8 de novembro de 2016

Totalmente acordado



A madrugada gelava a ponta dos meus dedos quando os recolhi um pouco mais acima na cama, dobrando os joelhos. De onde eu estava, metade do rosto dela era ofuscado pela luz da lâmpada no teto, mas ainda conseguia observar as maçãs do rosto salientadas por seu sorriso. Os longos cabelos caíam quase que inteiramente sobre mim, onde eu me escondia vez ou outra como uma criança brincalhona.
Aí ela sorria e eu também.
O frio da madrugada parecia espetar fundo na pele, seus braços e seus ombros despidos tinham os poros abertos e os pelinhos eriçados. Tá muito frio, eu dizia. Eu sei, deixa estar, ela respondia. As mãos dela começaram a tocar o meu rosto, roçando as negras unhas pelas minhas bochechas. Não ousei fechar os olhos, não ainda. Eu tinha muito a ver, eu tinha uma madrugada gélida inteira para descobrir o amoroso carinho da canceriana que ousou focar os olhos em mim quando todos os meus espelhos andavam quebrados. Por isso não fechei os olhos, não, não ainda. Não se permita fazê-lo, não ainda, não agora. Você tem todo o tempo do mundo por uma madrugada inteira. Ela inclinou a cabeça e os cabelos enrolados caíram ao redor de nossos rostos como uma serena e silenciosa cachoeira, protegendo-nos do que quer que estivesse nos aguardando lá fora – as obrigações matinais de segunda-feira, os gráficos dela para uma apresentação, suas tabelas infinitas a serem interpretadas, o novo emprego nos esperando como uma agradável armadilha de animal com dentes afiados, os olhares repreensivos da minha analista ou os remédios antes de dormir. O que quer que estivesse lá fora nos esperando, agora não importava mais.
Ela dobrou-se sobre mim, alcançando minha testa e empregando um beijo meio perdido, meio abobalhado. O forte hálito de cerveja aqueceu minha pele e ergui as mãos para segurá-la o rosto ao lado das orelhas. Ainda estava um pouco bêbada, não só o cheiro misturado ao seu perfume denunciava isso, como também o balançar meio tonto ou o modo como não conseguia manter-se parada no próprio eixo. Sob minha nuca, suas pernas estavam dobradas servindo como travesseiro natural ao meu relento. Dobrou-se um pouco mais, agora pareando os olhos escuros diante dos meus. Sob a cachoeira, ela sussurrou-me um dorme agora e eu só fui capaz de responder ainda não, não ainda. Você parece meio cansado, sabia?, disse ela, e eu você pareceu meio bêbada, sabia? Fez uma careta desastrosamente agressiva e finalizou a ameaça com outro beijo em minha testa, comprovando por fim o latente traço canceriano que eu começava a desconfiar ser verdadeiro. Há quanto tempo não dorme?, perguntou ela, desde umas sete horas, respondi eu. Não, ela suspirou, há quanto tempo não dorme de verdade?, e eu prontamente tem uns três meses. E ela prontamente dobrou-se mais, a um ponto próximo da completa fusão, tornando o mundo quase completamente negro – porém não o negro sombrio, não aquele habitual de nossos dias passados que ousavam pairar sobre nossas vidas. Não, não esse negro. Era o negro silencioso, o negro pacífico, o negro de quando se fecha os olhos após um longo dia de uma centena de olhares debochados ou pedras atiradas.
O negro dos cabelos dela – ela, seus cabelos, suas maçãs, seus olhos pequenos e o típico sotaque de onde o Caeté triunfa imponente. Aquele negro que aplacou-me os olhos, que fez-me respirar mais devagar por um minuto inteiro. Seus braços envolveram o meu corpo, a ponta dos dedos deslizou por meu tórax e as unhas subiram sapateando pelos braços, pelos ombros e finalmente voltaram ao meu rosto. Aí ela repousou as mãos sobre meus olhos como lençóis para dormir à noite. Dorme agora, ela disse suavemente com o hálito de cerveja. Dorme, insistiu. Por fim não resisti: fechei os olhos, envolto pela cachoeira que ao fundo de meu ouvido caía num estrondoso e pacífico silêncio. Fechei os olhos sob seu perfume e seu hálito, respirando fundo e me acalmando. Fechei os olhos sob seu sotaque, sob a noturna e passageira presença de seus lábios e do frio de seu corpo que reciprocamente buscou o calor do meu.
Naquela noite, somente naquela noite, eu pude finalmente dormir após uma imensurável eternidade que há muito me afogava. Naquela noite, somente naquela noite, eu deitava minha cabeça para finalmente dormir após tudo o que meus olhos viram.
Eu finalmente deitava e dormia em paz – talvez por uma única noite, talvez por uma ocasional visita.
Eu finalmente deitava e dormia em paz – já não estava mais totalmente acordado.


  

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