11 de novembro de 2022

1º Turno: merda, muita merda





Dei entrada na emergência no sábado, noite de Trasladação. Na recepção, um rapaz muito educado, vestido com uniforme verde, me perguntou qual a razão do atendimento.

— Eu não faço cocô há 16 dias — eu disse.

— 16 dias? — Ele gaguejou, fingindo conseguir esconder a surpresa.

Fingi não ter notado.

— Essa merda quer sair, eu quero que ela saia, mas tá doendo pra cacete. Tá igual uma rocha atravessada no meu cu. Foi uma dificuldade chegar aqui com esse tanto de gente lá fora — apontei para a Visconde de Souza Franco que, às dez e meia da noite, estava intrafegável com um mar de gente atravessando as ruas, peregrinando de volta para a Pedro Álvares Cabral ou seguindo rumo à Catedral da Sé, subindo a Marechal Hermes e a Municipalidade. — Tive que descer do Uber na Cabral e vir andando até…

Quando notei que tagarelava além da conta e o rapaz, muito educadamente, balançava a cabeça fingindo compostura, fingi que meu relato havia terminado e fingi também que o ato foi deliberado. Ele digitou com dedos ágeis pelo teclado, me devolveu o cartão do convênio e pôs em meu pulso uma pulseirinha amarela. 

— Dobre no corredor à esquerda e siga a seta amarela. Depois é só aguardar o médico te chamar.

— Obrigado.

Coxo, como se meu problema fosse nos pés e não no reto, segui pelo corredor. Havia uma longa e grossa cauda de bonobo querendo sair pelo meu cu. Ela berrava enquanto tentava arrombar a porta. A única coisa que a impedia de sair era minha força de vontade e o terror de ser rasgado de dentro para fora. 

No corredor de espera, cruzei com duas madames, uma com o pé quebrado e a outra com dois dedos do pé enfaixados, fruto do sacrifício exigido por Nazinha para as almas azaradas. Calçavam sandalinhas Havaianas, surradas. As mulheres me lançaram um olhar compassivo, como se partilhassem da minha dor. 

— Tu também vieste da Trasladação? — Uma das madames me perguntou.

— Pisaram no teu pé? — Questionou a outra.

Custei a responder. Eu havia saído de casa às pressas, rangendo os dentes e suando em bicas. Isso explicava meu aspecto abatido e cansado, além da bermuda caseira e da camiseta folgada, parecendo um romeiro da Nazinha.

— Sim — eu respondi. — Me detonaram. Acabaram comigo.

— Senta, querido — a madame número 1 sugeriu, trocando de lugar para que eu sentasse na ponta.

— É, senta — a madame número 2 endossou o convite. — Ficar em pé vai ser pior pra ti, rapaz.

Balancei as mãos em agradecimento e neguei a oferta.

— Vai, senta.

— Senta logo.

Se sentasse, meu corpo relaxaria. A dor que me rasgava o cu seria absurda. O rabo do bonobo arrancaria minhas pregas e o cheiro de bosta e de sangue tomariam o corredor vazio do hospital. Ou talvez nem tanto. Ou talvez eu estivesse desesperado e a Nazinha estivesse rindo de mim, empregando um troco por todas as blasfêmias que ao filho dEla eu talvez houvesse proferido. Neguei uma segunda vez. De uma das salas, uma voz feminina chamou pelo meu nome. Acenei para as madames e entrei no consultório, aliviado.

A médica beirava os trinta anos. Estava atrás de uma mesa, diante do computador. A pose de tão altiva beirava o ridículo, sobretudo quando me viu. Cabelos lisos, loiros e muito bem hidratados, de um brilho absurdo que refletia boa linhagem econômica, mas a coloração nas pontas e na raiz não era natural, salientava apenas o branco do jaleco e dava um tom um pouco mais claro à pele. As sobrancelhas possuíam um alinhamento perfeito, como se pinceladas pelas deusas da beleza. Os longos dedos eram sinuosos, as unhas, um brilho. No peito, o jaleco exibia o nome em fontes de costura em alto relevo: Dra. Patrícia Stockler. Ao lado do sobrenome, um raminho de flores rosadas.

A Dra. Refinamento me olhou com estranheza, semicerrou os olhos, franziu as sobrancelhas de maneira muito distinta e elegante, claro. Elevou as costas, enrijecendo a postura. Não o fez por me ver entrar na sala de consultório com olhar manco e suor frio, a fim de me passar segurança ou acolhimento, mas sim porque ao meu rosto reconheceu de anos atrás e notou que ao dela eu também reconheci.

— Olha só. Olá — ela disse de maneira muito robótica, olhando minha ficha novamente e lendo meu nome para então proferi-lo com mais confiança, fingindo que se lembrava dele. — Quanto tempo.

— Quanto tempo, Patrícia — respondi com um sorriso largo, fingindo felicidade em revê-la, mascarando que sobre ela tinha boas lembranças e dissimulando, acima de tudo, que o olhar altivo e enojado que ela carregava nos olhos castanhos desde a época do ensino médio não estava mais ali. — "Doutora Stockler". Sobrenome bacana. Tu trocaste, foi?

— Eu casei.

Só um sobrenome estrangeiro e bonito faria com que ela substituísse aquele de nascença e que com tanto orgulho exibiu por anos, sobretudo na graduação em medicina ou nos primeiros anos de atuação.

— Chique demais. Stockler. É o quê, russo?

O sorriso dela tremeu. Muito elegantemente, ela corrigiu:

— É alemão. Meu marido tem descendência alemã.

Heil, Stockler.

Patrícia apontou para a cadeira, sugerindo que eu sentasse. A terceira madame só naquela noite. Já tava ficando chato.

— Diga-me, o que tu tens? — Ela usou o pronome no caso oblíquo com muita elegância, coisa que nem nestas linhas foi usado. A propósito, cada frase que Patrícia dizia era muito suave, um polimento despropositado que só as classes altas belenenses utilizavam, já que a vida era senão uma grande reunião de negócios embalada por vinhos de 40 anos, muito refinados, advindos das mais selecionadas safras do sudeste brasileiro.

— Então, Patrícia, posso te chamar de Patrícia, né?

— Claro…

— Então, Patrícia, eu não faço cocô há 16 dias. Hoje o rabo do macaco quis sair, e de fato até quer, mas tu deves imaginar que tá me rasgando inteiro por den…

— Entendi — ela pigarreou e digitou no computador. As unhas bem feitas de um esmalte rosa pastelão fazendo tec-tec-tec no teclado. A aliança de ouro no anelar esquerdo só não era mais delicada que a doçura dela. — Tens herromoidas?

— Não, Patrícia.

Ela sorriu, incomodada. Parecia ter esquecido que seu nome era esse e não “Dra. Patrícia” ou “Dra. Chucrute”.

— Já tiveste isso antes?

— Já, mas não a esse ponto. 16 dias é muito. Geralmente não passa dos 10.

Ela ousou me olhar com um misto de nojo e repreensão, mas deteve-se. Isso foi o mais próximo que chegou de me enxergar como humano.

— Tu precisas beber bastante água e adequar tua alimentação. 

— Certo.

— Eu vou passar uma lavagem.

— Tá bom.

— A gente não pode deixar esse fluxo intestinal parado por tanto tempo assim. Em casos mais graves, só com cirurgia pra desobstruir o intestino.

— Sim, senhora.

— Se ocorrer tudo normalmente com a lavagem de hoje, não vais precisar se preocupar, até porque a lavagem é rápida — ela digitou mais algumas informações. Em nenhum momento me olhou nos olhos. — Mas depois daqui te sugiro procurar uma nutróloga pra se adequar a uma dieta balanceada com fibras. O que tu tens feito?

— Eu tenho comido carne vermelha, carne branca…

— Não. Da vida. Depois do ensino médio. O que tu tens feito?

— Fiz Letras Língua Portuguesa.

— Professor de português? Interessante — disse ela, com desdém polido.

— Mas não terminei. 

— Oh, que pena.

— Aí fiz Jornalismo.

— Poxa, que legal.

— Mas também não terminei.

— Ah — ela sorriu e continuou a digitar, forçando concentração no receituário infinito.

— Publiquei alguns livros até agora.

— Olha, que legal. Autoajuda? Ilustração?

— Ficção.

— Ah — ela imprimiu dois pedaços de papel e me entregou. — Entrega na enfermaria, a outra é receita de um laxante. Se tu ficares bem depois da lavagem, nem precisas voltar aqui — enfatizou, uma discreta espécie de súplica. — Marca uma consulta com uma nutróloga e também procura algum coloproctologista.

— Colo-o-quê?

— Coloproctologista — a dicção impecável.

— Ele cuida do quê? Do cu?

Ela forçou um sorriso.

— Ah, e o álcool não faz bem para a prisão de ventre. Melhor parar com altas doses de bebida alcoólica, por enquanto.

— Mas eu nem bebo com freq…

— A nicotina também prejudica o trato intestinal.

— Espera, sério?

— Sério.

— Caramba, dessa eu não sabia.

Também não sabia que eu fumava.

— Tu és escritor, né? — Perguntou ela, só para se certificar de mais algum conselho médico. — É sempre bom voltar a estudar. Tenho um tio bem distante que é idoso e se formou agora, aos 64 anos. Quero dizer, de fato nem é meu tio. É mais um primo distante do lado distante da minha família paterna — ela esclareceu com muito afinco. — Mas vai lá, força. Tu consegues. Tem muitos trabalhos dignos e de verdade por aí.

Fiz um sinal positivo com a mão e agradeci:

— Obrigado, Patrícia. Quer dizer: obrigado, Dra. Stockler.

O sorriso dela se reavivou. Com as migalhas da adoração distribuídas, o ego retornou ao seu ponto de conforto.

— Stockler. Sobrenome grã-fino. É o quê mesmo? Húngaro, né?

— Alemão. É de descendência alemã.

Saí do consultório e me arrastei até a enfermaria. Entreguei o receituário a uma das enfermeiras de plantão, que não era madame, mas igualmente me mandou sentar. Fiquei recostado na parede enquanto, já às quase onze horas da noite, com corredores quase vazios além das duas madames fazendo raio-x, o hospital estava quieto e silencioso. Precisei esperar a boa e lenta vontade das enfermeiras que digitavam mais instruções no computador e se indispunham de levantar das cadeiras. 

Para conter a fúria do rabo de macaco querendo me atravessar o reto, peguei o celular em mãos a fim de qualquer distração. Digitei o nome da Dra. Sangue Azul nas redes sociais e encontrei fotos do casamento, dos arranjos de flores, do salão em ambiente abastado e dos olhinhos germânicos do marido. A cerimônia havia sido há três meses na Basílica de Nazaré, aos pés e sob as bênçãos da própria Nazinha que, naquele momento, tinha a imagem peregrina abençoando o povo que suava de verdade, que sofria de verdade, que vivia num mundo de verdade e que, apesar das eventuais madames, até quebrava os pés e os dedos dos pés de verdade, dores suscetíveis aos pobres e aos vagabundos, ao contrário dos abastados que tinham arranjos de flores rosadas ao lado do sobrenome emprestado, em bordado elitizado de uma costumeira brancura superior, fadados a assinarem receituários ad infinitum sem nunca erguerem os olhos na direção da plebe que com eles se consultava.

Em uma das postagens da Dra. Elegância, de exatas oito horas atrás, ela dizia:

 

Pelo bem de nós, cidadãos, reafirmo meu voto na defesa de nossa integridade e de nossa segurança. Quando um bandido te atacar e depois sair impune, você faz o M do amor. Pois no Brasil nós somos atacados, os agentes da Lei são atacados e os bandidos são soltos, são perdoados e tidos como vítimas da sociedade. Quando isso acontecer e de novo estivermos afogados em maldade, quando o crime compensar e a Ditadura Comunista retornar, você faz o M e o coração do amor. ♥️

 

Dois dias antes do pequeno e surpreendente texto, houve outro:

 

O Presidente Jumentinho Messias Grandeasno governou por quatro anos sob constante e descarada perseguição de uma mídia que o acusou de barbáries jamais cometidas e aqui nunca mencionadas. Da parte dele, nunca vimos sequer uma tentativa de censura. Nada! O candidato Luiz Ignácio Molusco da Silva nem governa e, apenas em sua campanha, vê-se um espetáculo de censura e de ameaças de regulação da mídia, impedida de noticiar sobre os kits de ideologias de gênero nas escolas ou sobre as mamadeiras eróticas em creches municipais. 

O que você vai decidir dia 30 de outubro é muito sério. Seja responsável. Pense em nossas famílias e no futuro de nossos filhos e das próximas gerações. Não carregue a culpa de entregar o Brasil às quadrilhas Comunistas.

A liberdade, mais que um tubo de oxigênio, é vital para a nossa sobrevivência. É o que temos de mais precioso e é o que países que já a perderam jamais recuperaram. O Brasil jamais, em momento algum de sua história recente, perdeu ou teve sua liberdade censurada, não da maneira como agora tem sido ameaçada.

Prestem atenção! Não caiam na laia do Molusco. Hoje você faz o M com amor, amanhã terá sua liberdade de expressão calada.

Chega! 🇧🇷

 

A pontada no meu reto veio com força. Gemi e bloqueei a tela do celular.  Uma longa lufada de ar me escapou pelo nariz.

— Que merda. Que cacete. Como pode?

No fim do corredor, outra enfermeira chamou pelo meu nome, mas não respondi. Os poucos sujeitos que aguardavam sentados se entreolharam, à procura do paciente anunciado. Como se eu também estivesse procurando o sujeito, fiz o mesmo. Ela me chamou pela segunda e pela terceira e pela quarta vez, porém eu já havia saído do corredor e voltado à recepção, mancando da mesma forma com que havia me arrastado até lá. Arranquei a pulseirinha amarela do braço e saí pela porta da frente do hospital.

A Doca continuava abarrotada de romeiros, a maioria bondosa, compartilhando a fraternidade cristã e embalada pela devoção à Nazinha – porém só durante aquele fim de semana, pois na segunda-feira vestiria seu uniforme verde e amarelo, empunharia suas armas nas mãos (imaginárias ou não) e retornaria ao hábito e à programação normal. Longas filas de carros se juntavam ao coro de vozes, buzinas, sinalizações e apitos inúteis dos guardas do Detran. Andei em meio aos caridosos e cansados romeiros como se fosse um deles, disfarçado sem que ninguém percebesse que eu estava em intensa angústia retal. Arrastei-me em absurda agonia por dois quarteirões até a farmácia mais próxima e comprei o laxante receitado pela Dra. Liberdade de Expressão. 

O caminho de volta para casa foi bem mais doloroso. Não haviam carros de aplicativos com tarifa menor que 50 reais, os ônibus estavam abarrotados e a maioria das ruas, fechada. Por sorte, aquele sequer era o olho do furacão caótico no qual a festividade santa transformava a cidade durante todo mês de outubro.

Dois quilômetros, 39 minutos, 10 quarteirões e 21 pontadas no meu ânus depois, cheguei em casa. Eu suava como um porco no abate. Se pela caminhada ou se pela agonia, era impossível afirmar. Engoli 3 comprimidos de laxante com um gole de água. Esperei que fizessem efeito. Sentei no vaso. Meu corpo inteiro relaxou. Meu cu se abriu.

Fiz força.

Fiz força.

Inútil, abri o chuveiro. Quando a água começou a cair e meus gemidos se tornaram inaudíveis para a vizinhança, fiz mais força. Pensei na liberdade de expressão do meu pobre cu, impedido de despejar tanta merda. Calado. Silenciado. Amarrado pelas amordaçadas patológicas do Comunismo que toda a merda produzia e toda a merda lhe pertencia. Maldito! Fiz mais força. Apalpei a parede. O suor ensopava meu corpo, descia do topo da cabeça, encharcava minhas costas, deslizava pelo meu cóccix, serpenteava o meio da minha bunda e ajudava a lubrificar o buraco já fragilizado do meu ânus. As pregas segurando o que já não aguentavam segurar: a grossura de uma garrafa grã-fina de vinho refinado de 40 anos tentando rasgar reto e carne de dentro para fora. Um planeta anão, pobre Plutão, querendo sair, ver-se livre da censura, do AI-5 pelo AI-5, em busca da piscininha no vaso sanitário, a tão sonhada liberdade possibilitada somente pelos Militares, os bravos heróis de nossa nação, homéricos protetores da burocracia, de canhões enferrujados e de memórias empoeiradas, de feitos lendários porém fantasiosos que só o Camisão de Lima Barreto poderia confirmar, guerreiros fortes, barrigudos e broxas, viciados em azulzinhas e mergulhados na lama da selva, nobres rapazes viris com armas em punho, pescoços femininos e docentes entre os dedos, e acima de tudo. frágeis, muito frágeis, como capivarinhas fazendo cri-cri-cri-cri aos seus destemidos superiores.

A merda acumulada entre meus órgãos só queria sair. Só queria a liberdade. Um direito cívico e constitucional. 

Fiz força.

Fiz força.

Vai lá, havia dito a Dra. Com-Nome-de-Luxo, força.

Tu consegues.

Pensei naquele rostinho bem cuidado, naquela pele alva dermatologicamente bem tratada e de alto preço no tráfico humano, caso fosse arrancada e vendida para satisfazer aos fetiches de algum gringo ricaço (um de verdade). Pensei nas madeixas loiras. Pensei na maneira como, desde a adolescência, fuzilava todos os outros com aqueles olhos castanhos desprovidos de humanidade. Tão amada pelos pedófilos professores que hoje enfeitavam lápides como santos do Senhor. Tão agraciada pelo alto escalão da escola, um rosto belo, exemplar, moldado para estampar os outdoors da cidade como um promissor troféu de fim de ano. Pensei naquele olhar que não enxergava os pacientes. Pensei na tão séria, genuína e relevante preocupação que possuía para com o país, a liberdade de expressão e a punição de bandidos descarados que pilhavam a política brasileira de corrupção – sempre os dos outros, nunca os dela.

Vai lá, havia dito a Dra. Soberba com típico desdém, força.

Tu consegues.

— Ô, Nazinha. Se tu me ajudares a cagar essa merda, eu juro… paro de falar mal do teu filho. Ô, Nazinha, por favor, me ajuda com essa mer… desculpa. Me ajuda, por favor. Eu juro, Nazinha, vou ser uma pessoa melhor. Não vou mais discutir na rua nem incitar confusão pública. Não vou mais brigar com parente. Vou respeitar meus familiares mais velhos, mesmo eles sendo uns protofascistinhas desgraçados, adúlteros e hipócritas. Olha só, Nazinha, eu juro que vou parar de brigar e de me ofender por política, eu juro! Me ajuda… Por favor. 

Fiz mais força.

— Olha só, Nazinha. Se tu me ajudares com essa merda… ah, me desculpa de novo, me desculpa… eu vou ser uma pessoa melhor. Não vou mais blasfemar contra Deus nem fazer piadas. Mas olha, assim, que fique claro: eu não posso fazer muito além daquilo que posso fazer, tá? Não vou pagar promessa na corda nem andar de joelhos pela avenida Nazaré. Tem algum problema? Apesar de tudo, eu juro que vou ser um cara melhor, tá bom? Isso eu prometo. Juro. Também paro de escrever besteira. Eu juro que paro de cutucar os outros fingindo que isso é literatura urbana e barata, é que eu não posso fazer nada se… a Senhora sabe, é pra isso que eles servem. A Senhora entende, né? Mas eu juro que vou parar. Juro. Só… por favor… me ajuda, Nazinha. Me ajuda. Me faz cagar, Nazinha. Por favor. 

Fiz força.

E mais força.

Enfim a tora saiu. Rasgou meu cu, rasgou minhas pregas. Sangrei como um soldado abatido. Depois do primeiro tiro, caguei uma sucessão de quatro longos troncos de excremento. Cada um arregaçando meu ânus até ele se tornar o próprio O Grito de Edvard Munch. A cada trovejar, o relâmpago marrom friccionava minha pele avermelhada, ardia o ardor dos Infernos, a princípio fazendo "ploft" na água, um meteorito denso caindo no oceano. Ao fim, com as quatro longas projeções de mais de vinte centímetros atoladas no vaso, o último não fez ploft, pois estavam acumulados acima d'água, como um bolo de chocolate em pé sobre a cobertura, não o contrário. Como podia? O corpo humano armazenar tanta merda.

Quando a tempestade acabou, arrastei-me até o banheiro, fraco e abatido. A água me lavou o corpo, o suor, a lameira biológica e o sangue escuro. Lavei meu abrandado reto com muita cautela e fiquei debaixo do chuveiro até que o sangue cessasse e parasse de escorrer pelo azulejo claro junto a água. Em seguida saí do banheiro. Exausto, deitei na cama de bruços. Mofino, caí no sono.

Já era domingo, dia de Nazinha.

A esta cidade ela abençoava e, ao alívio, meu cu ela entregava.

Tranquilo, muito tranquilo era o sabor da liberdade.

 

 



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