17 de junho de 2019

Ruína é tudo





A lama é edificante. Ela é suja. É algo natural e derradeiro à experiência humana: inevitável substância ao mergulho dos afogados.
A lama é poça de elementos vários – o interior de um saco escrotal, o caminho interno de um útero, a placenta, a vala, o chão, a cova, o túmulo.
Lápide e eternidade.
Na lama, a ruína tende a nos mostrar a verdade suprema do universo, a equidade da tríade suprema e assim tão inexorável: O Tempo, A Morte e A Queda, não necessariamente nessa ordem.
Em estados altivos de glória, na suprema segurança ou no supremo controle, haverá a inevitável traição, haverá o descuidado descontrole. A loucura, a insanidade dos homens e a blindada argumentação das mulheres. O certo, o errado, o nunca certo e o jamais errado. A bebedeira, o mergulho, o álcool e as drogas. A nicotina, os dedos amarelos da distração ou as abertas narinas da adrenalina. A gordura e o açúcar que corroem as veias, inundam-nas, entopem-nas. A disfunção dos rins, dos nervos e das retinas. Os corpos gélidos, ora tão cadavéricos, ora tão gelados de fina e irreparável vida frágil. As camas de hospital, as inúmeras e repetidas e familiares camas de hospital. Os sonos profundos.
Os blacks.
Os blacks.
Black.
Os tantos blacks em conversas corriqueiras, triviais. Os blacks quase eternos, definitivos. As camas de hospital novamente. As enfermeiras com tatuagens nos pés e torneadas batatas. As enfermeiras santas. As enfermeiras mais jovens, mais belas, mais desleixadas e mais cuidadosas. As enfermeiras que julgam-se sabedoras do tudo. As enfermeiras altivas que igualmente afundarão na lama, cedo ou tarde.  
As montanhas e os narizes e os médicos e os gurus e os santos e os diplomados e os altivos adjetivos que de tão adjetivados tornam-se substantivos, todos eles caem, desmoronam, placas tectônicas em choque constante. Os tremores. Hemoglobina glicada. Ferro deficiente. A retinopatia e um lobo vendado eternizado no braço, uma profecia. A eletroneuromiografia e os mesmos sapatos de mesmos cadarços pretos de tantos anos atrás – a mesma posição, pela terceira vez de novo; os mesmos prédios e os mesmos corredores e as vozes que não se calam, que reverberam um nome desleixado, irônico e talentoso sempre que ele surge para irritar até quando assim não deseja. A transaminase pirúvica, ou TGP, em 400, 450, 500... mais um trago e quem sabe o túmulo? O fracasso. A vergonha. “A falta de ambição” na curvatura de línguas tão ambiciosas, tão ácidas, tão vazias. Desmaios públicos e risadas coletivas – as vozes carrascas que destroem aqueles que já foram e sentenciam aqueles que nunca serão. As vozes irritantes. A opinião pública – a voz do povo que é a voz de Deus e que é a voz de um cão raquítico que nunca ladra, só morde; em suma a voz de Deus que é sempre um cão raivoso prestes a dilacerar, rasgar, morder, infectar, matar e punir.
Deturpar.
Mais cigarros.
Mais.
Mais.
Mais lamentos.
Maus amigos e bons amigos. Falsos amigos. Um boquete perdido. Um beijo nunca dito. Mentiras. Verdades. Verdades, sobretudo as verdades. A autopunição. O martelo nas mãos do réu. O martelo disposto a condenar, condenar, condenar – porém (e conscientemente) jamais prestes a perdoar (-se). Um Deus que não conhece absolvição e um anônimo histórico dependurado na cruz que não conhece ou não quer conhecer a verdadeira clemência, graças a Deus. Sem misericórdia, sem perdão, sem necessidade de desculpas, sem o desejo de nenhuma dessas coisas. A necessidade de comiseração que não está vindo através de pedidos nem através de súplicas, muito menos de conhecimento público.
Atos bondosos secretos. Atos bondosos nunca proclamados. Atos bondosos nunca estampados nos outdoors da cidade, pois os bons homens não merecem aplausos ou plateia; pois os bons homens merecem apenas mirar em seus alvos, em seus destinatários, em seus beneficiários – um agente? um receptor! –, e em seguida o silêncio, o esquecimento e o desconhecimento do público e do júri popular. Bons atos não merecem holofotes, merecem, enfim, apenas o feito por si só, sem menções honrosas, sem recompensas de Deuses menores e inexistentes.
Mais álcool.
Mais.
Mais.
Mais açúcares no sangue. Mais nervos periféricos corroídos. A besta trancafiada na jaula, a besta acariciada por mãos de Sagitário. A besta amada como ela é e por aquilo que ela é, não por aquilo de que ela é capaz. A besta apaziguada, mas jamais negligenciada, jamais esquecida.
A besta sem perdão.
A besta, besta.
A besta.
O monstro. O rosnado. As presas, as garras que cavam lama para encontrarem, no fundo do poço, algum ouro anteriormente citado – em outras conjunturas, em outras tecituras, em outros revérberos de outras palavras, prosas ou poemas. O ouro que é ouro, da alquimia à química, do coração à doença, da doença ao quase-triunfo, do quase-triunfo ao éter, do éter à terra, da terra à lama, da lama ao verdadeiro triunfo, do verdadeiro triunfo ao verdadeiro entendimento da vida – o conhecimento do vazio, o entendimento que, naquelas mesmas camas de hospital, após tocar O Nada, é sabido que não há nada depois da vida, do sucesso, do egoísmo ou das vitórias destas inúteis e desprezíveis guerras; nada além de nada; nada além da simples-vida, nada além da apenas-vida, nada além do simples-agora, nada além do mero e todo este “nada”, nada além do Tempo, da Morte e da Queda. Nada além da mera compreensão de que o triunfo, a vitória sobre os outros, o desprezo sobre mortos amantes e esquecíveis amores, nada disso vale senão compreendido com resiliência, sabedoria e humildade.
A lama e a ruína não valem de nada caso não sejam abraçados, nadados, mergulhados, inspirados, absorvidos, doídos, aprendidos, consumidos ou transmutados em ouro, em benditas verdades, em passageiros amores de poucos meses em detrimento da falsa promessa dos amores eternos que duraram anos em seus fervorosos alardes e fervorosos holofotes – a lama e a ruína não valerão de nada caso limitem-se em suma a essas salobras insânias.
Há de se retirar algo de todas estas coisas fadadas a ruírem: uma noite de amor, um encontro casual cosmologicamente predeterminado pelo relógio, pelas estrelas tão silenciosas, pelos astros tão inativos. Há de se viver a partir do fracasso, há de se reconhecer os verdadeiros ímpetos e agradecer, a quem quer que seja, pelo sutil fato de não ser como aqueles sujeitos odiosos, sem talento, gananciosos, abusivos, inteiramente sem compaixão ou inteiramente sem ódio, sem maldade ou sem animalidade. Há de se agradecer, sobretudo, pela dádiva humana de ser humano: falho ou falha, corruptível, hipócrita e por vezes descontrolado ou descontrolada. Há de se agradecer pela insanidade, pela loucura que corre por essas veias e pelas tecituras que sobem esôfago, garganta, língua e papel – necessariamente nesta exata ordem. Há de se agradecer pelos erros, pelos inúmeros erros e pela sentença em infernos muito particulares – sejam eles exames médicos ou tenham eles belos cabelos e olhos castanhos. Há de se agradecer pela dádiva do tropeço, pela oportunidade de cair, falhar, falhar, falhar e sorrir, pois adiante surgirá um sentido, a estranha e desconexa estrada de tijolos cinzentos que levará ao conforto de um abraço ou à realização de outrora e pessoais utopias – agora, finalmente, prazerosas realidades.
Há de se sorrir. Há de se tecer comicidades e escárnios enquanto estas fúlgidas faces estiverem estilhaçadas no azulejo da piscina – a piscina vazia, aquela do salto. Há de se fazer alguma coisa, qualquer coisa, com todas estas tragédias – encontrar um sentido, um ponto provisório-final. Há de se criar pérolas a partir de conchas tristes e calejadas.
Pois não basta apenas o triunfo – se meramente iluminado e gritado aos olhos e ouvidos do mundo por cobiça, por luxúria, por orgulho, por deleite e por egocentrismo, então de nada valerá.
A lama, substância tão vital da qual tantos fogem, nada é, para os tolos (os verdadeiramente bobos e tolos) apenas mero alvo para atirar os inimigos, para denegri-los.
A verdadeira derrota – a tão sagrada lama, se devida e corretamente encarada –, a mais importante delas, será supremo instrumento de apreensão de cinzas, sentido, vigor, crescimento e renascimento.
A ruína será então a melhor coisa que acontecerá aos perdedores, aos artistas, aos mineradores que encontram ouro, porém não o estampam ao mundo, não o comercializam, não o penduram aos holofotes, porém sim o guardam, apreciam-no, acolhem-no e o transmutam.
A ruína, para alguns, não é o ponto final.
A ruína, para alguns, é tudo.
  


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