9 de junho de 2018

Como eu enterro as flores de Acácia




Estaciono o carro no meio do terreno baldio.
Encontrar terrenos baldios por essas bandas é fácil: há uma centena deles em qualquer estradinha não pavimentada nas periferias da cidade ou ao longo de uma rodovia federal mais próxima. O mais indicado, pensei, seria uma dessas pelo km 27, a duas ou três cidades de distância daqui. Então averiguo o perímetro: há uma pequena oficina de beira de estrada na esquina, com dois moleques magricelas com um ótimo futuro no empreendimento de aviões e um velho borracheiro barrigudo que aparentemente mora sozinho.
O maior problema é este: podem, todos, dar com a língua nos dentes. Mas é fácil. O velho acendia a lâmpada da casa aos fundos da oficina sempre às quatro e quarenta da manhã, abria a torneira do tanque e começava a lavar sabe-se lá o quê, fico em dúvida entre um punhado de cuecas sujas ou o peixe que estocava no isopor ou no congelador da geladeira.
O ritual é sagrado. Diário. Incansável.
Às cinco e quarenta, no máximo às cinco e cinquenta, ele apagava as luzes do quintal, trancava a porta dos fundos e dormia até nove e meia. Durante quase quatro horas inteiras a rua mergulhava em um silêncio e em uma paz sepulcral. Trezentos metros abaixo, havia um terreno baldio: afastado de qualquer vizinhança e cercado apenas por uma ou duas casas igualmente abandonadas, com mato alto na fachada e pinturas nos muros com o número de um candidato a vereador, coisa de duas ou três eleições atrás.
Então local escolhido, é aqui.
Antes que desconfies, meu amor, este não é um conto sobre psicopatia ou hábitos secretos. É, na verdade, um estranho fato esperado, há muito aguardado.
Falando sobre hábitos secretos, possuo um não tão secreto assim, porém sabido apenas pelos mais íntimos: risco meus livros; rabisco-os, anoto neles conclusões, notas e referências brotadas no instante da leitura, com o primeiro lápis que me surgir à frente. É um hábito pertinente àqueles que namoraram as Letras, caso não acometidos por muitas frescuras ou supervalorização do objeto literário. Aprendi com mulheres extremamente sábias que livros devem ser usados, reutilizados, absorvidos ao máximo – intelectualmente, fisicamente. Há quem o julgue como ato abominável, intragável. E desta ordem de pensamento compreendo, em certa instância, até concordo. Porém são hábitos pessoais, passíveis de escolhas, acima de qualquer senso de moralidade, de bem ou mal, de certo ou errado – déspotas são aqueles que apontam um deles como atitude corretíssima, sagrada.
Divago sobre livros, mais precisamente sobre os rabiscos neles – rabiscos em nossos Gatsbys e com nossas Daisys – para defender meu ponto de que algumas marcações em páginas (sejam a lápis ou a post-its) são exemplos claros de inscrições guardadas, como runas em sacros galhos na Escandinávia ou pinturas no interior das cavernas. São memórias físicas, carregam consigo as lembranças de uma era talvez irrelevante àqueles que observam, mas catalogadoras de sensações, sentimentos, momentos, frames importantes de pesadíssimos aromas em eras quase esquecidas.
O que isso tem a ver com os terrenos baldios perdidos ao longo da Br?
O que isso tem a ver com as flores de Acácia?
Ora, tudo.
Porque o que me traz a este terreno baldio é um eco melódico, carregado por guitarras, baixo, vocal e bateria. E ecos, minha cara flor de Novembro, são como rabiscos em livros, são como a poeira entre as páginas de um livro deveras intocado, de páginas amareladas, de cheiro de mofo, do aroma das traças.
Porque o que me traz a este terreno baldio é um eco melódico. E ecos, meu caro escorpião, são tatuagens invisíveis na pele, na camada mais profunda dela – aquela abaixo da epiderme, aquela abaixo da derme e no inverso das duas, aquela onde permanecem essas estranhas escarificações na alma.
Porque o que me traz a este terreno baldio é um eco melódico, um discurso e um fragmento de discurso, uma inscrição no livro, um rabisco no papel, uma nota perdida entre asteriscos circulados por balões, dizendo em escárnio que todos queremos festa quando o funeral terminar – algo que, inconscientemente, desde aqueles dias de tua boca fria e de teus olhares dúbios em interpretação, estive tão freneticamente escrevendo sobre, e tão severamente rindo, debochando e respeitando como Raul ao esperar seu beijo na esquina. Fiz da morte matéria de poesia, de contos e de sádicos humores, aqueles que nos dias de hoje já não posso chamar pela tonalidade e que nem mais o faço por puro hábito e consciência.
Estive na frente da máquina matutando estas palavras. E sei que tu aqui jamais pousarás, não sei decerto se isso há de configurar martírio ou alívio, mas não é por ti e nem por tua memória a quem redigi estas linhas. Redigi estas linhas após muitas voltas dar naquela rua e após todas as madrugadas pegar a BR e anotar em blocos de papel em meio aos cigarros – poucos agora, pois tenho cessado um vício que nunca de fato chegou a ser vício; sei que negar o uso de cigarros ou de café cortará a imagem tão bem solidificada de escritor, aquela que tanto vejo estampar-se em fotos de 15 segundos, mas espero que saibas que não sou aquela promessa de pessoa misteriosa ou de perfil charmoso que achávamos que eu seria. Balela. Se eu te encontrasse hoje, amor, te faria uma piada e talvez tu sorrisses, mas o tempo nos abraçou demais e agora não sei mais quem eu sou, minhas piadas ficaram ruins e nem mais sabemos quem tu também és.
Por isso estive durante horas maturando este texto – ele nasceu há muito, muito tempo. Mas esperei que este dia chegasse: o oitavo ano, como no oitavo ano do eco. O eco que conheci quando tu ainda caminhavas por aqui com o ferrão relaxado e o adeus escondido. E que fique claro que em mim o veneno a correr nas veias não foi empregado por ti, mas por meus próprios hipotálamos e por minhas próprias hipófises criando a mentira que tão belamente julguei verdadeira e que tão porcamente fui contaminado nos anos seguintes, por ferrões outros.
São finalmente oito anos e posso descer esta rua escura no meio da madrugada, com o farol aceso tão baixo, passando pela casa do velho borracheiro que tão facilmente daria com a língua nos dentes. Estaciono o carro lá dentro: olho para os três buracos no chão, aqueles que cavei nos dias anteriores. Abro o porta-malas e lá de dentro retiro três corpos. Todos pesados e inchados, dos quais coloco no chão com devido cuidado, sempre com a delicadeza que merecem. São corpos indistintos, e nem mesmo sei se são masculinos ou femininos – como disse no início, este não é um conto sobre psicopatias ou hábitos secretos, talvez seja sobre os amigos que matei: Julietas, Doces, Cecílias e narradores.
Arremesso o primeiro corpo. A quem pertence, eu nem sei.
Arremesso o segundo corpo. A quem pertence, duvido que outros o saibam.
Mas o terceiro, ah, o terceiro reconheço, é a quem arrasto com carinho – talvez, no fim, não passe de fato de um conto sobre psicopatia, mas tenho certeza de que ainda é sobre outra coisa.
And we all get together when we bury our friends.
Arremesso o terceiro corpo. A quem pertence, tenho certeza de que sei, entretanto já pouco importa.
Aí reponho a terra, jogo-a de volta ao lugar. Não há mais dor em fazê-lo, não há mais o remorso de perder o último fragmento de antigos rabiscos.
Isso é uma coroação e eu não sinto amor.
Por isso enterro os três tão profundamente. Espero que descansem em paz agora, principalmente tu, O Terceiro, este no qual até coloco um punhado de flores de Acácia em cima,
Acácias com sorrisos de verão.
Acácias mortas.
It's been 8 bitter years since I've been seeing your face, finalmente oito. Bato com as mãos nas calças. Limpo-as. São oito e quarenta quando termino o serviço, a esta hora o velho borracheiro ainda dorme. Enterro-te aqui, amor, mas não será exatamente eu quem caminhará para longe quando este carro seguir viagem.
São oito anos de teu rosto por aqui hoje, nove anos amanhã e a porra de dez anos sabe-se lá quando. You're walking away and I will drown in the fear, meu amor.
Ba.
Ba.
Ba.


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