28 de agosto de 2015

Loirinha



Saí daquele quarto de fininho, sem que garantisse a ela um último instante para me segurar pelos braços.
Eu já havia engolido calado todas aquelas certezas inconsistentes e havia engolido calado a existência do cara bonitinho com topete bem arrumado que tocava guitarra e ainda era o vocal de uma banda em ascensão. Certo, essa definitivamente era a parte mais legal da história: o cara era realmente legal, tinha até estilo e algumas tatuagens maneiras. Aliás, fora exatamente tudo o que a loirinha dos cabelos lindos e encaracolados havia gritado na minha cara da forma menos direta possível, cheia de provocações e joguinhos. 
Meu Deus, como eu amava aqueles cabelos. Ela descendia de uma família de imigrantes que viera para o país na década de vinte; algumas décadas do bem-bom geográfico no sul do país e subiram o mapa, vindo parar nesta torpe terra de índios renegados ironicamente também com cabelos loiros e olhos azuis – quase ninguém imaginava que os índios daqui tinham essas características e ainda conseguiam dirigir carros em vias que ninguém também imaginava que existiam e que ainda por cima eram asfaltadas. Assim ela veio parar aqui, sempre me matando com aqueles traços que eu tanto amava. Mas aqueles traços que eu tanto amava também eram infantilmente teimosos e ruins de admitir que eu estava louco, eram ruins também em admitir, diretamente, que aquele carinha da banda era melhor que eu. 
Ah, mas ela o fez da pior forma, justificando suas falcatruas com os meus desleixos. E fiquei calado – eu era bom para cacete nisso. Quis nesse momento, pela última vez naquela tarde, acaricia-la as maçãs rosadas do rosto e dizer que tudo estava bem, que eu esqueceria com um pouco de autopiedade e humor negro, que tudo enfim ficaria bem e seríamos o melhor casal que a cidade já tinha visto. Mas ela persistiu com as massacrantes afirmações. Balancei afirmativamente a cabeça – vinha fazendo isso há tanto tempo que chegava a ser um movimento automático. Ela cuspiu e vomitou todo o ódio reprimido, as infantilidades e os jogos vencidos... ela sempre vencia, mais por insistência do que por qualquer outra coisa. E eu tive que mentalmente construir uma mirabolante e longa lista com os itens que faziam de mim um traste, cafajeste, pilantra e arruinador de vidas que era mais baixo que todos os tipos de homens que ela conhecera. Não. Não. Ela particularmente queria me fazer enxergar como eu era um traste, cafajeste, pilantra e arruinador de vidas mais baixo que o carinha que ela “secretamente” havia arranjado nos últimos dois meses. Lembrei-me também de reformular minhas definições de “secretamente” para “toda a porra da cidade e das redes sociais já sabiam e já tinham percebido”. A minha linda dos cabelos loiros até mesmo tinha colocado uma letra de música de autoria do carinha no maldito subnick do chat online e nunca, jamais, em ocasião alguma, havia sequer agradecido pelas porcarias de um milhão de páginas que eu havia tecido em sua homenagem.
Agora, enquanto ela recolhia os destroços de todos os objetos que atirara em minha direção, eu aproveitava para cair fora daquele quarto de fininho. Atravessei todo o interior da casa até a porta da frente, dei adeus aos meus sogros que sempre foram um amor comigo e que não faziam a menor ideia das aventuras românticas e musicais da filha, nem tampouco da Gehenna que seus cabelos loiros e maçãs rosadas de rosto me causaram em todas as esferas possíveis. Eu gostava dos velhos – o seu Anísio até mesmo era tão vascaíno quanto eu e sempre me dava presentes esportivos, um feito e tanto levando-se em consideração que que era eu o “cara que e afetivamente está permitido a fazer amorzinho com sua filha única”. Pobre seu Anísio, juro que eu jamais contaria a ele que de “oficial” eu não tinha nada e que, oficialmente da verdadeira forma mais oficial e oficialmente possível, havia outro marmanjo topetudo, galã e tocador de guitarra e vocalista que fazia esse serviço.
Dei adeus aos velhos e eles, sem muito saberem o que fazer, retribuíram a despedida. Provavelmente escutariam apenas a versão da história em que eu era um filho-da-puta-desleixado-e-sem-coração-sem-sentimento-nenhum-que-nunca-realmente-deu-a-mínima-pra-mim-e-que-me-deixava-muito-mas-muito-muito-mas-muitissimo-magoadinha-e-com-coração-partido.
Puta que o pariu.
A pior parte é que eu amava aquela loirinha, e a segunda pior parte é que a caneca que eu a dera de presente havia feito um estrago e tanto quando se espatifou na minha costa. A dor seria alucinante dali a algumas horas – porque naquele momento meu sangue estava quente demais para sentir, ou talvez fossem apenas os chifres ardendo e queimando e me distraindo da dor de verdade.
Ouvi os gritos da loirinha atrás de mim enquanto eu apressava os passos pela calçada na direção do carro. Em alguns minutos, eu já estava longe demais dali, tentando controlar as batidas do coração que me diziam “vai, acelera contra a porra daquele muro. Que tal aquele poste? E o cruzamento? Vai ser delicioso, meu chapa. Vai ser legal, uma viagem e tanto, vai te deixar ligadão e depois bem relax. Vai. Acelera. Agora. Vai. Vai. VAI!”.
Ao invés disso eu parei no cruzamento, respeitando até mesmo o sinal amarelo no semáforo. Batuquei os dedos sobre o volante e lembrei das aulas de yoga que havia assistido no Youtube (vídeo-aula parte 02 de 47): controlei a respiração, o sangue pulsava, a dor nas costas latejava, o chifre na testa ardia e todos os desaforos daquela loirinha de nariz empinado e que nunca dava o braço a torcer para absolutamente nada me vinham em mente, por todas as vezes que me desculpei por seus insultos e implorei perdão por vacilos que não eram meus. Cacete, eu amava aquela loirinha com maçãs de rosto rosadas. Respirei fundo. Um. Dois. Três.
Aguardei o sinal ficar verde. Antes disso, porém, meu celular vibrou. Era uma mensagem de texto da loirinha. Sinceramente esperava um pedido de reconciliação ou “meu perdoa eu não devia ter jogado a xícara em você, eu te machuquei?” ou “volta aqui, vamos conversar. Por favor” ou simplesmente um bando de xingamentos me chamando de irresponsável, infantil e moleque. Batuquei os dedos no volante enquanto me preparei para ler a mensagem.
Tudo o que dizia nela era:
“Sabe o Fernando da academia? Pois é. Preciso te dizer que também transei com ele, otário!”.
Joguei o celular com calma sobre o banco do passageiro e respirei fundo. Um carinha com topete que tocava guitarra e ainda era o vocalista da banda? Tudo bem, até tinha estilo. Mas o maldito bombadinho da academia, amante de Whey Protein, que só falava de treino e vivia batendo uma para o próprio reflexo no espelho?!
Puta merda.
O sinal abriu e segui em frente.
O pior é que eu amava aquela loirinha.



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