19 de junho de 2018

A forca


Nota do autor: apesar da imagem, este conto não aborda, não faz apologia e nem sequer toca no tema de suicídio. 
Fiquem tranquilos.







Here comes the priest and the prophet
A cold, steel floor on my feet
I hope that you've come down to see me
If a dyin' boy's wish of release

Here stands the man dressed in black now
And he says with a trembling sigh,
"do you have any words or requests now?

(The Gallows – The Builders and the Butchers)




Foi o vigário Antunes quem mandou o povo fazer silêncio enquanto eu subia os degraus de madeira no centro da praça. Respeitado, porém raquítico e assíduo fumante de tabaco, o homem de Deus ergueu as mãos para o povo que berrava e apontava-me dedos furiosos, duros como os de delatores, retos como os dos crentes e mentirosos. Os guardas que estavam em volta levantaram as armas e ameaçaram as pessoas umas sobre as outras, caso não obedecessem. Imediatamente, acataram as ordens.
Posicionaram-me ele, o Prefeito e o rapaz alfaiate encostado na alavanca. Ele faria o serviço, pois o Carrasco Oficial estava de cama há uma semana com disenteria braba. Como todos o conheciam muito bem por seus serviços com a agulha, e a cidade era pequena demais, tinha ele o capuz preto levantando e palitava os dentes com as unhas sujas e grandes, enquanto comia uma tangerina e exalava o perfume cítrico pela praça.
– Valeu, Vigário. – Agradeci de imediato.
Entretanto o silêncio do povo não impediu que um tomate amassado parasse na minha nuca ou uma banana nanica na minha cara.
O velho de Deus, que não simpatizava muito com meu rosto desde o conto d’A Goteira da Carla, resvalou o olhar para o meio da multidão. O Prefeito então tomou o centro da armação de madeira e disse:
– Estamos aqui hoje para oficializar o enforcamento de...
– Peraí, peraí – interrompi, estarrecido. – Não vai ter julgamento?
- E para quê isso, meu filho? – Indagou o gorducho.
– Eu mereço defesa, seu Prefeito.
– Deus já te julgou, criança – interpôs o vigário.
– Mentira! – Berrei, desesperado. – Ele só julga no final do livro!
– Final? – Alguém no meio do público perguntou. Era a voz de uma criança. – Que final?
– Apocalipse, parceiro – respondi, apelando à curiosidade do público. – Todas as almas só serão julgadas no dia do juízo. Hoje não é o dia do juízo. Apressar o juízo não é juízo, é desjuízo.
– Não me importa. Hoje é o dia do seu – sussurrou o Prefeito com a eloquência de sua voz política.
– Peraí, peraí... – interrompi novamente. – Isso daí, galera? Isso daí tá errado, não pode ser desse jeito, não.
O povo começou a gritar e o Vigário pediu ordem.
– Ora, que porra é essa?
– Olha o linguajar! – Advertiu o Vigário.
- Que benção de Cristo é essa? – Corrigi.
O povo começou a rir e eu ri de volta.
– Vocês não leram o livro sagrado?
– A Bíblia? Não blasfemais, garoto! – O Vigário saltou sobre mim. O indicador duro como se quisesse me dedar.
– Não, homem. A Constituição!
O Prefeito engoliu em seco, nervoso, e gritou ao Carrasco-Alfaiate:
– Prepare-se!
O povo começou a gritar de novo. Entre ele, os rostos apreensivos de minha mãe e de minha pequena irmã estavam em lágrimas. A pequenina, atracada nas ancas maternas.
– Pagarás pelos teus crimes, fedelho! – O Prefeito sorriu e acenou para o povo, que respondeu com palmas e gritos de euforia. Parecia até gol do Brasil com menino Ney e tudo. – Teu julgamento já esperou demais.
– Mas o senhor não é o Senhor, sr. Prefeito!! – Esfolei a garganta. – Não pode decidir uma coisa dessas – e ao povo, pisquei: – Tá na Constituição.
Todos riram.
O Vigário gritou:
– Blasfêmia!!
– Nem o senhor é o Senhor, senhor Vigário!
Mais gritos.
– Deves pagar pelos teus crimes, criança! – O Vigário abriu a Bíblia Sagrada. – Açoitas Deus, profanaste com tuas palavras a pobre Santinha – outra menção ao conto d’A Goteira da Carla, o que não o deixava em paz. – E, principalmente: açoitaste uma moça com tuas palavras desvairadas impressas na folha. E isso, ah, isso é imperdoável.
Com vigor lascivo e potes nas mãos, as mulheres na plateia o aplaudiram.
- É mentira! – Berrei de novo, desesperado. – É mentira, vocês leram errado!
– Eu li certo! – Assobiou o alfaiate com os dentes sujos e com o hálito de tangerina. Ele limpou as mãos nas calças e abaixou o pano preto sobre o rosto, preparado para o serviço.
– Peraí, peraí... – novamente interrompi o alvoroço popular. – Isso daí que vocês estão fazendo? Isso é injusto!
– Injustiça é o que fizeste para com a honra da moça, maldito – o Prefeito pançudo quase saltou sobre mim. – Escreveste coisas de escárnio, veja só – ele retirou dos bolsos do paletó um amontoado de papéis dobrados, folhas A4 impressas em Arial 12, espaçamento 1,5 linhas. – Eis o teu crime: todas estas palavras, palavras agressivas de escárnio, de mal dizer, de lamentações, ironias...

– E o conto sobre alienígenas invasores – olhei para a plateia, bati o pé e vibrei: – Nunca esqueçam os alienígenas invasores!
Uma parte do público riu, outra parte indignou-se.
Foi aí que o grito de minha mãe veio do meio da plateia:
- Meu filho, pelo amor de Deus. Meu filhinho lindo, fica calado! Não piora as coisas! Para de graça!
– Oh, mamãe. Se eu calar, eu morro!
Aí o povo riu.
O Prefeito tentou continuar, mas novamente o interrompi:
– Além de tudo, tenho direito à defesa ou pelo menos às famosas últimas palavras antes de ser enforcado.
– VEJAM ISTO! – Gritou o gorducho, acompanhado pelo Vigário. Entre os papéis, puxou de lá “Monforte”. – Vejam este absurdo! Neste daqui – enfiou o dedo no papel –, ele sugere a presença da moça a quem agora faremos justiça. Ele cita a antiga cônjuge...
– Cito porra nenhuma. Veja bem, seu Prefeito.
– Olha a língua! – Esgoelou-se o Vigário.
O povo prostrou-se a gargalhar.   
– Vais me dizer que em Monforte não fazes clara alusão à presença da vítima?
– Ela até que tava lá, de fato – balancei os ombros, trágico. – Mas a verdade é que aquele era o dia de meu nome e a verdadeira Monforte me esperava no bar. É sobre isso que este se trata – apontei para o papel.
O público vaiava.
– Todo mundo aqui leu! – Alguém gritou.
– Todo mundo aqui sabe! – Categorizou alguém.
Uma beterraba voou e quase acertou-me o ombro. Os rapazes da academia continuavam a lançar mais e mais objetos e alimentos cilíndricos. A equipe do Crossfit já preparava os dildos, tinham-nos às centenas.
- Peraí, peraí... – Caminhei para mais perto da beira, entre o Prefeito e o Vigário, desviando dos vibradores que os apayxonados traziam nos bolsos. – A própria Monforte me esperava no bar, era dia de meu nome, meu aniversário, seus merdas. Sobre isso tratava-se o escrito.
E o povo gritou.
Minha mãe berrava:
– Para com isso meu filho! Oh, meu sagrado Coração de Jesuzinho!
Aí balbuciei desculpas e elevei a voz novamente:
– Vocês precisam ler direito, meu caro povo adorável – e abri os dentes amarelados de esforço desmedido para controlar a lista de elogios mais apropriados. – Sei que pensam que estas palavras e todas as outras – indiquei o calhamaço de papéis que o senhor-Não-Senhor-Prefeito tinha em mãos – são a respeito da vítima, por conta de toda a confusão pregressa a essas linhas e por conta de meu histórico de personalidade tendencioso à melancolia e ao uso do drama, porém ressalto, com idôneo apelo, que essas palavras são a respeito de outra pessoa.
O publico vaiou, mas não desisti:
– Vejam, vejam, caríssimos amigos. Souberam vocês minha história com a verdadeira Monforte?
Recebi apenas silêncio de volta.
– Notaram vocês os detalhes nas linhas? Os cabelos castanhos das Acácias que por tantos anos antes citei ou o aroma de Camomila nos também castanhos cabelos da outra?
O público entreolhou-se. Possuía os mesmos papéis em mãos, distribuídos aos montes como provas de culpa.
– Perceberam os detalhes que ninguém haveria de conhecer, senão três pessoas: eu, àquela a quem pertenciam e àquela a quem não pertenciam? Notaram os detalhes?
– Detalhes? Que detalhes? – O Prefeito remexia as folhas. O Vigário colocava seus óculos para bisbilhotar os entremeios das linhas e dos parágrafos quebrados.
Aproximei-me ainda mais da borda e fitei cada rosto naquela plateia:
– Sei que exaustivamente, e com danadinha curiosidade, a maioria de vocês aqui leu tais letras, como as letras de Monforte, por exemplo. E sei que pensaram, por saberem tão pouco, que eram elas a respeito de...
– Tratava-a como a Monforte! – O Prefeito levantou as mãos. – Lúcia, a vítima a quem atacaste, tinha cabelos louros, garoto! Como os de Monforte! És culpado!
CULPADO, CULPADO, gritava o público.
Mamãe chorava. Minha irmã tremia de medo.
– Pois bem, é verdade! – Elevei a voz. – Mas Monforte foi Monforte em uma época muito posterior à de Lúcia. Os cabelos assemelham-se, e aproximei aquela que me aguardou no bar com Maria Monforte por razão das maçãs rosadas. E pelo castanho quase louro.
– Lúcia é loura! – Alguém berrou.
– É!
– Isso!    
– Cacete, vocês são impossíveis – bufei.
– Admites tua culpa! – Cuspiu o Vigário.
– Onde está a vítima? – Olhei em volta.
– Lúcia não compareceu a este julgamento.
– Foi ela quem fez a denúncia?
– Não – respondeu o Vigário, jocoso. – E nem precisava.
– Esta sentença pertence somente ao povo, pois o povo decidiu por ela – completou o Prefeito.
– Pois o povo interpretou assim, né? – Indaguei. – Como sendo Lúcia o povo interpretou que Monforte era?
Todos concordaram.
– E Jordana e o resto de todas elas?
Um coro em “sim” veio de volta.
– E Kiara?
“SIM”.
– Camilla?
“SIM”.
– Caraaaalho – soltei baixinho, a voz aguda e indignada. – E o povo achou que minhas dores eram por Lúcia e não por Monforte, a Monforte que aguardava-me no bar, certo? Foi assim que o povo inteiro interpretou?
- SIM! – Responderam todos em uma vibração única.
Respirei fundo e olhei a pobrezinha de minha irmã. Olhei para minha mãe, chorosa, que tão erroneamente um dia julgou que eu faria carreira sendo um intelectual comediante e expoente em colunas nacionais que tecia poemas babacas sobre garotas de classe média alta cantando músicas sem nexo, sem rima e desafinadas.
– Pois o povo interpretou tudo errado. – Aí pensei: caramba, que ineditismo. – Em meu julgamento, exijo reparação.
– O quê?
– Reparação?
– Como assim?
– Impossível.
- Isso mesmo. Pois exijo que leiam novamente sob nova perspectiva. – Respirei fundo e sorri, determinado.
– Se estás tão convicto que Maria Monforte não era Lúcia, então por que não provas a todos quem era a verdadeira Monforte?
O povo foi ao delírio:
– Isso!
– Tá certo!
– Muito bem, Sr. Prefeito!
– Lindíssimo!
– Disse tudo!
E em seguida:
– A verdadeira Monforte, cadê?
– Cadê?
– Cadê??!
– Onde?
– Cadê?
– Será?
Dei um passo comedido para trás e pigarreei, cabisbaixo.
– Não posso.
– Por quê? – Perguntaram o Vigário e o Prefeito, contentes.
– Porque a verdadeira Maria Monforte foi embora. Peraí, peraí... – e pigarreei de novo, colocando cada devido detalhe em seu devido lugar. – Melhor dizendo: a verdadeira pessoa a quem representei e comparei como Maria Monforte, e por quem provavelmente meu pobre coração destruído – e esses tão melosos verbetes saíram-me da boca com deliberada malícia – tão empenhadamente também criou e representou, não está mais aqui.
– Onde ela está?
– Eu não faço a mínima ideia – assim meus ombros caíram e pelo menos este foi um gesto automático, irremediável.
O povo foi ao delírio, julgando-me mentiroso.
Era possível, no rosto do Prefeito e do Vigário, observar a expressão de vitória.
– Estás dizendo, então, que ela não existe? – Tentou distorcer o Vigário.
– Estou dizendo, então, que ela foi embora.
– Foi embora como?
– Ih, foi embora, ué. – Quis fugir do assunto, mas era quase inevitável.
– Como?
– Da forma como todas as pessoas vão embora, senhores. Simples.
– Brigaste com ela?!
– Pisaste nela?!
– Agrediste ela?!
– Gritaste?!
De novo mais gritos.
Então admiti:
– Tive problemas de pelancas por duas semanas e ela foi embora.
Puseram-se a rir todos. Confesso que até eu ri, e fiquei perguntando entre balbuciadas se aquela piada realmente havia sido boa. Imediatamente, mamãe do meio do público me repreendeu, apavorada por eu estar rindo minutos antes de ser pendurado como uma galinha.
– Estás dizendo que ela te abandonou? – Inquiriu o Prefeito, curioso.
– Isso mesmo, senhor-Não-Senhor-Prefeito.
– O que é um problema de pelancas? – Perguntou o Vigário.
– Ih, galera, ele não sabe – confidenciei ao público e o público, obviamente, caiu de rir.
O velho de Deus quase tacou-me a Bíblia na cabeça e antes que qualquer um deles ralhasse, intervi:
– Um ataque de pelancas, atualmente, aqui perto do Mississipi brasileiro, é uma série de complicações psicológicas causadas por traumas passados, depressão, ansiedade, crença em futebol e vício em jogos online.
Vigário Antunes levou as mãos ao queixo pontudo.
O seu Prefeito assentiu devagar, preocupado.
O povo inteiro pareceu aflito com a informação. Como bons brasileiros, sempre preocupadíssimos com as novas patologias psicológicas da nova geração. A reflexão, no entanto, não durou mais que cinco segundos, e recuperados do impacto (quiçá até esquecidos), o gorducho continuou com o interrogatório:
– Quer dizer então que, por culpa tua...
– Por culpa minha – frisei, concordando.
– ...ela te deu um pé na bunda?
Todos riram. Até eu ri.
Pés na bunda eram mais louváveis.
– Veja bem... Não. – Respondi, mordendo o lábio. – Na verdade ela desapareceu, ficou em silêncio e depois sumiu. Nem precisava dar satisfação. Mas nem foi culpa dela, não!
Mamãe pôs as mãos no rosto, abaixou a cabeça e balançou-a negativamente, decepcionada por minhas estranhas estratégias.
– Claro que não, imbecil! – Alguém, novamente, gritou no meio do público.
– A culpa foste tua, pelancudo!
E todos rimos. Inclusive minha própria mãe, desesperada.
– Então quer dizer que ela te abandonou, como todas as outras que também fizeram o mesmo aqui? – E quando disse “aqui”, o Prefeito balançou o calhamaço de folhas nas mãos.
– Ahhh, não, não, não. Veja bem – e ergui o dedo para o público, falando calmamente – todos os abandonos aí, com exceção de um, foram única e exclusivamente pela ficção e pelo drama proposital. Drama. Drama. Faça-o achar que é verdade e que usa para inventar mentiras, quando na verdade no início nada daquilo usado para inventar as mentiras foram, verdadeiramente, a verdade. Você só usa mentiras para inventar mais mentiras com gostinho de verdades, mas blefa com um ou outro escapismo fundamentado em realidades e voilà. – Retomei o fôlego e concluí: – O público gosta. As pessoas amam. Elas vêm até aqui por isso: para rir. Né, não, pessoal?
Aí todos aplaudiram. Assobios. Gargalhadas.
Alguém abria uma latinha de cerveja.
– Drama? – Questionou o prefeito.
– É, drama. Drama ultrarromântico. Elemento água. Signo de Câncer, Trópico de Peixes, essas coisas.
Aí eles foram ao delírio.
Dessa vez, era minha irmã quem gargalhava.
– Então ela foi a primeira a te abandonar? – Continuou o Prefeito.
– A segunda. – Assenti. E depois acrescentei: – Mas com a intensidade da maneira engraçada que ocorre nos filmes? É. Sim. Foi a primeira.
– Isso é uma verdade ou uma mentira?
– Érrr... – Cocei a cabeça. – Caramba.
– Então não podes provar que a história é verídica, porque ela foi...
– ...embora – concluiu o Vigário, fazendo um sinal da cruz e movendo as mãos para o Céu em sinal de agradecimento pelo meu enforcamento cada vez mais próximo.
– Portanto não há ninguém para confirmar sua história, fedelho? – Riu o Prefeito.
Fitei o público e sua maré de rostos divertidos, crentes nas interpretações tão equivocadas que fizeram. Agora sim, finalmente, eu compreendia como devia sentir-se o Jesuzinho de Caeiro, tão amedrontado e alheio do mundo de insanidades e de interpretações tortas dos homens, constituintes de seu maior e mais fiel público leitor desde o advento do Skoob.
Então levaram-me até o local onde, logo, logo o dispositivo no chão de madeira se abriria para deixar cair o meu corpo e balançar os meus pés no ar. Minha mãe e irmã, recompostas das risadas, voltavam a chorar. O Carrasco pôs a corda em volta de meu pescoço e a apertou, arranhado a pele e dando uma pequena e passageira comichão.
– Tens mais alguma coisa a dizer, garoto? – Perguntou o Prefeito.
– Só uma dúvida: Tem como pôr Renegade do Styx para tocar agora?
Todos os rostos foram tomados por dúvidas.
– Ou qualquer outra música?
Continuaram confusos.
– Ainda não existe o Spotify por aqui, né? – Perguntei, alarmado.
– Aparentemente ainda non – respondeu o alfaiate, exatamente desta forma: “ainda non”, com o som devidamente nasalizado e interiorano do Mississipi brasileiro.
– Ainda non, né? É... – Engoli em seco, e antes que as atenções voltassem em direção ao Carrasco, falei de novo: – Bom, tem a própria Lúcia. Ela poderia salvar meu rabo aqui.
E aí todos gargalharam, porém dessa vez com um descontrole mais evidente. Eu ri mais por nervosismo do que por diversão, porque realmente pronunciei aquela possibilidade estúpida.
– Lúcia? Ficou louco? – Alarmou-se o Vigário Antunes. Ele mesmo com um medo aterrorizado nos olhos tornou a fazer o sinal da cruz. – Maldição! Blasfêmia! Jamais! Jamais!
– Non, non, non, non! – O Alfaiate-Carrasco quase cuspiu os caroços de tangerina que havia engolido, tamanho o terror que o tomou.
– Se lesse isso daí – e apontei para as folhas na mão do Prefeito – ela saberia que os detalhes não são dela, nem sobre ela e muito menos para ela.
– Sem chances. – O gorducho balançou as mãos, desacreditado e assustado pela possibilidade.  
– Por quê? Não custa tentar? Mesmo Deus deveria me dar as chances de ser julgado!
– Não, não, não – o Prefeito gargalhou, pela primeira vez complacente. Pôs a mão no meu ombro e sussurrou ao pé do ouvido: – Tu sabes, garoto... Isso destruiria a versão dela e toda a acusação. Na última vez que a vimos, a moça parecia bem feliz em espalhar por aí que essas palavras eram sobre ela. Ou pelo menos parecia vangloriar-se por todos pensarem assim.
– Caramba, é verdade. – Respirei fundo. – Malditos ossos do ofício, Sr. Prefeito. Malditos ossos do ofício.
– Sinto muito, garoto. – Ele suspirou junto a mim e achegou-se pela última vez, antes que desse a ordem ao Alfaiate-Carrasco para puxar a alavanca. Perguntou baixinho: – Mas me diga, antes que tu partas: e quanto à melhor prosa de amor que posso escrever neste momento?
– O que é que tem?
– Foi para quem? A moça do bar (a verdadeira Maria Monforte) ou Lúcia?
Balancei a cabeça devagar enquanto ria.
– Foi outra?
Ri outra vez. Olhei para mamãe e para minha irmã uma última vez.
– Ah, seu Prefeito. Essa daí eu respondo quando nos encontramos novamente.
Decepcionado, o gorducho do Prefeito encaixou o pano de seda preta sobre minha cabeça e cegou-me a visão.
Dadas as ordens, o Alfaiate puxou a alavanca.
Um segundo antes de tudo escurecer, ainda vi Vigário Antunes acima de mim fazendo o sinal da cruz. Aí puxou-se a alavanca e eu caí, a corda pressionando meu pescoço e a gravidade puxando meus pés que não tocaram o chão, mas balançaram. Acho que minha bexiga esvaziou e ensopei as calças, mas não tenho certeza.
Isso daí eu descubro na próxima vida.




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