Ela detestava os vestígios invisíveis e impalpáveis que o
cigarro deixava – o aroma, o fedor. De tudo, o cheiro era o que mais a
incomodava em meio a todo o resto – ficaria, facilmente, ao lado de um fumante
sem que assim se incomodasse, desde que houvesse a certeza de que o fedor da
nicotina não a parasitasse para o resto do dia. Desde que não fosse entre seus
dedos médio e indicador da esguia mão direita, desde que não ficasse nas
roupas, nas dobras das mangas ou em todo o tecido dos peitos, dos ombros ou das
costas; desde que não ficasse em seus cabelos, desde que não permanecesse no
suor do pescoço, das axilas ou até na bolsa. Desde que não partisse dela, para
ela ou por causa dela, estaria ótimo.
Das vezes que recorria ao cigarro, as ocasiões eram
justificáveis, pois se a perguntassem se fumava, ela responderia que não, que
não era um vício, nem um hábito, fazia-o apenas quando estava triste – verdadeiramente triste.
Talvez o rosto não fosse lá dos melhores: para uma média
municipal, não era de todo uma mulher feia nem tampouco extremamente linda.
Aprendera, desde cedo, que como animais instintivos, os seres humanos – tanto machos
quanto fêmeas, sobretudo as fêmeas – eram atraídos pelos aromas, não apenas aqueles
liberados pelas glândulas sudoríparas ou pela sorte de todos os outros
hormônios, mas pelos aromas artificiais, fossem Avon, Natura ou Boticário. Haveria
aproximação e interesse maiores por parte de seus parceiros, homens ou
mulheres, quando o aroma artificial assim fosse agradável, pois pessoas-não-lá-muito-bonitas
precisavam compensar a pouca beleza através dos cheiros. Havia, é claro, uma
porção de outros fatores, mas o olfato era de importância majoritária para ela.
A importância disso não estava, primeiramente, em atrair
parceiros ou parceiras, mas em compensar o que lhe faltava (ou o que julgasse
que faltava) para sentir-se satisfeita, ou pelo menos, feliz consigo mesma
através de um fragmento de noção, através de uma fresta de satisfação ou o que
quer que fosse de amor próprio para com o própria rubor de epiderme macia e
rabiscada nos pulsos, na batata direita da perna, em partes dos ombros e no pescoço
– uma milenar frase tântrica, uma runa de proteção, robôs depressivos de sagas
britânicas, protagonistas ultraviolentos de obras ultraviolentas e um vestígio
dos amores da adolescência, respectivamente, todos em cores negras tatuados na
pele alva.
Por isso, das raras e ralas cousas que a agradavam em si
própria, o cheiro era uma delas, senão a principal: o perfume artificial que
impregnado na pele depois de um dia inteiro de trabalho, rotina e suor,
misturava-se ao seu aroma natural, ao seu aroma anímico de mulher agora adulta,
agora solitária, agora com qualquer coisa que para ela fosse prioridade para
não permitir-se mergulhar nas amarguras da vida ou nas incongruências do
destino que todos os velhos avós e não-tão-sábios-assim-pais-e-mães um dia
ousaram-na profetizar. O aroma era a prioridade, um mimo; fator relevante de
cuidado e de atenção, fator importantíssimo e derradeiramente indissociável daquilo
e daquela que era: feder a suor humano (exceto quando partilhava o empenho dos
lençóis com um ou uma amante), feder a desleixo da vaidade aromal... feder, de modo
geral, era para ela sacrilégio com cada divindade que residia dentro de si; era
heresia, era descumprimento de um capricho mais que mero e superficial,
obrigatório.
Entretanto, agora (e nestes últimos dias inteiros) fumava
um cigarro – permitia que o fedor da nicotina sondasse todo o seu corpo a cada
baforada de danosa fumaça, a cada tragada que permitia um cessar fogo nos
pensamentos tão atômicos, angustiantes e explosivos, pois conseguia pensar ou,
mais que isso: conseguia não pensar, conseguia
uma pausa, um distanciamento do mundo que a perseguia e que tantos insistiam afirmar
ser característica permanente e factual de sua configuração astrológica, da
qual nadava em outras águas em busca de abstração, distração, refúgio, porém que os mais sábios sabiam
(oh, sim),mui bem sabiam, não passar da mais pura covardia de esconder-se dos
problemas e dos demônios que trancafiava na própria mente, na própria memória e
no peito que acelerava vez ou outra – fosse pelo que quer que fosse.
Há duas semanas, foram poucos – um único Lucky azul por dia
para permitir que respirasse. Há dois dias, no entanto, fora uma carteira
inteira de Marlboro pois este, sim, era mais forte e a levava para o silêncio no
meio do turbilhão do intervalo do trabalho ou entre as aulas – a fumaça era
mais pesada, e embora detestasse o cheiro que nela se afixava, o aroma podre de
nicotina que ela tanto se incomodava agora tornava-se quase parte dela, o
cheiro fixo destes dias fixos de... de... de
o quê mesmo?
Ela sabia?
Ela não sabia?
Ou apenas não queria dar-se
ao trabalho de pronunciar?
Quem sabe até pudesse se acostumar com o cheiro – as senhoras
da turma, à noite, que dividiam conversas passageiras e rápidos trabalhos de
classe, vinham (quase) se acostumando com seu hábito do
cigarro; a princípio, julgaram pecado mortal e surpreenderam-se, pois não sabiam
que ela fumava. E quando perguntavam “Desde
quando tu fumas?”, insinuando tons de vozes de senhoras que julgavam-se
superiores pelo simples fato de nunca terem tocado num cigarro ou por
frequentarem semanalmente a casa do Senhor, falando como se não fosse a mulher
à beira dos trinta, mas uma garotinha que precisava ser ralhada por
desconhecidas, ela simplesmente respondia:
– Só quando estou triste.
E encerrava-se aí o assunto.
O que não sabiam, na verdade, é que tristezas como aquela
eram extremamente raras de ocorrer: a primeira fora há quase quatorze anos, mas
não havia cigarros nem interesse em cigarros naquela época, apenas a boa e
velha literatura e canções tristes (“literatura
também é saúde”, dissera-lhe a jovem e sábia professora ao apresentá-la Uma faca só lâmina, de João Cabral de
Melo Neto). À época, a literatura, tanto lida quanto escrita, juntamente com as
músicas de graves melódicos e blues intensos, foram solução, foram válvula de
escape e de saída, foram salvação e remédio, tratamento. Mas da vez seguinte,
oito anos atrás, nos intensos mergulhos no álcool e nas primeiras e intensas
carteiras de cigarro, a coisa mudou de urgência, talvez porque as dores também
mudaram de intensidade – quanto maior o golpe, maior deveria ser o salto na piscina
vazia, maior a necessidade do baque. E pouco tempo depois, graças ao álcool e
aos mesmos cigarros que hoje fumava de novo, conheceu a salvação e sua
conseguinte ruína – a mais bela de todas elas.
Ressignificou, aí, o cheiro da nicotina: a primeira vez em
que o fedor deixou de ser fedor, a vez em que ele passou a ser lembrança
afável, voz veluda, sonho suado de palpitar amargo – porém inteiramente
valoroso, inteiramente digno do que quer que viesse a seguir: risos ou choros,
lágrimas ou gozos –, foi a vez que sentiu-se mais viva em todos os seus anos e
a vez em que não viu no cheiro da nicotina um aroma desprezível, mas um lugar
de retorno – pois vinha com ele um corpo com dedos de unhas não tão cuidadas
assim, nunca pintadas, nunca cerradas, talvez até ruídas, mas que eram mais
leves que as suas e intensamente a acariciavam, que frequentemente a tocavam o
meio das pernas e faziam dele jorrar cachoeiras de espasmos; um corpo com
cabelos não tão longos quanto os seus, talvez mais claros dependendo da direção
em que neles o sol incidisse e com tantas outras tatuagens pelos braços, pernas
e costas; um corpo que vinha ao encontro
dela sempre aos sábados e às terças, sempre
nas folgas, e que varava madrugadas ao seu lado discutindo filmes de
conclusões esquisitas e séries distópicas com base em um mundo não tão
distópico assim; um corpo para o qual pediu, na primeira vez, “faz amor comigo?”, ao invés de
simplesmente pular sobre ele em uma foda fenomenal; um corpo que, diante desse
pedido, derradeiramente sorriu e a aceitou, igualmente entregando-se não à foda
corriqueira, mas ao amor epifânico; um corpo que, assim como todos os outros
anteriores ou todos os outros vindouros, partiu ou foi deixado, abandonou ou
foi negligenciado, em suma amado, talvez traído.
Um corpo que tantas vezes tinha o mesmo cheiro do cigarro –
não o que ela detestava e que impregnava à sua pele enquanto tragava e
expulsava de garganta, traqueias, pulmões ou veias.
Um corpo que tantas vezes tinha o mesmo cheiro do cigarro –
aquele ao qual estaria disposta a voltar, fosse em uma fugidia aspiração
onírica, fosse em um só trago nos dias tristes, em casa, nos intervalos da aula
ou depois do trabalho.
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