A madrugada gelava a ponta dos meus
dedos quando os recolhi um pouco mais acima na cama, dobrando os joelhos. De
onde eu estava, metade do rosto dela era ofuscado pela luz da lâmpada no teto,
mas ainda conseguia observar as maçãs do rosto salientadas por seu sorriso. Os
longos cabelos caíam quase que inteiramente sobre mim, onde eu me escondia vez
ou outra como uma criança brincalhona.
Aí ela sorria e eu também.
O frio da madrugada parecia espetar
fundo na pele, seus braços e seus ombros despidos tinham os poros abertos e os
pelinhos eriçados. Tá muito frio, eu
dizia. Eu sei, deixa estar, ela
respondia. As mãos dela começaram a tocar o meu rosto, roçando as negras unhas
pelas minhas bochechas. Não ousei fechar os olhos, não ainda. Eu tinha muito a
ver, eu tinha uma madrugada gélida inteira para descobrir o amoroso carinho da
canceriana que ousou focar os olhos em mim quando todos os meus espelhos andavam
quebrados. Por isso não fechei os olhos, não, não ainda. Não se permita fazê-lo, não ainda, não agora. Você tem todo o tempo do mundo por uma madrugada inteira. Ela
inclinou a cabeça e os cabelos enrolados caíram ao redor de nossos rostos como
uma serena e silenciosa cachoeira, protegendo-nos do que quer que estivesse nos
aguardando lá fora – as obrigações matinais de segunda-feira, os gráficos dela para
uma apresentação, suas tabelas infinitas a serem interpretadas, o novo emprego nos
esperando como uma agradável armadilha de animal com dentes afiados, os olhares
repreensivos da minha analista ou os remédios antes de dormir. O que quer que
estivesse lá fora nos esperando, agora não importava mais.
Ela dobrou-se sobre mim, alcançando
minha testa e empregando um beijo meio perdido, meio abobalhado. O forte hálito
de cerveja aqueceu minha pele e ergui as mãos para segurá-la o rosto ao lado
das orelhas. Ainda estava um pouco bêbada, não só o cheiro misturado ao seu
perfume denunciava isso, como também o balançar meio tonto ou o modo como não
conseguia manter-se parada no próprio eixo. Sob minha nuca, suas pernas estavam
dobradas servindo como travesseiro natural ao meu relento. Dobrou-se um pouco
mais, agora pareando os olhos escuros diante dos meus. Sob a cachoeira, ela
sussurrou-me um dorme agora e eu só
fui capaz de responder ainda não, não
ainda. Você parece meio cansado,
sabia?, disse ela, e eu você pareceu
meio bêbada, sabia? Fez uma careta desastrosamente agressiva e finalizou a
ameaça com outro beijo em minha testa, comprovando por fim o latente traço
canceriano que eu começava a desconfiar ser verdadeiro. Há quanto tempo não dorme?, perguntou ela, desde umas sete horas, respondi eu. Não, ela suspirou, há quanto
tempo não dorme de verdade?, e eu prontamente tem uns três meses. E ela prontamente dobrou-se mais, a um ponto
próximo da completa fusão, tornando o mundo quase completamente negro – porém
não o negro sombrio, não aquele habitual de nossos dias passados que ousavam
pairar sobre nossas vidas. Não, não esse negro. Era o negro silencioso, o negro
pacífico, o negro de quando se fecha os olhos após um longo dia de uma centena
de olhares debochados ou pedras atiradas.
O negro dos cabelos dela – ela, seus
cabelos, suas maçãs, seus olhos pequenos e o típico sotaque de onde o Caeté triunfa imponente. Aquele negro
que aplacou-me os olhos, que fez-me respirar mais devagar por um minuto
inteiro. Seus braços envolveram o meu corpo, a ponta dos dedos deslizou por meu
tórax e as unhas subiram sapateando pelos braços, pelos ombros e finalmente
voltaram ao meu rosto. Aí ela repousou as mãos sobre meus olhos como lençóis para dormir à noite. Dorme agora, ela disse suavemente com o
hálito de cerveja. Dorme, insistiu. Por
fim não resisti: fechei os olhos, envolto pela cachoeira que ao fundo de meu
ouvido caía num estrondoso e pacífico silêncio. Fechei os olhos sob seu perfume
e seu hálito, respirando fundo e me acalmando. Fechei os olhos sob seu sotaque,
sob a noturna e passageira presença de seus lábios e do frio de seu corpo que
reciprocamente buscou o calor do meu.
Naquela noite, somente naquela noite, eu pude finalmente dormir
após uma imensurável eternidade que há muito me afogava. Naquela noite, somente
naquela noite, eu deitava minha
cabeça para finalmente dormir após tudo o que meus olhos viram.
Eu finalmente deitava e dormia em paz
– talvez por uma única noite, talvez por uma ocasional visita.
Eu finalmente deitava e dormia em paz
– já não estava mais totalmente acordado.
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