Você levanta da cama em uma tentativa
autoritária de cumprir com o que planeja. Prende os cabelos lisos em um coque
improvisado e joga o lençol para o lado, obrigando o corpo a assumir uma
disposição que é quase impossível para o horário, obrigando o corpo a assumir
uma disposição que os olhos não desejam. Põe uma das pernas para fora e penso
ver sua reação quando toca a ponta do dedão na lajota fria, porque recolhe um
pé em um reflexo rápido e contido, quase tentando esconder de mim o quão
despreparado seu corpo está. Eu começo a rir e você, no fundo da alma,
realmente tenta vestir uma carranca que não funciona às sete horas da manhã. A
luz entra amena pelo balancinho e pelas frestas da janela de metal, juntamente
com o clima meio frio da quarta-feira. Pelo pouco que me recordo da madrugada,
garoou por volta das três e meia, o que é raro para essa época do ano. Talvez
eu lembre disso porque olhei a hora no celular antes de virar e pegar no sono
com o peito ofegante ou talvez fosse uma ilusão bordada em um sonho delirante
qualquer.
Novamente você tenta: coloca a planta
do pé cautelosamente sobre a lajota, experimenta o frio da manhã na planta
dele, contrai o corpo, contrai o rosto e aperta a beirada da cama com as mãos
de pele alva. Em seguida, passa a segunda perna e faz o mesmo com o outro pé,
causando agora um calafrio que sobe por seu corpo e deixa arrepiados os
pelinhos dos braços até os ombros, com poros abertos que faço questão de
deslizar os dedos para sentir. Aí você se arrepia mais, embora agora tenha
controlado os reflexos do toque. Eu pergunto por que já vai e você diz,
categórica, que tem de voltar para casa.
Embora contrariado, imediatamente aconchego-me
às suas costas, envolvendo-a com o braço direito pela cintura e encaixando o
peito na altura do cóccix. Deito a cabeça em um travesseiro ao lado de sua coxa
esquerda e ali emprego um beijo silencioso, desses que você não quer mais
descolar a boca. Eu alguma vez disse que
gosto do cheiro da tua pele? Devo ter dito, pois sempre estive dizendo o
que penso sobre o seu corpo ou sobre sua existência como um todo, fosse neste
exato momento, fosse no dia que nos vimos pela primeira vez.
Vem aí o embate supremo: perguntas e
respostas sobre o porquê você precisa ir, o porquê da pressa, o porquê da ânsia
por sair da minha cama. Antes que sequer tenha o ímpeto de levantar, eu a
bombardeio de questionamentos e pergunto o que é preciso para fazê-la desistir
da vã ideia de partir. O que faço pra que
tu fiques? eu pergunto. Você sorri como se a proposta fosse absurda, você sorri como se também não desejasse a
possibilidade. Aí tenta levantar na direção do banheiro, mas eu a impeço. Você
me olha com um meio sorriso ora confuso, ora desafiador, ora excitado pela
afronta, tenta sair de novo e mais uma vez eu a impeço. Na terceira tentativa
você ri mais alto e balança a cabeça, perguntando se eu não a deixarei sair
daqui hoje. Minha resposta é imediata, óbvia e direta. Você balbucia um “Bobo” e abaixa a cabeça, fechando os olhos
para um inevitável bocejo. Puxo seu corpo de volta para a cama e a surpresa me
aplaca quando apenas se limita a sorrir e a se deixar conduzir uma vez mais aos
lençóis.
Eu tinha que voltar pra casa, você diz, hesitante, como alguém que não consegue inventar
nada além de uma mentira fajuta para escapar de um forte, pecaminoso e tentador
convite. Vi teus olhos de negros vales submarinos arquitetarem quaisquer
argumentos sólidos para me convencer, mas teu corpo, tua boca e o modo como
coçava o topo da cabeça te traíam – cada um magistralmente. Em tua clara e
prolongada falta de resposta, encaixo teu corpo pelo meu, enrolando braços e
mãos e pernas e suspiros. É feriado lá
fora, eu digo ao dar de ombros. Então
que se foda tudo, digo por fim e você ri como se eu fosse um louco
transgressor de leis, como se eu fosse algo que de fato valesse a pena possuir
nesse mundo.
“Será que os mortos se incomodarão com isso?”, você pergunta com ar de zombaria. Eu
te questiono e te indago, prostrando o rosto sobre teus peitos e te olhando
direto nas órbitas negras. “Acha mesmo que
os mortos se incomodarão com o que fizemos ou com tudo que faremos agora?”.
Que audácia. Que audácia deles nos observarem e que audácia deles nos
espionarem. Que audácia deles o incômodo.
Então eu digo que “os mortos não
importam mais”. Você sorri. Falávamos ao pé da letra, nada de metáforas. Talvez
esta seja uma das tantas razões por eu gostar do seu cheiro (e por consequência
de você, por inteira): você entende isso, você sempre entende o que digo.
Você fica um pouco mais enroscada em
tudo o que está sobre essa cama e desiste de partir. Aí passam-se setes horas,
você permanece pelas oito e se enrosca pelas nove; às dez, pede para levantar e
enrolamos tempo, suor e carícias, até que são onze e você pede por café quente.
Eu faço café e voltamos pra cama.
Observo pela janela que não está mais
garoando.
Aliás, está um calor desgraçado agora,
mas ninguém se importa.
É feriado lá fora.
Ótimo que seja.
Texto fantástico!
ResponderExcluirTão bom quando nossas tentativas de permanecer perto de alguém dão certo. Quem dera sempre fosse assim...
Beijos!
Blog: *** Caos ***
Quem dera sempre fosse assim e maravilhoso quando é, realmente. Muito obrigado pela visita e pelo comentário, Helena!
ExcluirGrande abraço!
Que texto lindo! Eu gosto tanto dos teus floreios quando tu escreve e, nesse texto em especial, eu gostei desse trecho: "Você fica um pouco mais enroscada em tudo o que está sobre essa cama e desiste de partir. Aí passam-se setes horas, você permanece pelas oito e se enrosca pelas nove; às dez, pede para levantar e enrolamos tempo, suor e carícias, até que são onze e você pede por café quente. Eu faço café e voltamos pra cama." Ele resume bem os meus domingos. Aiii!! Lindooo! Ameei!
ResponderExcluirBeeijo
http://dementelucidez.blogspot.com.br
Que lindos os seus domingos são, Jéssica! Muito obrigado por gostar dos meus floreios, é uma honra! <3
ExcluirBeijos e abraços!