29 de outubro de 2021

A Gata Preta (Parte I)

 



I.

Soleira

 

O pequeno Gilbert acordou de um longo, longo sono. Espreguiçou-se com a pequena boca, os dentes rangeram uns nos outros quando a fechou. Não sabia onde estava, embora recordasse de que também era escuro no lugar onde adormecera. A diferença era que quando fechara os olhos, estava quente e abafado, a respiração saía em brasas pelo focinho rosado, já aquele lugar onde agora acordava era agradável como uma noite envolta em conforto pelo cheiro do papelão ou dos demais irmãos.

Isso. De repente, recordou-se dos irmãos. Onde estariam? Quando levantou sobre as quatro patas felpudas, averiguou o local em volta em busca do cheiro adocicado dos companheiros fraternos, mas nada sentiu. Mortitia era a irmã mais velha e a que exalava o perfume mais forte entre eles, com pelagem rala e macia, inteiramente preta se não fossem os salpicos de manchas alaranjadas. Era ela quem, em quaisquer situações adversas, mostrava as presas para atirar uma ordem ou para relembrá-los de um perigo que ainda desconheciam. Nela confiavam e a ela temiam, jamais avançavam um ou doIs passos onde ela adormecia ou se lambia sem que antes anunciassem um miado. Se ela os olhasse de soslaio, prosseguiam. Se ela arranhasse a garganta, regressavam.

Eugênio era o segundo: felpudo, ruivo, gordo e carismático. Decerto pouco precisava fazer para que de todos ganhasse as atenções e os carinhos. Era o irmão do qual Gilbert mais gostava: estava sempre pelos cantos deitado, aceitava as lambidas do irmão mais novo e a elas também retribuía. Corriam um atrás do outro, mordiscavam cangotes e entrelaçavam as patas. Eugênio tinha um cheiro peculiar que tomava conta de toda a casa, porque eram dele as bolas de pelo que com mais frequência rodopiavam em meio ao lixo dos fundos ou ficavam agarradas ao xixi que alguns deles depositavam nos três pontos diferentes da sala de estar onde eram acostumados a mijar, pois a areia, aquele fino fio esquecido nos fundos, estava sempre acumulada com as fezes de uma ou duas semanas.   

Florbela e Maria Teresa eram as gêmeas. Embora fossem quase duas horas mais velhas que Gilbert, eram menores e até as cores e as fraquezas compartilhavam: mais frágeis e leves, eram brancas como algodão e sempre pareciam prestes a rachar a simples menção de toque. Eram chamadas de gêmeas pela Grande Mãe e por todos os Grandes Outros que ela trazia para casa, em meio a risos, cantorias e forte cheiro de álcool. Todos os irmãos adoravam as noites de cantorias, pois a Grande Mãe os entregava toda a atenção que nos demais dias a eles era negada. Na presença dos Grandes Outros, fazia carinho nele e em seus irmãos e compensava os vários dias e incontáveis noites em que passava fora deixando-os de estômago vazio. Ao lado dos Grandes Outros, a Grande Mãe os entregava ração, carne enlatada, cafunés e a eles dirigia a voz melosa e carinhosa. E muito embora Eugênio e as gêmeas fossem os alvos de todos os carinhos, Gilbert arriscava alguns saltos em direção das pernas da Grande Mãe e de seus amigos, aproveitando aquela profusão de vozes e de atenção enquanto tivesse tempo.

Passadas as noites de cantoria, pouco viam a presença da Grande Mãe por ali. Entregava a eles portas trancadas e grades teladas. Quando, raro, aparecia, caminhava entre eles de maneira indiferente, sempre com pressa. Ainda mais raras eram as vezes em que nesses momentos entregava-lhes comida. Por sorte tinham as baratas que subiam pelo ralo do banheiro ou se arriscavam nos restos de comida de cheiro cítrico abandonados na cozinha. Por várias noites eram os insetos rastejantes que preenchiam o vazio da barriga e os divertiam no calor abafado das paredes da casa.

Todas essas memórias vieram em um fluxo luminoso na cabeça de Gilbert. Quando acordou, mal parecia ter consciência da própria existência – quem era, como era e onde adormecera. Agora, no entanto, em meio ao jorro de informações, caminhava mais seguro de si na escuridão que o cobria. O focinho apontava em todas as direções em busca do aroma dos irmãos ou qualquer superfície que os localizasse. No escuro noturno da casa, conseguia enxergar com perfeição, já naquele escuro reconfortante, o nada existia em todas as direções. Quando olhava para cima, via o mesmo que enxergava quando olhava para baixo, apenas as patinhas felpudas de um cinzento claro davam a ele a sensação do que era em cima e do que era embaixo. Entretanto, a superfície que pisava não existia sob as patas, apenas o mesmo vazio escuro que havia dos lados e adiante.

Agora temeroso e confuso, Gilbert começou a miar. Um miado de pavor. Chamou pelos irmãos. Desejou a maciez de Eugênio. Implorou pela frágil alegria das gêmeas. E suplicou pela segurança que Mortitia oferecia, mesmo a contragosto.

Quando do vazio só recebeu de volta os ecos do próprio miado, o filhote se aninhou na estranha superfície em que caminhava. Uma bolota de pelos acinzentados em meio a escuridão. O rabo entre as pernas, as orelhas ora atentas, ora recuadas. Assim que os ecos cessaram, uma resposta brotou da escuridão:

– Olá, Gilbert.

O filhote chiou e ficou de pé. O rabo agora teso como um espanador.

Ele olhou em volta, mas nada viu. Caminhou para trás, girou para todos os lados e arreganhou as unhas, porém, novamente, nada viu.

Entretanto havia um aroma no ar. Se aquela escuridão, apesar de vazia e angustiante, tinha a temperatura de uma noite agradável, o aroma que seu focinho rosado detectou era uma mistura de todas os bons cheiros dos quais já havia sentido: o cheiro dos irmãos, o cheiro do peito da mãe que sequer conheceu (ou lembrava), o cheiro de comida recém depositada no recipiente e o cheiro do sono, o cheiro do piso gelado em tarde de calor e do tecido quente em dia chuvoso. Pouco a pouco, o rabo de Gilbert amansou e expressou menos prontidão. Manteve-se em posição de defesa por puro orgulho, aquele que ainda teria muito tempo para desenvolver nos vindouros anos de sua vida.

– Não tenha medo – tornou a dizer aquela voz mansa de cheiro agradável. – Eu estou aqui.

Em meio a escuridão, dois pontos distantes surgiram no horizonte. Dois pares de estrelas fracas brilharam no que parecia ser uma longa distância, para então rodopiarem e se aproximarem. Embora não tenham se tornado mais fortes nem mais incandescentes, Gilbert soube que o par de estrelas se aproximava, como se o distante fosse logo ali e o logo ali fosse a uma eternidade de passos.

O cheiro ficou mais forte. Logo, o par de fracas luzes brancas estava diante dele. Mas não eram estrelas. Eram olhos. E nos contornos da escuridão, de repente o pequeno filhote distinguiu – não com os olhos, mas com o olfato, com o tato e com algo mais que não compreendia – a silhueta de uma imensa e sinuosa gata preta diante dele. O preto dos pelos que ela carregava consigo era da mesma tonalidade que o vazio possuía. Ainda assim, era distinguível de maneira mais clara que Gilbert conseguia enxergar à noite.

– Você me chamou, criança – disse a gata sem abrir a boca. Não era uma pergunta.

– Chamei?

– Sim. Estou aqui agora – as palavras proferidas pela voz mansa pareciam sorrir. Não era apenas o aroma da gata que ecoava conforto.

– Quem é você?

– Todos vocês sabem quem eu sou. Todos vocês sabem o meu nome.

– Sim – Gilbert não sabia como, mas era verdade.

Ela era filha do Sol e há incontáveis séculos foi responsável pela iluminação de dinastias inteiras, gerindo e acolhendo grandes reis que a ela chamavam de mãe-protetora. Por ela esses breves e poderosos homens foram guiados no tempo solar de seu pai e por ela foram auxiliados quando a noite os deitou em seus majestosos túmulos. Gilbert também soube que era ela, a gata preta, quem escoltava o sol pelos céus e dele afugentava a serpente maldita.

Ela sabia o nome de cada ancestral de Gilbert e saberia o nome de cada pequeno filhote que seria dado à luz. Ela conhecia o nome de cada mãe morta incapaz de escutar o ronronar de seus filhotes e conhecia o verdadeiro pai de cada um deles. Embora momentaneamente esquecida durante o período em que os felinos estivessem despertos, a gata preta era sempre lembrada quando eles pregavam os olhos, fosse em sonhos, fosse no pós-vida, pois ela acariciava a todos e os lambia também, oferecendo em seu corpo um lugar onde adormecer angústias e atender desejos não ditos.

Gilbert sentiu-se acolhido porque, olhando para aquele par de estrelas fracas, soube que ela sempre esteve ao seu lado, até mais que Mortitia, Eugênio, Florbela e Maria Teresa jamais estariam, muito embora a eles a gata preta também oferecesse igual conforto. Ele sempre soube disso, apenas não lembrava nos períodos em que esteve desperto. A informação sempre estivera dentro dele: correndo pelo sangue físico e pulsando pelas veias que sua percepção intocável era munida. Seus ancestrais também possuíam tal informação e os filhotes de Gilbert também a possuiriam caso tivesse a oportunidade de serem gerados.  

Menos tenso, o filhote permitiu (ou julgou permiti-la) que a gata preta se aninhasse ao seu lado, Era muito maior que ele. Maior que Eugênio e mais imponente que Mortitia jamais seria. Ainda assim, trazia consigo a delicadeza de Florbela e Maria Teresa.          

– Conte-me, criança. O que tanto o angustia? – Perguntou ela.

– Eu não sei onde estou.

– Não?

– Que lugar é este?

– É a soleira de sua casa.

– Não, não – ele grunhiu, aninhando-se ao pelo dela para afugentar o medo. – Esta não é a minha casa.

– Não, pequeno. É a soleira. Sua casa fica a um salto daqui. Você está perdido, mas encontrará o caminho.

– É por isso que está aqui?

– Também.

– Então...

A gata preta pareceu soltar uma risada fraca, então o lambeu da nuca até quase o meio dos olhos. Repetiu o movimento mais duas vezes.

Gilbert pareceu menos confuso. Menos... angustiado.

– Conte-me – ela tornou a perguntar. – O que, de verdade, tanto o angustia?

– Quero voltar para casa. Quero voltar para os meus irmãos. Quero voltar para a Grande Mãe.

Pela primeira vez, a gata preta chiou. Porém não na direção de Gilbert. Ele não se sentiu ameaçado.

– Ser mãe não é um dom, tampouco um privilégio, criança. É um aprendizado. E aquela a quem você chama assim pode ter muitos nomes e ser chamada de muitas maneiras por cem línguas distintas, exceto de Grande Mãe. Esse não é um nome ao qual ela mereça.

– Quem é ela?

– Uma humana.

– Humana?

A gata sorriu.

– Como vários humanos antes dela e como vários depois.

Nesse ínterim, Gilbert foi novamente assolado por mais memórias. Eram miados. Seus e de suas irmãs, as gêmeas.

– Eu estava chamando por ela – o filhote utilizou outro termo. Estranhamente, não a chamar de Grande Mãe pareceu bem mais adequado. Qualquer outro nome soaria mais suave na boca. Mais justo. – Minhas irmãs e eu estávamos chamando, mas ela não veio. Ela não veio.

– Eu sei, criança. Escutei os seus chamados.

– Por que você não veio antes? As gêmeas, elas... elas estavam... eu estava...

A gata preta assentiu. As fracas estrelas apontando para os pequenos e perdidos olhos azuis do filhote.

– Eu só pude vir agora.

– Você observou a tudo? Você nos viu?

– Eu os ouvi. Eu os observei. Eu farejei o cheiro forte. Eu senti suas dores e meu estômago foi embrulhado pela sua fome, criança. Até o fim.

– Até o fim?

A gata preta não respondeu. Não faria diferença, caso o tivesse feito.

– Por que você não fez nada? – Ele ousou elevar o tom de voz e sentiu-se acuado da mesma forma quando ousava avançar pelo território de Mortitia.

Após um longo silêncio, a gata preta respondeu:

– Desde que aprenderam a reinar, os humanos se tornaram maiores que aqueles que foram gigantes antes deles. Hoje, o reinado deles é impetuoso. É grandioso, Gilbert. Por outro lado, existem coisas maiores que os humanos, esses seres de memória curta, e maiores que nós, que lembramos das coisas que as Esfinges esqueceram. 

O filhote não entendeu. Sabendo disso, a gata preta o empurrou para mais perto da resposta.

– Por que está aqui, Gilbert?

– Eu não sei.

– Você sabe. O que tanto o angustia?

– Eu... eu não sei.

– Um desejo silenciado é um desejo morto, criança. Se pronunciá-lo, terei forças.

– Para o quê?

Novamente, a gata preta sorriu, desta vez, maliciosa. Ergueu-se sobre as patas e esticou o focinho até a orelha esquerda do filhote. Perguntou outra vez:

– Lembre. O que tanto o angustia?

Arrepiado, o pequeno filhote chiou e, desta vez, foi inundado por todas as memórias que ainda estiveram turvas até aquele momento. Recordou-se de Eugênio, de Mortitia e dos miados das gêmeas. Recordou-se, acima de tudo, dos próprios miados, porém o quanto eles eram irrelevantes (e a dor que vinha acompanhada deles) diante da situação de Florbela e Maria Teresa: as duas ao seu lado, aninhadas em uma caixa, os olhos piscando cada vez mais lentos e o peito subindo e descendo cada vez mais devagar, sem energia, sem a frágil alegria da qual possuíam e que finalmente parecia se esvair dos corpos de pouca saúde.

Gilbert lembrou-se do quanto miou. Não pelo buraco que parecia haver em seu estômago ou da fome que sugava as energias necessárias para fazê-lo se sustentar sobre as patas, e sim pelas súplicas que direcionava a ela, à humana, à outrora Grande Mãe que sempre esteve fora, sempre do outro lado da porta, que a eles pouco alimentava e que a eles relegava à sujeira e às baratas.

O filhote recordou-se do quanto chamou pela humana, para que ela viesse ao auxílio de suas irmãs gêmeas. Que ela as salvasse. Que ela estivesse ali. Que ela...

– Agora você sabe o que tanto o angustia, criança? – Perguntou a gata preta, satisfeita.

– Sim, agora eu sei.

– O que você deseja?

Gilbert respondeu.   

Na escuridão do imenso vazio, a resposta ecoou como um estrondo. O sorriso de satisfação no rosto felino da gata era inegável. Finalmente, o filhote compreendeu o que era maior que os humanos e maior que eles, os felinos, os verdadeiros filhos do Antigo Nilo.

A gata utilizou a própria cabeça para dar um leve empurrão em Gilbert. Ele já estava de pé, seguindo na direção em que ela o indicava. Nesse instante, porém, o imenso vazio preto não era mais um vazio. Olhando adiante, Gilbert pôde testemunhar uma profusão de pares de estrelas, um arranjo infinito de pontos fracos e brilhantes pairando na escuridão do outrora imenso nada. Ele olhou de volta para a gata preta, mas agora os olhos dela brilhavam, incandescentes, porém sem ofuscá-lo. Os olhos da gata eram o par de estrelas gêmeas mais forte naquele vazio.

No instante seguinte, Gilbert não percebeu, mas seus olhos também eram estrelas e faziam parte do interminável oceano de constelações. Todas as estrelas estavam atrás dele – os olhos de todos os gatos adormecidos do mundo: filhotes, jovens e idosos, machos e fêmeas, de todas as cores, tamanhos e temperamentos. E, à frente de todos eles, inclusive do pequeno Gilbert, caminhava a gata preta, sinuosa e ancestral. Ela carregava, um por um, o desejo de todos aqueles gatos que a seguiam. Atenderia a cada um deles. O primeiro, aquela noite, seria o do pequeno Gilbert.

Assim eles caminharam na soleira.

A caminho de casa.



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