintal interiorano. A calada reflexão fez
sua morada no espaço onde antes pairavam palavras, reclamações e desaforos. O
interlocutor que a tudo questionava e concordava, sem mais palavras permaneceu,
pois seu trabalho ali estava quase feito, exigido somente quando necessário
para a construção fictícia deste cenário.
Nesse instante, Mick Jagger cantou and I've got the
blues for you, and I'll bust my brains out for you, and I'll tear my hair out,
tear my hair out just for you.
E, pela
penúltima vez, o interlocutor questionou:
— E quanto
ao livro?
— Não sei.
Não sei de verdade.
— Vai
engavetar?
— Na gaveta
ou nas estantes, o livro que queime.
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