28 de fevereiro de 2012

Como confetes na festa do Diabo





Quando atravessei a rua naquela noite de carnaval, soube de antemão que seria minha última. O espetáculo começava a se desenhar diante de mim como um rabisco azul de uma criança sem coordenação, onde a obra de arte, dali a pouco, estaria completamente finalizada. A única diferença, imaginei com ironia, era a cor da tinta: não azul, porém vermelho.
Escarlate.
O bloquinho de rua rompia as ruelas do centro. Bêbados vagavam felizes, gritando, fazendo arruaça ou procurando cantos para esvaziarem a bexiga. A pegação rolava solta: almas e corpos livres, bocas e línguas compartilhadas repetidas ou aleatórias vezes; jovens moças em seus grupos de outras jovens moças, divertindo-se ou fugindo de predadores; garotões ricos e cheios de si, numa empreitada cruel diante daquelas que meramente enxergavam como caça. A típica imagem do carnaval de rua de minha humilde e úmida cidade.
Em meio à agitação, eu trombava no meio dos transeuntes embriagados. Minhas pernas comandavam meus instintos, meus instintos guiavam minha vida. Suspirei fundo dentro do calor humano. Senti o aroma da cerveja azeda misturada ao suor. Algo foi jogado acima de nossas cabeças, espirrou e secou em nossos ombros. Mais bebida alcoólica, presumi. Continuei atravessando o pequeno riacho de pecados em direção aos braços que me chamavam.
Ela estava lá. Apenas um vestido preto de alças finas cobria seu corpo. Os seios naturais e delicados – embora pequenos e frágeis através de seus contornos milimétrica e perfeitamente arredondados – mantinham-se sem sutiã, já que os mamilos eriçados espetavam o decote da roupa. Os longos braços e pernas não transpiravam, apenas conservavam o mesmo brilho, quase tão brilhante como glitter, porém tão opaco, tão vivo e tão morto. O vestido terminava pouco acima dos joelhos, destacando as pernas de uma brancura extremamente mórbida e excitante – eu já sentia algo crescer no meio de minhas pernas.
Na ponta dos dedos, as unhas pintadas numa cor vermelha combinavam com a imensidão de seus olhos – literalmente com a mesma tonalidade. O rosto era comprido e magro, o que realçava a beleza peculiar, exótica. A boca entreaberta emitia um som tão suave e crepuscular que eu conseguia ouvir somente nos confins de minha cabeça. Eu a escutava perfeitamente, apesar de toda a barulheira do bloco. Ela não movia os lábios, tampouco a língua, mas eu tinha certeza que estava me chamando. Sua voz ecoava em meus ouvidos. Um chamado mortífero e sanguinário que apenas eu conseguia ouvir. Um chamado do qual eu não fugiria – mesmo prevendo meu mísero futuro naquela noite.
Aproximei-me. Ela se afastou. Parecia não tocar o chão no momento que caminhou de costas em direção à rua deserta e transversal que cortava a folia. Levitando sobre o solo, percebi que também estava descalça e, por uma mínima fração de tempo, tive a confusa impressão de que a ponta de seus dedos e calcanhares não se assemelhavam aos de uma mulher comum, mas aos de um animal de rapina. Os pés eram esqueléticos demais e embora contrastassem com sua graça imperial, não deixavam de me parecer atraentes e belos. Algo cresceu dentro de mim, ardeu o fogo de mil fornalhas e refletiu-se uma vez mais entre minhas pernas. Eu já estava excitado ao extremo e pouco me importei sobre o que outros pensariam – era carnaval, afinal, e por aquelas bandas da cidade ninguém se importava. Eu não estava numa condição normal de autocontrole. Seguia para minha própria morte; seria dilacerado feito carne moída e ainda assim, levado pela voz feminina em minha cabeça, não retrocederia.
Eu precisava vê-la.
Tocá-la.
Nada mais importava.
Finalmente a mulher deu as costas para mim e seguiu pela penumbra da ruela. Abandonamos toda a agitação e adentramos um território deserto e particular, onde somente nós seríamos os protagonistas. Eu segui seu ritmo, devagar e cauteloso, como uma relação sexual secreta e adúltera. Sem gemidos, sem gritos, apenas sussurros e trincar de dentes. Foi nesse instante que ela parou. Obedeci aos seus comandos e também cessei os passos, analisando-a da cabeça aos pés. Os longos cabelos negros caíam até os quadris, combinando com as curvas das pernas e da bunda. Eu poderia gozar naquele momento. Era um tesão sobrenatural e assustador. Totalmente demoníaco e sombrio. Eu queria seu corpo. E ela, minha vida.
Suas magras e alvas mãos percorreram o próprio ombro em direção às alças do vestido e com a ponta dos dedos afastou a roupa de modo a deixá-lo cair no chão. Seus pés então caminharam mais à frente e depois para o lado, onde recostou as costas em um dos muros da rua. As mãos deslizaram pelos braços, contemplaram a cintura e encaminharam-se ao meio das pernas. Os dedos começaram a se movimentar. Para dentro e para fora, num frenesi hipnótico. Um baixo arfar escapou da boca, novamente ecoando apenas em minha cabeça. Pude visualizar todo seu corpo, agora despido. As pontas dos peitos mil vezes mais eriçadas apontando para mim, furiosas.
Ela me chamou:
– Venha.
Sem pensar duas vezes, fui.
Encurralei-a na parede, apoiando-me nos antebraços. Sua mão esquerda saiu da vagina enquanto a outra permaneceu com os movimentos. Então a mulher afagou-me o rosto e abriu os olhos para me fitar, mas não abandonou a expressão de prazer erótico.
– Tu me queres? – Ela perguntou num sussurro. Agora sim movia os lábios, mas a voz ainda reverberava dentro de mim.
– Quero.
– O quanto me queres?
– Com toda a minha vida.
Ela não sorriu com a resposta. Apenas gemeu e contorceu o corpo num leve movimento orgástico.
– Cuidado com o que pedes – alertou-me.
– Tanto faz.
Sem mais dizer, entramos num silêncio prazeroso. Ela retirou a mão direita do meio das pernas e, com as duas, passeou pelo meu peito e desceu em direção à barriga. Continuou o caminho até alcançar minha calça, onde desabotoou e abriu o zíper. No mesmo instante a peça caiu, e sem se surpreender, ela tocou o volume ali embaixo. Meu corpo ardeu. A alma queimou. Aquele era o próprio Inferno que eu clamaria para queimar por toda a eternidade. Era tudo o que eu queria.
A mulher começou a me acariciar. Leve. Delicadamente. Sem preocupações. Sem pressa. Então aproximou nossos corpos e como um gato esguio roçou-se em mim preguiçosamente. Arrastou a vagina sobre meu quadril, provocando e soltando gemidos tão baixos quanto o som do vento numa noite abafada. Ela sabia como fazer aquilo. Sabia como domar e atrair. Física e psicologicamente.
– Tu gostas de mim? – Voltou a perguntar. A voz, manhosa feito uma criança; perigosa e traiçoeira como o demônio.
– Sim – respondi prontamente. Algo me impulsionava à resposta rápida e automática. Não era eu quem respondia por conta própria. Era... Era...
– Tu gostas muito de mim.
– Isso.
– E é meu corpo que terás. Estou certa?
– Estás.
Novamente o silêncio. Ela esfregou o corpo outra vez. Subindo e descendo, sem que de fato algo se concretizasse. E então colou a boca na pele de meu pescoço. Roçou a ponta do nariz, inalou meu cheiro humano e cravou a ponta dos dentes. A dor não demorou a vir. A ardência parecia álcool molhando uma ferida, mas também se misturava ao fervor do deleite. Senti um líquido espesso descer meu corpo num filete único, mas depois se transformando em dois, três e quatro, em seguida num rio inteiro.
Fechei os olhos. Senti sua vagina. Senti dor. Senti medo – medo de morrer; medo do que ela era e, acima de tudo, medo de perdê-la e nunca mais voltar a encontrá-la. Eu precisava da mulher. Precisava de sua companhia. Estava apavorado, mas cobiçava sua presença.
Foi quando o som veio: algo se partindo, um esguicho forte e exagerado. Salpicado, gotas, confetes. Ela afastou o rosto de meu pescoço e enfim pude ver seus olhos vermelhos fitando os meus. Sua boca transbordava um líquido tom de vinho. Filetes de carne e veias estavam entre os dentes. O sorriso não era malévolo e sim contido, prazeroso. Ela mastigou seja lá o que fosse aquilo, enquanto senti meu corpo perder as forças. Ela engoliu. Sugou a própria língua e moveu o quadril sobre o meu – já estava atracada ao meu corpo, literalmente em meu colo. Chegou mais perto de mim e roubou-me um beijo. Senti sua língua na minha. O gosto metálico. Pedaços de carne e pele – minha carne, minha pele. A língua afiada e pontuda passeando pelo céu da minha boca, roçando meus dentes. Não tardou até ela morder um pedaço do meu lábio inferior. Mordeu forte. Amassou. Apertou e arrancou. Gemi de dor, mas a dor me dava prazer. Senti o sangue descer. E lá se foi outro pedaço de meu corpo. Ela afastou a cabeça e mastigou com prazer. Mastigou. Engoliu e lambeu os contornos do próprio lábio. Eu sorri. Ela também sorriu. Voltou a me beijar. Sugou o sangue que transbordava do pedaço que me fora triturado. Eu gemi de prazer. Ela fez “shhhiu”. Obedeci.
Outra vez, nossas bocas estavam unidas num beijo animalesco. Ela me sugava, chupava minha língua e finalmente... Finalmente também a arrancou, mastigando cada pedaço como se fosse o último do bolo – porém não a cereja, não ainda. Eu não senti a dor, não dessa vez. Alguém em mim ganhou força. Dilatou-se e excitou-se um pouco mais. Senti o meio de suas pernas molhado – numa mistura de gozo com o sangue que escorria por nossos corpos. No momento que ela terminou de apreciar minha língua, voltou à boca na direção da minha e sugou todo o sangue que não parava de transbordar.
Fechei os olhos e me permiti ser levado novamente. Uma vez mais. Ela continuou por mais três ou duzentos minutos. Roçando nossos corpos e bebendo todo o sangue de minhas veias e artérias. O sorriso, alucinado, continuou em meu rosto: carimbado no que quer que me restasse de alma.
No fim, entreguei-me àquele oceano vermelho e profundo de orgasmo.
Ao longe, uma velha marchinha de carnaval preenchia o vazio das ruelas. Pouco a pouco, ela se perdia.


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