11 de maio de 2017

Jordana que não é Jordana que talvez nem seja Maria



Ela cobre as costas com o lençol, como se sentisse vergonha do próprio corpo despido diante de mim. Eu não sabia quanto tempo duraríamos, talvez as primeiras semanas, talvez os primeiros anos ou nem sequer as próximas horas, mas eu beberia por uma eternidade daquela suave sensação de compartilhar com alguém o suor e a respiração levemente ofegante, já recuperada, em meio à madrugada. Estava deitada de costas, o rosto apoiado pelas mãos, parcialmente em cima de mim. Daquela posição, eu podia sentir seu rosto direcionado ao meu, olhando-me com certo interesse enquanto eu fitava o teto com uma expressão talvez compenetrada, mas que no fundo não passava de boba euforia e alegre reflexão.
Ela ajeitou o cabelo negro e bagunçado.
Retomou o assunto que havíamos começado antes de interrompermos para obrigações mais urgentes:
- Tu me explicaste uma vez que odiava quando te pediam pra escreveres um texto pra elas.
- Ah, foi. Vai me pedir que eu faça isso?
- Tu já fizeste.
- Ih, é verdade. Perdeu otária.
Ela esboçou uma risadinha e mordeu meu ombro. Em resposta, circundei com o indicador as manchinhas em seu ombro que imediatamente a fez entender a referência, mostrando-me aqueles brilhantes dentes pequenininhos.  
- Algumas meninas me pediam isso antigamente, mas todo mundo tinha dezessete anos nessa época.
- Quem desenha também tem esse grilo. – Deu de ombros, numa clara tentativa de justificar meu ato. – Porque todo mundo pede pra ser desenhado, já reparou?
- É um saco.
- Eu me mataria se as pessoas pedissem todo dia que eu fizesse uma planta pra casinha dos sonhos delas.
- Finalmente alguém que entende o que digo.
- É, eu entendo, mas... – E aí esgueirou-se um pouco mais sobre mim, num tom de voz oportunista. – E aí, me diz, nessa atual conjuntura da tua vida, posso ser a Maria?
- Não dá pra esquecer isso?
Eu não devia jamais ter contado sobre House of Wolves. Ela não devia jamais ter perguntado sobre. Cocei a cabeça com uma careta e ela continuou, imitando minha frase:
- Perdeu, otário.      
- Belessa. Uma vez me perguntaram se eram a Maria. – Mordi o lábio, zombeteiro.
- E aí, o que tu fizeste?
- Eu enrolei.
- Que canalha!
- Aí perguntaram “eu sou a Lúcia, né?”.
- E aí?
- Deixei em aberto.
- Que filho da puta, mano!
- Ou talvez tenha apenas mentido. Acho que menti, no fundo eu sabia a verdade.
Ela gargalhou. Estava à par demais daquela história e tapava a boca com as mãos, sempre com a humana e filosófica preocupação de não ser ou soar tão maldosa.
- Essa tua lua em capricórnio te demoniza.
- Verdade. – Desviei os olhos do teto para os olhos escuros dela, organizei com a ponta dos dedos os cabelos bagunçados, afastando a franja da testa e dando ali um beijo calminho e carinhoso. Aí balbuciei, sugestivo: – Mas a minha Vênus compensa tudo.
- É, bem fodido e apaixonadinho.
- Achei que fosse tudo a mesma coisa. – Sussurrei.
Ela sorriu e passou um braço em volta de mim, apertando como todo bom felino costuma fazer em dias chuvosos.
- Eu sei que no fundo desse coração meloso tem um canalha imprestável, mas o que eu quero saber é se eu sou a Maria.
- Atualmente?
- Não, que mané atualmente. – Mordiscou novamente meu ombro.
- Quer ser a Maria?
- Quero saber se você projeta em mim coisas da Maria.
- Por que tanto interesse na Maria? Que tal ser a Lúcia?
Ela gargalhou aquela gargalhada gostosa e me mostrou o dedo do meio. Em seguida, um beijinho. Sempre desfazia um ato violento ou ofensivo com um carinho imediato, maneira admiravelmente astuta de ser passiva-agressiva.
- Certo. Então digamos que a profecia se cumpra e você se torne a Maria...
- Uma projeção dela. – Corrigiu.
- Beleza. Então digamos que a profecia se cumpre e você se torne uma projeção da Maria. – Ela assentiu, atenta. Aproximei o corpo ao dela, como se ainda houvesse espaço a ser contemplado. As costas dela estavam completamente nuas, já não tão suadas, mas o leve contorno que lhe eram as nádegas ainda estavam escondidos sob o lençol. Passeei a os dedos pelas costas, subindo e descendo ao longo da coluna. – Acontece que talvez com a Maria as coisas não terminem bem.
- Ah, merda, eu sabia. Por isso essa relutância toda?
- Por isso essa relutância toda.
- Tu sabes que é só uma historinha, né?
- A vida andou imitando a “arte” muito bem, ultimamente.
- Acho que tu deverias escrever histórias menos tristes. Nem todo mundo vai te deixar ou te trair na vida, Felipe.
- É verdade, mas a felicidade não rende boas histórias. Dor, lágrimas, chifres e sofrimentos, sim.
- Ah, é?
- É.
- Frozen é legal.
- Up é melhor.
- Ruby Sparks, eles ficam juntinhos.
- Na verdade, é sugerido.
- Ficam juntos.
- Talvez.
- Cadê meu ultrarromântico favorito? O que fizeram com ele?
Fingi uma carranca.
- Tem aquele com o Bradley Cooper e o cara da Lolita.
- Sei qual é, mas esse filme é sacanagem, Fê.
- Sim, porque é triste e legal.  
- Hum...
- Dois...
Outra mordiscada no ombro, outro beijinho.  
- Você não precisa ser a projeção de porra alguma do que escrevo. Não preciso que seja projetada pra que eu escreva sobre ti.
- Lembra aquela frase em 500 dias com ela?
- Qual?
- Alguma coisa sobre mulher e literatura ou quando você escreve sobre...
- “Henry Miller disse que a melhor maneira de superar uma mulher é transformá-la em literatura”. Caralho, claro que lembro. Casa comigo, por favor!
- Mas é claro que eu caso.
Às vezes, ela me parecia uma típica francesa saída de um filme da década de noventa com aquele cabelo meio Chanel e a franjinha que vivia balançando sobre a testa. Havíamos assistido aos mesmos filmes nos últimos 24 anos e mais da metade das obras ou vídeos idiotas do youtube mencionados eram, imediatamente, aplacados por um “sim, eu conheço!” deveras eufórico.
Apertei-a entre meu corpo e puxei-a para mais perto.
- O problema é que eu não quero te superar, muito menos que tenha o mesmo destino que Maria. Quer dizer, a Maria tem um destino bom, o narrador, não. Não quero mais ser o narrador, não por enquanto. Não contigo.
- Não precisa ser.
- Perfeito.
Então passou uma das pernas delicadas e finas pela minha cintura e posicionou-se sobre mim, enquanto mergulhava o rosto entre meu pescoço. Notei que apesar da troca de posição, o lençol não saía ao redor da bunda. Ela prostrou-se e ergueu o tronco, de repente esquecendo da vergonha de mostrar-se despida diante de mim.
- Eu não sou uma garota de dezessete que pede que escrevas pra mim, mas o que preciso fazer pra que...
- Pra que...?
- Pra que escrevas sobre mim?
- Ahhh... – E fiz, não tanto pela revelação, mas sim pelo singelo movimento que fez com os quadris. – Vai ter que se esforçar. Eu sou difícil de convencer.
- Com essa vênus em Peixes? – Sorriu daquela forma meio canalha, inclinou-se pra empregar um beijo no meu pescoço outra vez, agora que descobrira o ponto fraco. Suspirou devagar, o hálito quente contra minha pele. – Eu duvido bastante.
- Eu já escrevi.
- Escreve mais. – Apoiou as mãos no meu peito.
- Vou pensar.
- Me dá um nome de mentira. – Afundou as unhas no meu peito.
- Tipo qual?
- Seja criativo, sr. Escritor-Intelectual. – Apertou as unhas no meu peito.
- Ah, vá se foder.
- Sozinha? Não, não. – Arranhou as unhas no meu peito.
- Sozinha não? – Olhei para aquelas longas e magras mãos de esmalte negro e descascado. O quão clichê seria lembrar que ela esteve mordendo o lábio inferior naquele instante? O quão clichê seria colocar, nestas linhas, que ela esteve mordendo o lábio inferior naquele instante? Foda-se. Ela mordia o lábio inferior naquele instante. – Então me chama.
- Já chamei, bestão.
Pensei em Minerva. Talvez Minerv... Mi... Milena.
Pensei em Vênus. Talvez Ven... Ver... Verônica.
Pensei na última boa música que escutara com nome de garota.
Pensei na noite em que nos conhecemos, a luz avermelhada do Café com Arte, sentados no banco sob a árvore. Contei que estava preso há meses nas páginas de Chuck Palahniuk, porque não conseguia e nem queria chegar ao fim de um dos livros que mais me reviravam do avesso e deixava meus nervos à flor da pele. Já ela, contou-me sobre a webcomic que andava lendo, “Jordana”. Havia nela Jordana e sua filha, Eva.
Eu poderia chama-la de Eva, mas já possuo uma Eva em meu catálogo de personagens.
Seria pedantismo demais.
Jordana era perfeito.
Perfeito do mesmo modo como ela encaixava o quadril sobre o meu e continuava a arranhar o meu peito. Pousei a mão esquerda na lateral da cintura dela, apertei por um instante, pensei em conduzi-la no movimento, mas ela sabe bem demais o que faz, então deixei que prosseguisse – permito que ela assim o faça por enquanto, pelo tempo que quiser. Era ela quem estava no comando.
Clichê verossímil ou não, ela continua mordendo o lábio, continua a me olhar com aquela fúria compassiva.
Maria alguma me olharia desse jeito, somente Jordanas têm esse olhar.
É, acho que escolhi um nome.
    


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