A lama é edificante. Ela é suja. É algo natural
e derradeiro à experiência humana: inevitável substância ao mergulho dos afogados.
A lama é poça de elementos vários – o
interior de um saco escrotal, o caminho interno de um útero, a placenta, a vala,
o chão, a cova, o túmulo.
Lápide
e eternidade.
Na lama, a ruína tende a nos mostrar a
verdade suprema do universo, a equidade da tríade suprema e assim tão
inexorável: O Tempo, A Morte e A Queda, não necessariamente nessa ordem.
Em estados altivos de glória, na suprema
segurança ou no supremo controle, haverá a inevitável traição, haverá o
descuidado descontrole. A loucura, a insanidade dos homens e a blindada
argumentação das mulheres. O certo, o errado, o nunca certo e o jamais errado.
A bebedeira, o mergulho, o álcool e as drogas. A nicotina, os dedos amarelos da
distração ou as abertas narinas da adrenalina. A gordura e o açúcar que corroem
as veias, inundam-nas, entopem-nas. A disfunção dos rins, dos nervos e das
retinas. Os corpos gélidos, ora tão cadavéricos, ora tão gelados de fina e
irreparável vida frágil. As camas de hospital, as inúmeras e repetidas e
familiares camas de hospital. Os sonos profundos.
Os blacks.
Os blacks.
Black.
Os tantos blacks em conversas
corriqueiras, triviais. Os blacks quase eternos, definitivos. As camas de
hospital novamente. As enfermeiras com tatuagens nos pés e torneadas batatas.
As enfermeiras santas. As enfermeiras mais jovens, mais belas, mais desleixadas
e mais cuidadosas. As enfermeiras que julgam-se sabedoras do tudo. As
enfermeiras altivas que igualmente afundarão na lama, cedo ou tarde.
As montanhas e os narizes e os médicos e
os gurus e os santos e os diplomados e os altivos adjetivos que de tão
adjetivados tornam-se substantivos, todos eles caem, desmoronam, placas
tectônicas em choque constante. Os tremores. Hemoglobina glicada. Ferro deficiente. A retinopatia e um lobo
vendado eternizado no braço, uma
profecia. A eletroneuromiografia e os mesmos sapatos de mesmos cadarços
pretos de tantos anos atrás – a mesma posição, pela terceira vez de novo; os
mesmos prédios e os mesmos corredores e as vozes que não se calam, que
reverberam um nome desleixado, irônico e talentoso
sempre que ele surge para irritar até quando assim não deseja. A
transaminase pirúvica, ou TGP, em 400, 450, 500... mais um trago e quem sabe o
túmulo? O fracasso. A vergonha. “A falta de ambição” na curvatura de
línguas tão ambiciosas, tão ácidas, tão vazias. Desmaios públicos e risadas
coletivas – as vozes carrascas que destroem aqueles que já foram e sentenciam
aqueles que nunca serão. As vozes irritantes. A opinião pública – a voz do povo
que é a voz de Deus e que é a voz de um cão raquítico que nunca ladra, só
morde; em suma a voz de Deus que é sempre um cão raivoso prestes a dilacerar,
rasgar, morder, infectar, matar e punir.
Deturpar.
Mais cigarros.
Mais.
Mais.
Mais lamentos.
Maus amigos e bons amigos. Falsos amigos.
Um boquete perdido. Um beijo nunca dito. Mentiras. Verdades. Verdades, sobretudo
as verdades. A autopunição. O martelo nas mãos do réu. O martelo disposto a
condenar, condenar, condenar – porém (e conscientemente) jamais prestes
a perdoar (-se). Um Deus que não
conhece absolvição e um anônimo histórico dependurado na cruz que não conhece
ou não quer conhecer a verdadeira clemência, graças a Deus. Sem misericórdia, sem perdão, sem necessidade de
desculpas, sem o desejo de nenhuma dessas coisas. A necessidade de comiseração
que não está vindo através de pedidos nem através de súplicas, muito menos de
conhecimento público.
Atos bondosos secretos. Atos bondosos
nunca proclamados. Atos bondosos nunca estampados nos outdoors da cidade, pois
os bons homens não merecem aplausos ou plateia; pois os bons homens merecem
apenas mirar em seus alvos, em seus destinatários, em seus beneficiários – um agente? um receptor! –, e em seguida
o silêncio, o esquecimento e o desconhecimento do público e do júri popular.
Bons atos não merecem holofotes, merecem, enfim, apenas o feito por si só, sem
menções honrosas, sem recompensas de Deuses menores e inexistentes.
Mais álcool.
Mais.
Mais.
Mais açúcares no sangue. Mais nervos
periféricos corroídos. A besta trancafiada na jaula, a besta acariciada por
mãos de Sagitário. A besta amada como ela é e por aquilo que ela é, não por
aquilo de que ela é capaz. A besta apaziguada, mas jamais negligenciada, jamais
esquecida.
A besta sem perdão.
A besta, besta.
A besta.
O monstro. O rosnado. As presas, as garras
que cavam lama para encontrarem, no fundo do poço, algum ouro anteriormente
citado – em outras conjunturas, em outras tecituras, em outros revérberos de
outras palavras, prosas ou poemas. O ouro que é ouro, da alquimia à química, do
coração à doença, da doença ao quase-triunfo, do quase-triunfo ao éter, do éter
à terra, da terra à lama, da lama ao verdadeiro triunfo, do verdadeiro triunfo
ao verdadeiro entendimento da vida – o conhecimento do vazio, o entendimento
que, naquelas mesmas camas de hospital, após tocar O Nada, é sabido que não há nada
depois da vida, do sucesso, do egoísmo ou das vitórias destas inúteis e
desprezíveis guerras; nada além de nada; nada além da simples-vida, nada além da apenas-vida,
nada além do simples-agora, nada além do
mero e todo este “nada”, nada além do Tempo, da Morte e da Queda. Nada além
da mera compreensão de que o triunfo, a vitória sobre os outros, o desprezo
sobre mortos amantes e esquecíveis amores, nada disso vale senão compreendido
com resiliência, sabedoria e humildade.
A lama e a ruína não valem de nada caso
não sejam abraçados, nadados, mergulhados, inspirados, absorvidos, doídos,
aprendidos, consumidos ou transmutados em
ouro, em benditas verdades, em
passageiros amores de poucos meses em detrimento da falsa promessa dos amores
eternos que duraram anos em seus fervorosos alardes e fervorosos holofotes – a
lama e a ruína não valerão de nada caso limitem-se em suma a essas salobras
insânias.
Há de se retirar algo de todas estas
coisas fadadas a ruírem: uma noite de amor, um encontro casual cosmologicamente
predeterminado pelo relógio, pelas estrelas tão silenciosas, pelos astros tão
inativos. Há de se viver a partir do fracasso, há de se reconhecer os verdadeiros
ímpetos e agradecer, a quem quer que seja, pelo sutil fato de não ser como
aqueles sujeitos odiosos, sem talento, gananciosos, abusivos, inteiramente sem
compaixão ou inteiramente sem ódio, sem maldade ou sem animalidade. Há de se agradecer, sobretudo, pela dádiva humana de
ser humano: falho ou falha, corruptível, hipócrita e por vezes descontrolado ou
descontrolada. Há de se agradecer pela insanidade, pela loucura que corre por
essas veias e pelas tecituras que sobem esôfago, garganta, língua e papel – necessariamente
nesta exata ordem. Há de se agradecer pelos erros, pelos inúmeros erros e pela sentença
em infernos muito particulares – sejam eles exames médicos ou tenham eles belos
cabelos e olhos castanhos. Há de se agradecer pela dádiva do tropeço, pela
oportunidade de cair, falhar, falhar, falhar e sorrir, pois adiante surgirá um
sentido, a estranha e desconexa estrada de tijolos cinzentos que levará ao
conforto de um abraço ou à realização de outrora e pessoais utopias – agora, finalmente,
prazerosas realidades.
Há de se sorrir. Há de se tecer
comicidades e escárnios enquanto estas fúlgidas faces estiverem estilhaçadas no
azulejo da piscina – a piscina vazia, aquela do salto. Há de se fazer alguma
coisa, qualquer coisa, com todas
estas tragédias – encontrar um sentido, um ponto provisório-final. Há de se
criar pérolas a partir de conchas tristes e calejadas.
Pois não basta apenas o triunfo – se
meramente iluminado e gritado aos olhos e ouvidos do mundo por cobiça, por
luxúria, por orgulho, por deleite e por egocentrismo, então de nada valerá.
A lama, substância tão vital da qual
tantos fogem, nada é, para os tolos (os verdadeiramente bobos e tolos) apenas mero
alvo para atirar os inimigos, para denegri-los.
A verdadeira derrota – a tão sagrada lama,
se devida e corretamente encarada –, a mais importante delas, será supremo
instrumento de apreensão de cinzas, sentido, vigor, crescimento e renascimento.
A ruína será então a melhor coisa que acontecerá
aos perdedores, aos artistas, aos mineradores que encontram ouro, porém não o
estampam ao mundo, não o comercializam, não o penduram aos holofotes, porém sim
o guardam, apreciam-no, acolhem-no e o transmutam.
A ruína, para alguns, não é o ponto final.
A ruína, para alguns, é tudo.
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