6 de outubro de 2011

Desdenhar-te





Entrei no apartamento naquela manhã nublada sob as recomendações do corretor e as toneladas de burocracias. Havia tanto tempo eu não voltava ali, mas o lugar continuava o mesmo, com uma ênfase maior no cheiro abafado de móveis velhos, papéis mofentos e a última garrafa de whisky largada na sala.
O homem era baixo e calvo, suava incontrolavelmente pela testa enrugada e pelas têmporas manchadas – proveniente de algum problema de pele. Ele falava como um papagaio antes do abate, tagarelando sobre preços, pessoas interessadas e comentando com um sorrisinho falso o mal cheiro do lugar.
Vá se foder, eu pensava.
O baixinho não parava para descansar a voz e mais parecia uma prostituta velha contando suas aventuras. Obviamente, aquela merda toda não me interessava e minhas reais razões de estar naquele apartamento eram outras. Atravessei a entrada e o abandonei na sala com sua prancheta e intuitos financeiros – é, ele podia esperar. O lugar imundo me recordava a última vez que estive ali e o modo intenso como a brisa fria entrava pelas janelas.
A manhã nublada recordava as condições daquele dia, já que o natal se aproximava e as chuvas típicas que semeavam os inícios dos dias traziam um gosto especial às coisas. À ela. Em minhas lembranças, a árvore brilhava no canto da sala, o primeiro presente já ostentava seus pés – colocado por mim, numa embalagem rosada delicada de laços prateados. O cheiro do café vinha da cozinha, ela estava lá, preparando os ânimos para outro dia de nossas vidas. Nossas. Bela ilusão, devo confessar.
Agora, na minha imagem atual, desprovido do clima de natal e cheirando o aroma abafado do apartamento, eu começava a parar no meio da cozinha. As louças ainda estavam lá, incrivelmente sujas e organizadas – até na merda da sujeira aquela mulher conseguia ter organização. Soltei um suspiro alto demais, e o maldito baixinho corretor fez um comentário estúpido e bajulador. Eu não liguei. Era mais um desses fodidos que viviam em função do dinheiro, pouco se importando com os problemas alheios. Talvez se naquela época eu assumisse tal posição, então as coisas não me teriam sido tão cruéis. Truques do destino.
Senti o aroma do café, tomado subitamente pelo devaneio das lembranças.
Nesta exata posição, ignorando toda a sujeira da cozinha – que um dia me parecia tão limpída e refinada – pude enxergá-la de costas, fazendo o café da manhã do modo antigo, mesmo com a cafeteira ao seu lado. Ela costumava me dizer que sua avó preparava o café daquele modo, e que não conseguia fazê-lo de outro jeito. Todos os dias ela repetia aquele maldito e arcáico costume, que de algum modo me fizera amar tanto o vício pela cafeína nos últimos anos. Hábitos adquiridos; as coisas mais idiotas e patéticas que ela fazia começavam a fazer parte da minha vida de um jeito estranho, de uma forma compulsiva. Eu já não me via sem seus passos.
Então ali eu estava, tendo sua imagem refletida e reproduzida na minha memória. Ela se vira, com os longos cabelos escuros e pele alva. Sorriso de ponta, olhar estonteante que me fazia cogitar se estava me sorrindo ou traindo. De suma atraente. Para diante da mesa e repousa a garrafa do café, me sussurra palavras doces e gentis, tornando seu bom dia a coisa mais sensual e amável possível. O tipo de coisa que me fazia ter vontade de voltar para a cama, tirar suas roupas e amá-la como na primeira vez. Esse era meu desejo: amá-la todos os dias, amá-la como a primeira vez, todos os dias, para o resto de nossas vidas. Entregá-la os melhores beijos, os mais calorosos e abobados, em seguida prometê-la as mais puras e sinceras juras de amor. Ah, caralho, eu era uma belo idiota. Mas então ela vinha, colocando o café na mesa e sentando nela, esperando meu próximo passo. De algum modo conseguia impedir que meus desejos se concretizassem e meu jeito de amá-la fosse prorrogado para depois do café da manhã.
O corretor fungou e me fez a pergunta crucial. Cruzei os braços e virei-me para ele. De relance, vislumbrei o quarto. Nosso quarto. E desejei que as imagens das nossas fodas me viessem à memória, mas tudo o que enxerguei foi uma noite escura – alguns dias antes do natal – e gemidos abafados. Quisera eu ser tudo aquilo um pesadelo, mas as lembranças que tive dela eram somente as que remontavam seu corpo nu, as curvas suadas e perfeitas de baixo do calor do corpo do outro cara . Essa é a única imagem pragmática e nojenta que permeia meus olhos. A única imagem que martela minhas retinas e pisca como aparato de puteiro de esquina. Era ela sob ele, suando e gemendo e suspirando e fazendo aquilo da forma mais clichê na nossa cama depois de tantos motéis baratos pela Mário Covas ou na própria casa do marmanjão enquanto os pais dele não estivessem lá. Era selvagem, era brutal, era ritmado, era incansável. Era barulhento. 
Forçado a escapar dessas lembranças, volto ao presente, parado diante do corretor anão-careca-com-problema-de-pele. Ele me refaz a oferta com mais ênfase. Agora está quase dobrando o preço, adicionando 40% a mais no valor original.
Então eu fecho os olhos e relembro o cheiro do café, de seu sorriso de ponta e do olhar que até hoje me intriga – era um sorriso ou uma traição? Reabro os olhos e estendo a mão para o baixinho patético. Não estou dizendo nada, mas posso ver seus dentes amarelos de tabaco fechando o acordo comigo.
 Negócio fechado!   Ele comemora. 
Vá se foder
Era tudo o que eu conseguia pensar.

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