30 de outubro de 2021

A Gata Preta (Parte II)




II.

Umbral

 

O movimento era fraco naquela manhã de terça-feira. José aguardava no lado de fora do prédio de perícias científicas com um copinho descartável de café preto e amargo fumegante nas mãos. Apenas uma viatura esteve parada com as portas traseiras abertas quando ele chegou, mas não demorou para que logo retirassem dois caixotes compridos, subissem a rampa e os fizessem desaparecer no interior do prédio. A viatura voltou para, talvez, outra ocorrência.

Ele sorveu um gole de café quando Silvia finalmente apareceu. A touca escondia os longos cabelos cacheados. Vestia o uniforme azulado, a máscara hospitalar sob o queixo. Ela sorriu para José e o entregou um envelope pesado e lacrado com o logo do instituto.

– Tudo aqui? – Ele perguntou ao apanhar o envelope.

– Tudo aí. Enviei uma cópia por email pro teu chefe.

– Ele que pediu?

– Foi.

– Ok – ele deu de ombros e finalmente sorriu de volta para ela. – Oi.

– Oi – ela se colocou na ponta dos pés para dá-lo um rápido e contido abraço. – Tu estás bem?

– Tô, tô sim – ele mentiu, tentando soar convincente.

– E a Clarinha?

– Ela tá ótima.

– Ah, que bom – Silvia estava meio atrapalhada por conta do abraço.

– Acho melhor eu ir.

– Tá certo.

Antes de se virar e descer a rampa, Silvia o chamou.

– Ei, Zé.

– Hum?

Ao longo dos anos, Silvia já havia descoberto muitos indícios quase invisíveis e indetectáveis nas entranhas de cadáveres. Redigira uma infinidade de relatórios solucionando mortes aparentemente naturais e outras que de naturais nada tinham. Enfrentara cinco grandes casos de comoção estadual e esteve envolvida em pelo menos dois que ganharam atenção da mídia nacional. Não duvidava das próprias suspeitas, por isso todas elas apontavam para uma direção muito clara e identificável. Era um trabalho que buscava indícios. Os indícios levavam a causas e as causas clarificavam as provas. Não à toa sabia que José estava mentindo. Não estava tudo bem. Mas suas averiguações terminavam aí.

– Sabe, eu já vi muita coisa estranha por aqui. A maioria delas só é estranha, então logo a gente acaba esquecendo. Não sei se eu vou esquecer dessa, porque isso... – Ela apontou para o envelope. – Isso é uma das mais estranhas que eu já vi.

– É, né? Nem me fale, doutora.

José enviou uma piscadela para Silvia e desceu a rampa.

Ele entrou na viatura da polícia civil e dirigiu à divisão de homicídios. Quando o carro parava em um semáforo, José encarava o envelope sobre o banco do carona com um incômodo pulsante. As últimas cinco semanas foram tomadas por aquela sensação esquisita – a de olhar para um rosto passageiro na rua, ser cumprimentado por ele e cumprimentar de volta por pura educação, já que você não se recorda a quem ele pertence. Qual o nome dele? De onde nos conhecemos? Quando nos vimos?

Desde que atendeu a chamada em uma madrugada vazia de sábado e precisou arrombar a porta da casa para encontrar aquele cadáver desfigurado, iniciou-se a tal sensação esquisita. O rosto desconhecido, que te acena e te conhece, que de você jamais permitiu-se esquecer, embora a recíproca tão pouco tivesse de verdadeira. Não era exatamente o rosto, muito menos a vítima, mas as características do crime. José já havia visto aquilo antes, não é? Ou, pelo menos, tinha ouvido falar. Tinha sido em algum caso não solucionado nos últimos 12 anos em que trabalhava como investigador? Não. A peculiaridade obscena do crime não o faria esquecer tão facilmente. Algum boato soprado por um colega de delegacia? Talvez. A semelhança do rosto desconhecido, ou melhor, as características do crime esquisito soavam como um sussurro, uma voz flutuando no fundo de um salão barulhento e da qual você luta para querer escutar, para prestar atenção. Uma fofoca fraca relatada no meio da multidão, um nome esquecido no fundo da memória que persiste em se esconder por trás de brumas densas. Que merda era aquela que não o deixava dormir direito há mais de um mês?

Quando chegou a delegacia, torceu para que as últimas horas de seu plantão fossem calmas. Que nenhum corpo surgisse nas valas ou nos terrenos baldios do bairro e das regiões em volta. Que nenhum casal equilibrado resolvesse colocar as desavenças em dia e que nenhum sujeito de bom caráter se sentisse ofendido pelas reclamações infundadas de uma esposa saturada. Que nenhum drogadinho resolvesse cruzar o caminho do dono da boca, implorasse pela vida antes de a vizinhança escutar os disparos e relutasse em ligar para o CIOP, embora cedo tarde alguém sempre o fizesse. Que nenhum daqueles casos diários e corriqueiros fosse transferido ou solicitados para a Divisão de Homicídios e exigisse que o investigador José Alvarenga por lá aparecesse, a menos de quatro horas para o final do plantão.

Ele se esticou por trás da mesinha que dividia espaço com outras cinco. Abriu o relatório e o leu de cabo a rabo, embora já soubesse de cada conclusão – na verdade, inconclusões –, extraoficialmente. Então ligou o computador e criou um novo arquivo, nomeando-o com o código do caso em caixa alta. A partir dos pontos que leu no relatório da perícia, assinado pela Dra. Silvia B. Costa, médica legista, complementou com as lacunas do que havia observado na noite em que arrombou a casa e viu a cena do crime, além de toda a investigação que fizera ao longo das últimas semanas.

Embora a vítima fosse mulher, jovem, 26 anos, caucasiana e com um vasto círculo social, nada indicava feminicídio. A vítima não possuía desavenças ou relacionamentos com quaisquer homens. José, inclusive, logo percebeu que a mulher possuía uma longa lista de casos afetivos com outras mulheres, o que o levou a investigar pelo menos quatro delas. No entanto, todas possuíam álibi incontestável e pareceram verdadeiramente consternadas com a trágica morte da amiga.

Não há explicações sustentáveis, por exemplo, para quando alguém topa com uma pessoa e automaticamente por ela sinta antipatia ou desconfiança. Alguns atribuíam isso a causas sobrenaturais e espirituais, coisa de santo. José e a maioria de seus companheiros também seguiam essa linha. Você bate o olho e percebe algo incomum: uma escolha lexical diferente, uma pequena expressão em desacordo com o sentimento do momento (um olhar frio, um sorrisinho de desprezo, uma piscadela nervosa, um movimentar de mãos desalinhado com o resto do corpo). Em mais de uma década tendo de revirar, cavar e averiguar gente assassinada, José conhecia o desespero e a dor de alguém que encontra um ente querido ou um amante morto, e o quanto essas pessoas desejam, com o mais profundo lamento, remediar a situação e fazer com que tudo seja diferente. O quanto desejam acordar do pesadelo real, modificá-lo como faria um autor bem-sucedido a um parágrafo mal escrito.

Mas a vítima era amada por todos e todas. Na inconclusão inicial de um caso que não parecia levar a lugar algum, José pediu auxílio da delegacia virtual à procura de ameaças que a vítima poderia ter recebido, mas não havia nada. Estudante de Medicina e com claros sonhos de seguir na área da Neurocirurgia, a vítima era a cidadã ideal. Defensora das causas progressistas e bem relacionada, as fotos mostravam muitos amigos, dezenas de comentários elogiando sua beleza e centenas de curtidas.

Mas havia um detalhe, um único detalhe incondizente com o que José descobrira durante as investigações. Dentre os incontáveis atributos socialmente creditados a ela – tanto nas redes sociais quanto nos inquéritos com testemunhas e improváveis suspeitos –, havia a alcunha de protetora das causas animais. A vítima utilizava a imagem dos próprios gatos na capa de pelo menos duas mídias sociais, além de uma quantidade absurda de vídeos e fotos dos bichanos. Mesmo na rua em que morava, os vizinhos eram capazes de defender e corroborar tal imagem, embora houvesse alguém para discordar disso – geralmente uma velha carrancuda e fofoqueira que jurava de pé junto escutar os miados dos gatos com fome e solitários, afirmando que a vítima passava dias e dias sem aparecer em casa.

– Que diabos de plantões são esses? – Questionou a velha, enquanto José anotava e se questionava se valeria o esforço de levar em consideração o que a velha fofoqueira dizia. – Tenho um sobrinho que veio do interior pra cidade na época em que fez medicina, seu policial. Ele vivia pra estudar, que Deus o abençoe. Ele também fazia plantões, mas os plantões não duravam dois, três dias seguidos. Alguns eram nos fins de semana, sim. Mas nunca vi um que começasse quinta à noite e terminasse segunda de manhã. Nunca vi isso, seu policial. Eu sei bem onde essa menina devia fazer plantão...

José anotou tudo. Em menos de uma semana de investigação, concluiu que a velha tinha oferecido mais informações relevantes do que os demais vizinhos. Também a incluiu na lista de suspeitos, é claro. Mas era uma senhora com artrite em ambos os joelhos que vivia para cuidar das próprias plantas e de dois cachorros. Além disso, morava a três casas de onde residia a vítima. A velha jamais teria tempo de fugir quando os vizinhos escutaram o último da série de gritos desesperados emitidos pela vítima, conforme relataram na ligação à emergência.

 Quando entrou na casa da vítima naquela madrugada, o cheiro de urina entrou no nariz como um soco. Como se injetassem ácido pelas narinas, José precisou recuar, dobrar a camisa de cima sobre o rosto como uma máscara e acender as luzes. A casa possuía seis compartimentos: sala, banheiro, dois quartos, cozinha e área de serviço nos fundos. A mulher estava na cozinha, estatelada no chão com as mãos na altura do rosto. A expressão escondida era de terror: a boca entreaberta num grito seco, os dedos esfarelados e os olhos comidos, uma gosma vermelha e branca escorrendo, ainda fresca, pelo buraco das órbitas.

Todo o corpo da vítima estava triturado no que pareciam pequenas mordidas. O pé direito estraçalhado. Pele e meia tornaram-se uma camada só de sangue e carne. Um buraco no calcanhar, irregularmente aberto, já começava a atrair as moscas. Toda a parte coberta por peças de roupa fora igualmente mordiscada e consumida. De dignidade, nada restara da vítima.

Porém duas coisas absurdas chamaram a atenção do investigador, da equipe de policiais militares (que o ajudaram a arrombar a casa) e das equipes de perícia que chegaram à cena posteriormente:

A primeira foram as pequenas patinhas felinas que salpicavam a geladeira branca, a mesa e o fogão. Tais registros também existiam pela pia e alguns elevavam-se das paredes até o teto, como se os animais que ali estiveram corressem em pavorosa, ignorando a existência da gravidade. Muito além de impressões felinas carimbadas a sangue pelo corpo da estudante, haviam as marcas das unhas: rasgos finos e profundos que mergulharam na carne dos braços, das coxas, da barriga e do pescoço, como gatos a afiarem as unhas num arranhador de papelão. Os indícios de dentinhos estavam nos orifícios abertos com mais profundidade. Nenhum dos golpes realizados era de maneira limpa ou clínica. Todos a esmo, irregulares, sem a menor consciência ou planejamento.

Já a segunda foi o miado dos gatos presos em um dos quartos. Quando tentou abrir a porta, José notou que ela estava trancada por dentro. Precisou, novamente, arrombar a porta para encontrar os bichanos.

Àquela altura, parou de digitar o próprio relatório. Respirou fundo e coçou a cabeça. Que merda, a sensação esquisita continuava. Um rosto desconhecido o cumprimentando, dizendo olá, há quanto tempo não te vejo, Zé. Como tu estás?

– Bem – ele respondeu em voz baixa, sem que ninguém na sala percebesse. – Bem pra caralho.

Levantou para buscar mais café. Julieta, do balcão, o alertou para os perigos do consumo excessivo de cafeína em horário de almoço. Ele se espantou com a informação, já que não percebeu as horas passarem, agradeceu a preocupação da senhorinha e retornou com a xícara cheia.

Quanto mais lembrava do corpo da vítima, mais o rosto desconhecido sorria para ele. Então redigiu seus complementos para com o relatório de Silvia. E, finalmente, mencionou os gatos: cinco deles estavam naquele quarto. Acuados e confusos, mal sabiam se permaneciam na defensiva e caminhavam para trás à procura de um lugar onde se esconder, ou se engoliam o medo em nome da carência e da fome que sentiam. Eles não estavam esqueléticos, isso era certo. Mas clamavam por comida. As vasilhas, sabe-se lá há quanto tempo, vazias. Os miados eram fracos e sofridos, mas suficientemente audíveis no objetivo de comunicarem a fome. Havia uma gata preta com manchas alaranjadas que tomou a frente. Ela chiou na direção de José, mas parecia confusa com a resposta atenciosa que obteve dele. O segundo gato, aquele que estampava metade das fotos nas redes sociais da vítima, tentou levantar, mas cambaleou e caiu atrapalhado da cama. Ruivo, peludo e charmoso, seria naturalmente mais gordo se não exibisse tanta fome e desorientação.

Já os outros gatos eram menores, três filhotes em uma caixa. Duas gatinhas brancas estavam aninhadas com os olhos piscando, fracos. Ao menor toque da mão gigante de José, parecia que se desfarelariam. Ainda estavam vivas, mas em uma situação alarmante. E havia o último: um filhote acinzentado de orelhas pretas. Estava duro, morto há talvez mais de um dia, porém deitado em uma posição que curiosamente parecia a de vigília, de frente para as irmãs branquinhas, como se até o último suspiro estivesse ali para assegurá-las de que tudo ficaria bem.

O quarto, que claramente pertencia a vítima, estava abafado. As janelas fechadas, as cortinas em posição para bloquear a luz solar e o cheiro de mijo e de merda ali dentro era duas vezes mais insuportável que no resto da casa.

Estranhamente, os dois gatos adultos que ainda possuíam forças para ficar de pé, não fugiram nem com a porta do quarto escancarada. Se por medo dos policiais que ali entravam ou se desesperados para receberem alimento, José não soube explicar. Antes de lembrar que havia um corpo na cozinha, ele procurou ração para os bichos. Buscou nas estantes do quarto, no guarda-roupas e nos armários. Os legistas e os PMs estranharam a prioridade do investigador, mas ele revirou os móveis, descumprindo no mínimo três protocolos para cenas de crime. Fracassado, misturou água com leite em pó em uma vasilha e fez com que os bichos tomassem. Eles afundaram os rostinhos e melecaram boca e bigodes no leite.

E foi aí, só aí, olhando os bichanos mais de perto, que José percebeu o quanto eles estavam limpos, apesar de abandonados. Não estavam sujos de sangue, não mostravam quaisquer indícios de terem tido contato com o corpo. Todas as saídas da casa, sobretudo as grades da frente e as grades que cercavam a área dos fundos, possuíam telas e redes de proteção. Não foram rasgadas, sequer estavam com buracos abertos por onde animais externos pudessem invadir ou por onde os internos pudessem escapar. E, a julgar pela ausência de muitos insetos e pelo cheiro de sangue ainda fresco (aliados aos relatos dos vizinhos de que a vítima gritava em desespero), José concluiu, já de antemão, que a mulher estava morta há pouco mais de uma hora.

Todas as conclusões prévias daquela noite estavam certificadas no relatório. A vítima foi atacada por um grupo de animais, contabilizando, no mínimo, quinze ou mais felinos, dizia um trecho dele.

O investigador não colocaria suas impressões mais pessoais no relatório final – nem da maneira mais polida, sugestiva ou técnica. Não discorreria sobre o quanto o gatinho morto parecia proteger as irmãs ou o quanto os outros dois confiaram no primeiro desconhecido que arrombou a porta para buscar comida a eles. Também não mencionaria a negligência da dona dos gatos, afirmando, em tom de denúncia, o quanto a casa era infestada por baratas ou fedia a fezes e mijo, tampouco citaria a ausência de cuidados para com os gatinhos – e o quanto isso contrastava com a imagem que dela defendiam e que dela possuíam. Ela já estava morta, de qualquer jeito. Era uma estudante promissora de medicina, socialmente bonita e caucasiana. Mas estava morta. De que adiantava que soubessem a verdade, num caso em que nem mesmo a polícia e os peritos conseguiram solucionar?

– E aí? – Alguém por sobre os ombros de José perguntou. Era Marcos, outro colega investigador. – A galera fez um bolão pra esse caso.

– Ah, foi? – José tomou outro gole de café. – Apostaram o quê?

Marcos deu de ombros.

– Uma grade de Brahma. Metade acha que foi crime passional.

– Mas como ele levou uns cinquenta gatos pra dentro da casa?

Marcos ergueu os ombros com uma expressão de esperteza.

– Pois é, não faz sentido. Por isso eu apostei na outra alternativa.

– Qual que foi?

– Gatos assassinos.

José riu com tamanho absurdo. Um rosto desconhecido ainda batendo na porta dele, dizendo olá.

– Eu não tô brincando, Zé. Olha só, tu lembras daquele antigo conjunto habitacional nos limites da cidade?

– O conjunto Icamehí?

– É. Esse aí.

– Eu morei lá.

– Porra, e tu não lembras daquela história do velho que matava gatos?

José largou a xícara sobre a mesa e girou na cadeira.

– O quê?

– Porra, Zé. Como assim? – Marcos começou a rir com a eloquência vitoriosa de um bufão que descobre saber mais sobre um assunto que os outros. – Tinha um velho no conjunto, lá pela década de 70. Ele amava gatos, sempre colocava comida pros bichentos na frente de casa. Aí os gatos da rua todos iam até lá, comiam, entravam pela grade.... Aí o velho parou de aparecer, os vizinhos começaram a sentir um cheiro forte e chamaram a polícia. O homem tava era morto lá dentro, todo dilacerado com marcas de mordidas e de arranhados. Mas o pior de tudo: descobriram que o velho colecionava olhos de gatos em uns recipientes de vidro com formol. Isso aí não é mentira não, pergunta pro povo da nossa idade, eles vão tudo confirmar.

– Como tu sabes disso? Como era o nome do velho?

– Ah, vou lá saber? Essa história não tem na internet, é antiga, Zé. Me admiro é de ti não saberes isso – Marcos deu um tapinha nos ombros do colega e acenou, distanciando-se. – Mas não me conta nada, não. Quando tu entregares o relatório, a gente descobre. Vou ganhar esse bolão. Gatos assassinos. É.

José ficou ali, parado, vendo o colega se distanciar como um adolescente fanfarrão. Buscou a xícara de café, mais um gole, precisava de só mais um gole, mas ela já estava vazia.

Ele girou na cadeira, encarou as quase dez páginas de relatório complementar e demorou a digitar novamente. Concluiu com palavras secas e mais diretas que o normal. Não checou os erros ortográficos, ninguém fazia aquilo em relatórios da polícia. Imprimiu a papelada, grampeou e anexou ao envelope da perícia com um clipe de papel. Bateu na porta do delegado e entregou a papelada. Respondeu algumas perguntas, todas realizadas de forma breve e pouco compromissadas. A particularidade do caso pesava mais do que a solução em si. Algum barulho seria feito, já que a vítima era uma mulher branca com boas amizades, mas pelo pouco vínculo com a família, ninguém faria caso e tão logo os bons e verdadeiros amigos deixariam de se importar. Ninguém mais lembraria. Talvez virasse uma história, um mero boato estranho na divisão.

José saiu da delegacia naquela tarde com o incômodo finalmente solucionado – pelo menos alguma coisa haveria de ser aliviada. O rosto desconhecido que dera olá para ele por mais de um mês finalmente fora descoberto. Era um rosto antigo, dos tempos de infância, uma história que foi contada a exaustão em sua alameda e em todo o conjunto. O velho que amava gatos e de repente foi encontrado morto revelou-se não ser tão agradável como aparentava. Muitas histórias foram contadas a respeito depois que a polícia esteve lá: de que ele ainda estava vivo, de que pegaria as crianças que ficassem depois das dez da noite na rua, de que era ele caçando os gatos quando esses gritavam lá fora em cima dos telhados, de que ele possuía um cemitério de bichanos no quintal ou, pior, de que dentro de casa muitos gatos-zumbis eram alimentados com os corpos daqueles que ele matava.

Todas aquelas histórias eram surreais, exageros infantis de uma época em que medo e inocência eram bons irmãos. Mas se havia algo do qual José finalmente lembrava agora – desfeito o véu do bloqueio que estivera sobre seus olhos durante as últimas semanas e, certamente, durante as últimas décadas –, era o par de olhos de seu gatinho naquela época. Como ele se chamava? Ah, sim. Stalone. Stalone e seus olhos de cores diferentes – um azul, outro verde. Stalone que nunca saía de casa e, na primeira vez que o fez, jamais retornou.

Como uma certeza clarificada, José tinha acesso às memórias da infância. Morava na rua do velho assassino de gatos? Era esse tal velho o senhorzinho que sempre cumprimentava seus pais e ele? Encontrara Stalone a porta do velho assassino, na vez em que ousou pular muros e telhados pela primeira vez? José tinha a resposta, mas não quis se debruçar sobre ela.

Já eram três da tarde e precisava retornar para casa. A filha, Clarinha, o estaria aguardando. Mas havia algo mais a ser feito. Só uma coisa a mais.

Por isso, naquela tarde, ele não dirigiu de volta para casa. 



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