10 de dezembro de 2012

Capítulo III: Santa Claus Is Coming To Town




Red From Christmas, Capítulo III, Santa Claus Is Coming To Town

Evan caminhava em passos lentos e mancos. Chegou à sala de estar com certa dificuldade através do visível ferimento à bala, que insistia escorrer pelo braço. Apenas algumas gotículas de sangue pingavam-no da mão esquerda, evidenciando a grande quantidade que provavelmente já havia descido.
As conclusões eram óbvias: ele tinha sobrevivido ao disparo à queima roupa, mas não era exatamente sua sorte que importava naquele instante. Ainda havia um monstro – Papai Noel – presente naquele lugar, prestes a fazer picadinho de qualquer um que oferecesse resistência aos seus objetivos – sejam lá quais fossem. Evan já fazia uma pequena noção do que ele pretendia e faria o que fosse possível para impedí-lo, já que agora estava mais perto de reverter o terror que fora previsto durante a última semana. Os pesadelos eram proféticos, e se Evan escapara uma vez da morte – ao pular para longe da direção do carro de Chris – então isso significava um traço de esperança em todo aquele pesadelo: era possível mudar as coisas.
- Ficou louco, porra? – Chris bravejou após uma risadinha nervosa. Olhava na direção de Evan com uma infinidade de dúvidas, desde quem poder acreditar; como o pirralho maluco sobrevivera; quem era aquela criatura na sua sala de estar e, acima de tudo, quem de fato matara seu amigo Mike. A resposta, é claro, estava bem palpável diante de si, bastava apenas clarear o caminho à frente para acreditar nas respostas. – Papai Noel? Que merda!
Stacy ainda permanecia no mesmo estado de choque, mas agora parecia um pouco mais lúcida. A figura de Evan, vivo e respirando, a aquecera como uma xícara de chocolate quente no inverno. Sem pensar muito, ela expulsou a mão de Chris que a segurava e correu até Evan, abraçando-o como se não se vissem há centenas de anos.
- Você está vivo... Você está vivo... Você está...
Era tudo o que a garota conseguia pronunciar. As lágrimas de alívio já despencavam dos olhos.
Como resposta, Evan retribuiu o abraço, imensamente contente por senti-la mais uma vez entre seus braços. Não deixava de pensar no imenso terror que o assolou no momento que esteve caído naquele chão, sangrando e esperando a morte. Naquele momento, só conseguia pensar no desespero de sua família, e bem mais forte que isso, na delicada e doce pele de Stacy, o perfume que exalava e o olhar expressivo refletido em suas memórias como a última imagem que teria durante os últimos instantes de vida. Talvez aquilo fosse certo grau de delírio ou obsessão, mas não negava o quanto Stacy ocupava um lugar importante – e extremista – em sua vida.

Escapou rapidamente de tais linhas de pensamento e manteve a atenção fixa na direção de Papai Noel. A criatura gorducha continuava a gargalhar, mas não era exatamente isso que pegou Evan de surpresa. O modo como ele o olhava através daqueles olhos vermelhos... Ele engoliu em seco. Era como se fossem íntimos. Dois conhecidos de longas guerras.       
- Oh, Evan! Eu não esperava encontrá-lo tão cedo, criança.
O modo como falou aquilo fez com que Chris estreitasse os olhos e, inconscientemente, apertasse os punhos. Ele tinha presenciado a aparição da criatura há pouco tempo, mas fora o suficiente para ter total conhecimento de sua ameaça através do tom de voz e da tonalidade do olhar. Mas o que ouvira nesse momento refletiu todas suas desconfianças – muito embora estivessem afogadas num mar agitado de questionamentos e dúvidas.
O “papai Noel” havia falado de forma tão suave e intimista com Evan, a ponto de deixar Chris ainda mais intrigado. No meio de toda sua confusão, ele tinha certeza apenas de uma única coisa: aquela criatura e Evan estavam juntos naquele jogo mortal de natal, e ambos tinham ligação com a morte de Mike – e a morte de Kate também, mas Chris pouco se importava com a garota morta há pouquíssimos minutos.
Evan apertou Stacy com mais força e deu alguns passos para trás. A desconfiança de Chris ganhou mais força quando o papai Noel nada fez, como não havia feito com ele pouco tempo atrás. Numa súbita reação de revolta e desentendimento, Chris agarrou o revólver que estava preso na cintura e apontou para o velhote gorducho. Seus olhos, no entanto, mantiveram-se firmes em cima de Evan.
- Que porra é essa, Evan? Hein? Eu quero uma explicação – sua e de seu amiguinho idiota aqui! Foram vocês que mataram o Mike? Eu sei, foram vocês dois! Digam, antes que eu faça o mesmo que fiz com você no estacionamento, pirralho maluco. Eu juro que não vou errar!
- Hoho! Vejo que a criança continua com suas travessuras.  
- Cala a merda dessa boca, seu velho porco! – Chris gastou toda a energia de sua voz apenas com esse grito.
Papai Noel ameaçou um passo, visivelmente contrariado pelas palavras do garoto. Os olhos vermelhos faiscaram como um forte laser de boate, a boca rangeu, mostrando os dentes sujos e a gosma negra escorrendo pelo canto para sujar a barba.
- Vai com calma, Chris, por favor. – Evan implorou.
Stacy então desfez o abraço e se pôs ao lado de seu protetor, apalpando-o a mão em busca de segurança.
- CALMA? – Chris vociferou. A arma tremia entre suas mãos. O rosto corava e queimava feito brasa. – Vocês mataram o Mike! Vocês dois...
- Eu não fiz nada disso! – Evan pareceu perder o controle e retribuiu na mesma intensidade de voz – Eu não matei o Mike, eu não fiz nada! – Gritou mais forte, embora não tivesse tanta certeza do que acabara de afirmar.
Tudo aquilo era culpa dele.
- Gente... – Stacy falou baixo, apertando Evan em tom de alerta – Precisamos fugir, agora... Por favor, vamos sair daqui!
- Hoho! O que estão planejando fazer, crianças? Querem realmente fugir do Papai Noel? Oh, não façam travessuras, não sejam crianças malvadas. Fiquem comigo.
Aterrorizados pelas más intenções escondidas por trás das palavras da criatura, os três cruzaram olhares desconfiados, fazendo, dessa forma, com que uma súbita parceria surgisse instantaneamente, convergindo os pavores e possibilidades de fuga de todos eles.
No segundo seguinte, todas as sensações que os três nutriam em comum se desfizeram, quando Chris retirou o olhar de Evan e olhou ferozmente para o Papai Noel. As mãos ainda tremiam, mas não por algum tipo de relutância, e sim pelo puro nervosismo da adrenalina. As intenções do garoto eram claras, e Evan observava tudo àquilo com impotência. Ele sabia que nada poderia fazer caso Chris – o idiota – escutasse toda a futilidade e masculinidade que havia dentro de si.
Está realmente tudo perdido.
- Não faça nenhuma besteira, Chris. Me escuta...
- Escutá-lo? – Sorriu irônico – Eu só vou acabar com cada um de vocês. Pelo Mike.
- Escute o Evan. – Stacy implorou novamente, revezando o olhar entre a expressão de Chris e a imagem perturbadora de Papai Noel, de pé e em posição ofensiva no meio da sala de estar – É o melhor a se fazer, Christian. Por favor.
Um breve momento de silêncio.
As palavras usadas por Stacy pareceram surtir efeito sobre Chris, já que ele pestanejou intensamente. O garoto não era de todo um imbecil tapado e idiota, apesar de todos os músculos que dispunha, ainda havia um cérebro eficiente naquela cabeça – a razão pela qual subjugava em dotes intelectuais o amigo Mike. Chris detinha uma mente capaz e aberta, apenas ignorava aquilo. E por esse motivo estava hesitando veementemente em puxar o gatilho, já que no fundo sabia que um simples tiro não deteria aquele velho gorducho, bem como também tinha a noção de que – de uma forma inconsciente e maluca – aquela criatura diante de si não era totalmente normal. Pertencia a um plano mais elevado e assustador, de modo que a história que Evan tentara convencê-lo no dia anterior – sobre monstros... sobre o próprio papai Noel – realmente tinha um encaixe lógico e coerente. Talvez aquele pirralho tivesse uma parcela de razão, mas isso não eliminava o fato suspeito de ter conhecimento de tudo aquilo e, principalmente, ter certa ligação com aquele maldito “bom” velhinho.
Chris estava usando a cabeça, todas as informações que ele conseguia interligar de fato iam parar na direção do papai Noel. Mas havia algo bem mais forte que o impulsionava a puxar gatilho, ignorando todas as noções lógicas que sua mente organizava: o desejo de vingança para com o melhor amigo. Mike ainda estava morto, e nada o traria de volta da morte tão violenta e animalesca que tivera na noite passada.
Talvez de fato estivesse na hora de agir da forma – que o soava – correta e puxar a porcaria do gatilho do revólver. Chris faria justiça com as próprias mãos.
Evan pareceu notar as intenções de Christian e sem deixar de proteger Stacy, sinalizou através do toque com a mão para que ela se afastasse. A garota obedeceu, mesmo com os olhos transbordando de medo e dúvidas. Evan então aproximou-se lentamente de Chris, tratou de exercer passos calmos e cautelosos, embora a dor no ombro esquerdo – local onde o tiro o atingira – dificultasse os movimentos.
Ele se posicionou ao lado de Chris, mantendo Papai Noel bem ao alcance de sua visão periférica. Mas somente quando pôs a calmaria - necessária para o momento – em lugar, foi que percebeu um corpo feminino estático em um dos cantos da sala de estar. Os olhos se arregalaram e o coração quase o escapou pela boca. Era uma pessoa morta e ele não fazia a mínima ideia de quem fosse.
Assim como um volume excedente de água escorrendo por um copo cheio, a concentração de Evan se desfez no mesmo instante – afinal, o garoto de 18 anos nunca presenciara um cadáver nu e crú de tão perto, mesmo nos pesadelos mais reais que vinha tendo nos últimos dias, aquilo não soava tão assustador como na vida real... ao vivo e em cores. O rapaz engoliu em seco e tentou controlar o acesso súbito de tremedeira, mas, além disso, havia algo ainda mais obscuro atormentando-o a consciência – uma coisa que ele fez questão de não pensar sobre.
- Q-Que... Quem é ela? – Perguntou, atônito.
Parecendo decifrar os pensamentos que tomavam a mente de Evan, papai Noel soltou uma risada baixa enquanto desfrutava do espanto do garoto, mas não ousou outra atitude além dessa.
- Kate. – Stacy respondeu, prontamente.
- Kate? – Evan repetiu num sussurro. A expressão facial parecendo entrar num conflito profundo, quase um enigma ou charada mortais. – Não faz o mínimo sentido.
Ao terminar as palavras, papai Noel soltou outra risada no mesmo tom, mas agora numa amplitude mais elevada. Divertia-se, de fato, com a confusão que se embaralhava na mente de Evan. E acima de tudo, sabia exatamente o porquê de tudo aquilo.
- Por que está tão atordoado, criança? – Perguntou o “bom” velhinho, enfatizando a essência debochada e sádica de suas palavras.
Mas Evan pareceu não ouvir o que papai Noel dissera. Sua reação imediata após a dúvida foi virar o rosto para olhar na direção de Stacy. Seus olhos verdes escuros pareciam fazer uma pergunta à garota, a qual entendeu imediatamente a razão para tanta confusão. Bastou um simples olhar para que ambos se entendessem, como se soubessem fazer aquilo há anos.
As dúvidas de Evan não eram insondáveis, tinham uma linha completamente coerente em existir: havia uma garota morta na sala de estar da casa de Chris; a segunda pessoa a ser morta pelo papai Noel nas vésperas do natal, o que significava que, assim como Mike, Chris e seu pai – o que ainda não fazia o mínimo sentido para Evan, já que jamais desejara a morte de seu ente querido –, todos estavam ligados aos assassinatos. Mais importante ainda: aquelas três mortes sempre estiveram presentes em seus pesadelos, ele sempre via os corpos ceifados de Chris, Mike e de seu pai. Era exatamente isto que tanto o estava intrigando - a um nível mortal – naquele momento: o corpo da garota que estava transando secretamente com Chris, nunca estivera presente em seus sonhos. Ela nunca fizera parte daquelas premonições.
Evan podia compartilhar de tal questionamento com Stacy, já que a garota também chegara à mesma conclusão.
- Não faz sentindo... – Ainda perdido em seus devaneios e conclusões sem respostas, Evan voltou a contemplar papai Noel e, principalmente, manter Chris sob sua atenção. Tentava voltar ao mundo real com esforço, já que pretendia impedir com urgência que o garoto ao seu lado cometesse uma besteira.
Você nunca deve provocar um animal feroz que está prestes a te devorar. Nunca. 
Antes que Evan e Stacy voltassem a reagir ou Chris ameaçasse continuar com seu plano kamikaze, quem revelou agir no instante seguinte foi o próprio papai Noel: ele não hesitou em caminhar para frente mesmo sob a mira de Chris. Ao andar, lembrava muito bem os desenhos animados de gigantes ou do próprio Golias, onde se arrastavam com passos pesados e aparentemente dificultosos. Além, é claro, da leve impressão de tremor que causava a cada passo que executava. Sua enorme barriga ameaçava rasgar os botões da roupa, de modo que a cada movimento que dava, uma brecha revelava uma parcela de sua barriga peluda de pele encardida. Retratava muito a imagem de um porco em forma humana, sob as roupas sujas do bom e falso papai Noel que todas as crianças ao redor do mundo costumavam exaltar.
Com sua aproximação, os três adolescentes estancaram, e mesmo Chris teve todas as sinapses de seu corpo interrompidas pelo terror. Papai Noel caminhou até manter uma distância mediana de três passos entre Chris, Evan e ele. Os dois garotos engoliram em seco, enquanto Stacy tentava mandar - com fracasso - um único comando para as pernas: corra!
O gorducho moveu o objeto cilíndrico nas mãos com extrema destreza, lembrando perfeitamente um espadachim ao manipular sua mortífera katana. Seu movimento perdurou por longos segundos até cessar, onde manteve a ponta inferior do objeto apontada para o peito de Chris – era uma espécie de garantia caso o garoto insultasse atirar.
- Vamos colocar nossas intenções em dia, meu querido Evan. – Os olhos vermelhos mantiveram-se fixos no garoto. Um sorriso espantosamente amigável e sincero surgia através dos dentes negros, parecendo que o gorducho depositava no rapaz uma real relação de fidelidade e servidão – As horas estão passando. O badalar do relógio anuncia poucas horas para a grande cerimônia, e como o trato que mutuamente existe entre nós dois, preciso cumprir com minhas obrigações... Conforme mensurado em seu pedido.
Chris, totalmente perdido e indignado, pôde notar a clara ligação que Evan mantinha com aquele maldito monstro asqueroso e imundo. Agora suas dúvidas eram sanadas em 90%: os dois eram cúmplices e deveriam pagar pela morte de Mike, bem como todo o medo exercido sobre ele e Stacy.
O garoto fitou Evan com uma crescente fúria nos olhos. Começava a pensar em quem deveria atirar primeiro, e de fato o faria, caso a voz de papai Noel não voltasse a cortar o ambiente. 
- O que me diz, criança? Tudo o que você desejou será cumprido: suas limitações e obstáculos serão eliminados, de forma que já eliminei um deles... Aquele garoto na noite passada. HoHo. Você precisava vê-lo: uma típica criança desobediente e levada, não prezava por ninguém além de si mesmo e não respeitava ninguém à sua frente. Como você mencionou no pedido, ele foi retirado de seu caminho.
Chris vacilou, quase deixando cair o revólver de suas mãos. Papai Noel estava falando sobre Mike e como bem mencionara, a morte do amigo só foi possível graças a um “pedido” que o próprio Evan havia feito. As peças começavam a se encaixar, mesmo ele não sabendo como e o porquê de tudo aquilo.
O bom velhinho continuou:
- Seu segundo obstáculo está aqui, criança! Bem diante de mim. HOHO HOHO! – Seus olhos avermelhados pularam velozmente para cima de Chris, indicando a quem estava se referindo – As peças estão tão unidas desta vez. Isso é tão bom, porque não precisarei catar os pedaços do pedido separadamente. Sabia, criança, muitos assim como você já me fizeram pedidos? Foram pedidos tão ambiciosos e difíceis de conseguir, alguns deles com dezenas de obstáculos assim como o de ontem à noite e este diante de mim. Mas, ora, ora... HOHO HOHO. Isso não importa, deixemos este assunto de lado. Veja como as coisas estão facilitadas para mim: o último obstáculo está na minha frente e... O seu presente – Então seu olhar deslizou lentamente até o rosto abalado de Stacy. O gorducho a fitou com extrema delicadeza, como uma pessoa humilde que contempla o maior tesouro da terra – O seu tão gracioso e lindo presente também está conosco, nos fazendo a grande honra de desfrutar tão esperado momento. A garota, tudo o que você mais quis neste Natal, logo será toda e inteiramente sua.
Novamente o silêncio dominou o ambiente.
Chris baixou a arma, dando-se conta do quão babaca era naquele momento: não tinha mais forças para continuar, tampouco bílis para digerir toda aquela podridão que escutara relacionada a Evan. A causa para todo aquele terror era culpa do pirralho maluco. Ele desejara aquela desgraça: pediu pela morte de Mike, pediu pela morte dele e, não bastasse isso, pediu que seu presente supremo de Natal fosse Stacy. O garoto baixou o rosto e sentiu todo o medo e tristeza subindo a garganta, vergonhoso ou não, sua vontade era de chorar – lágrimas de desespero, terror, ódio e repulsa.
Atrás dele, Stacy arregalava os profundos olhos escuros na direção de Evan. Ela confiava nele, depositara toda sua esperança e fidelidade naquele vizinho que tanto a fazia bem, mas jamais fizera ideia – mesmo depois de compartilhar com ele os pesadelos proféticos e a história dos pedidos – que ele chegaria tão longe. Havia lido as últimas páginas daquele desprezível livro, mas sequer chegaria à conclusão que os pedidos de Evan foram, basicamente, aqueles: a morte de Chris e Mike, e sua presença ou existência ao lado dele.
O rapaz em questão, por outro lado, não teve coragem de fitar as expressões dos outros dois. Não precisaria fazê-lo para ter a certeza dos sentimentos que ambos nutriam em relação a ele. Tudo o que conseguiu fazer foi continuar olhando na direção de papai Noel. Respirou fundo e manteve a voz serena, ao dizer:
- Tudo vai se desenrolar conforme meus pedidos, a partir de agora?
- Claramente, criança.
- Eu posso desfazer meus pedidos? Pedi-lo para que desista de meus desejos e vá embora?
- Sinto muito, querido.
- Mas... Eu saio perdendo. Não ganho nada e no fim...
- Trato é trato. Selamos um acordo. Um acordo de Natal. Lembre-se: Papai Noel nunca esquece as crianças boazinhas e obedientes que não fazem travessuras. Eu estaria sendo muito, muito, injusto caso deixasse você passar despercebido. Você fez um pedido e tudo o que merece é tê-lo realizado.
Evan se calou. Todo o sentimento que o tomava era o de derrota. Ele não era nenhum galã de filmes de ação que fingia desistência para mascarar um plano heroico, o garoto apenas não sabia o que fazer. Tudo o que restava seria esperar a morte de Chris e de seu pai – que continuava sendo um total mistério para ele. Sem contar com a decepção que Stacy provavelmente estaria sentido a seu respeito, já que toda a verdade por trás de história que ele havia contado à ela, agora se revelara pela própria boca do papai Noel.
- Desculpe, pessoal... – Foi tudo o que ele quis dizer.
Stacy, afogada em seu extremo estado de choque, quis xingá-lo e repudiá-lo através das piores palavras, mas não conseguia abrir a boca. Já Chris, mesmo aplacado por um forte sentimentalismo, ameaçou abrir a boca para responder, mas foi cortado por papai Noel que, em suas últimas palavras, anunciou o ultimato:
- Sem mais demoras, aqui vai a eliminação de seu último obstáculo, meu querido Evan...
O objeto que o gorducho apoiava na mão efetuou um zumbido baixo e quase imperceptível, de modo que duas pequenas lâminas surgiram na extremidade inferior da bengala – lado do qual era apontado na direção de Chris. Usando seu objeto como arma, papai Noel tomou impulso através do braço e, utilizando seu instrumento como uma lança, o projetou na direção de Chris, focalizando a mira bem à altura do coração. A bengala colorida deslizou numa velocidade estúpida, cortando o ar ao seu redor como uma bala de rápido e grosso calibre.
O garoto que seria acometido pelo objeto, nada fez. Seu corpo teve todas as reações previstas para uma situação de extrema adrenalina: o – destinado alvo – coração acelerou num compasso veloz; as pupilas dilataram; a respiração assumiu um ritmo intenso e as mãos, que antes sustentavam o revólver, soltaram a arma de fogo por puro nervosismo. Ele sabia que a partir daquele momento sua vida nada mais valeria, sendo apenas uma simples marionete nas mãos do destino e daquele monstro. Tudo estava terminado.
Mas algo que ninguém naquele ambiente esperava aconteceu como um sopro heroico de esperança: no mesmo instante que o revólver tocou o chão, Chris foi impulsionado para o lado direito num movimento extremamente reflexivo e rápido. O garoto mal notou – embora toda a transgressão da cena soasse em perfeito estado de câmera lenta, exatamente como nos filmes de ficção – que era Evan quem estava pulando para o lado, segurando seu corpo e lançando ambos para longe da mira da arma do papai Noel.    
A partir daí as coisas pareceram “voltar” à perspectiva normal de tempo, já que tudo se desenrolou rapidamente. Evan notara a altura específica na qual papai Noel lançara o objeto, de modo que agarrou Chris pela altura do abdômen. Reagiu instintivamente, executando uma louca e despercebida atitude de salvamento. Também pôde sentir um zumbido agudo transcorrendo a poucos centímetros de seu ouvido, tendo a clara noção do quão perto o objeto assassino do bom velhinho chegara perto de atingi-lo.
Os dois despencaram no chão, são e salvos – pelo menos por enquanto. Evan não esperou que seu raciocínio voltasse à sincronização normal de tempo e levantou-se, observando com espanto e alívio que o objeto que papai Noel lançara agora estava preso à parede, como uma faca atravessada na manteiga. Um breve suspiro de medo saiu de sua garganta devido à possibilidade de ter sido acertado por aquilo – já não bastava o tiro que levou mais cedo, o qual atravessara o ombro.
Chris estava caído ao seu lado, ofegante demais ao constar que ainda não morrera. Os olhos arregalados transmitiam o tamanho do espanto.
Alheia à cena, Stacy tampou o grito com as duas mãos. Estava horrorizada e quase em estado de choque por tudo o que acontecera. Petrificada e enraizada ao chão, ela não conseguia mover um músculo sequer do corpo.
- Vá para o carro, Stacy! – Evan gritou, já levantando e olhando para o papai Noel, que naquele momento caminhava em direção à bengala pregada na parede. – Vai, agora! Corra! Corra!
- Mas eu não...
- CORRA! – Evan gritou ainda mais forte, tão violentamente que estremeceu todas as bases de Stacy fazendo-a obedecê-lo.
Num segundo a garota já não estava mais naquela casa, e isso eliminava mais da metade das preocupações de Evan.
Por outro lado, Papai Noel continuou avançando, chegando à parede no instante seguinte e segurando a bengala para soltá-la da parede. Precisou de certo tempo para fazê-lo, já que a força espantosa e fracassada que usou para matar Chris fez com que o objeto atravessasse a parede estupidamente. Aquela arma oferecia certa resistência para sair e esta era a chance ideal que Evan detinha para fugir dali juntamente com Chris.
- Agora somos nós! – Já estava de pé quando gritou com o outro garoto. Segurou-o pelos ombros e tentou levantá-lo, mas o valentão não se recuperara do susto – Vamos, Christian! Vamos dar o fora daq...
Logo, Evan foi surpreendido por uma força que agarrou-o pelos ombros e o lançou para trás. Não foi um lançamento violento ou mortífero, mas sim de uma essência cautelosa. Ele só entendeu no instante que caiu no chão, notando que papai Noel não planejava machucá-lo. Tudo o que o bom velhinho planejava era cumprir com seu dever de presentear a “criança obediente e comportada”. Tal conclusão o assustou mais ainda, já que aquele monstro nutria por ele uma devoção espantosa. Iria até o fim para dar seus presentes de natal.
De costas no chão, Evan notou também que papai Noel já havia retirado o objeto da parede e o segurava com força enquanto partia para cima de Chris. O garoto estava abalado demais para tentar fugir, naquele passo tudo o que sobraria dele seria apenas um corpo sem vida.
Mais um obstáculo eliminado.
Em perfeito e irritante estado de choque, Chris Muller seria morto em poucos segundos caso Evan não fizesse alguma coisa. Por um momento, determinado e específico tipo de pensamento acendeu em sua cabeça: sou apenas um garoto, não um herói. Minha cota de heroísmo tem limite e consciência, se me arriscar, eu morro. Não se arrependeu daquilo por uma única razão: Stacy, em algum lugar, estava lá fora esperando por ele. E Chris não conseguia se mexer ou reagir, mais parecendo uma menininha se borrando de medo.
Por outro lado, Evan não levou tal pensamento adiante. Aquela confusão toda era de inteira responsabilidade sua e por uma questão puramente de honra – loucura ou ausência de covardia – ele faria o que fosse certo... E que Deus estivesse com ele.
Papai Noel elevou o objeto no alto, erguendo e reunindo forças para aplacar e perfurar, bem no meio, o corpo petrificado de Chris. O garoto, que estava quase encolhido no canto do corredor, voltou ao normal com a cena, recuperando seu poder de reação para forçar um pulo para trás.
O movimento foi rápido e reflexivo, já que conciliou no mesmo instante que o bom velhinho impulsionou sua arma para baixo. O objeto cravou no chão produzindo um som forte e agudo, passando a poucos centímetros de distância do meio das pernas de Chris. O garoto observou a tudo com mais espanto, os olhos arregalados transmitiam – com irônica clareza – a essência de seus pensamentos: “ele quase acertou meu saco!”.
Dentro de todo aquele ataque assassino, Evan enfim pôde rir por uma breve fração de segundos: o fato de Chris ter escapado, mais seu explícito e momentâneo humor negro parecia uma brisa de alívio entre todo o terror. Mas nada havia chegado ao fim. Observando que agora sim Chris estava realmente encurralado e que papai Noel voltava ao esforço de retirar sua bengala natalina cravada no chão, Evan saltou agilmente, pondo-se de pé e procurando uma solução imediata. Literalmente, corria contra o relógio para salvar a vida de Chris, de uma forma que seu raciocínio tentava bolar ou procurar milhares de maneiras para fazer aquilo.
Como num milagre ou sinal divino, a única saída o ocorreu no instante que seus olhos – frenéticos – pousaram sobre um objeto pequeno e reluzente jogado a esmo no chão: o revólver de Chris. Sem mais delongas, o rapaz pulou como um gato sobre a arma de fogo e a segurou firme na direção das costas do velho e gordo monstro. Não deu importância para o quanto sua coordenação motora tremia, já que sabia apenas que acertaria aquela maldita criatura – que aliás, dispunha de uma costa muito larga e gorda para não acertar.
O bom velhinho enfim retirou o objeto do chão, preparou-se para a segunda investida contra Chris quando Evan chamou-o a atenção:
- Papai Noel!
Ele parou. A respiração tranquila e barulhenta, típica dos obesos mórbidos, soava como o único som no corredor.
- Olhe para mim. – Evan continuou, categoricamente – Olhe para mim, seu grande saco de merda.
O insulto foi recebido com a devida intenção: a respiração do monstro tornou-se ofegante, de modo que os ombros largos desciam e subiam num ritmo assustador. Aos poucos, o bom velhinho virou-se para enfrentar Evan – sua outrora criança favorita -, deixando Chris no esquecimento.
Evan conseguira salvar Chris. Agora deveria se preocupar em salvar outra vida: a sua.
- Criança má. O que você disse?
O revólver trêmulo nas mãos de Evan não pareceu assustar Papai Noel, pelo contrário, o irritou ainda mais.
Percebendo o desenrolar da nova trama e de volta ao planeta terra, Chris mirou exatamente o olhar de Evan  e percebeu que o outro o alertava para se preparar. Logo o rapaz entendeu a simplicidade do plano: distrair para escapar.
Lentamente ele se levantou, pondo-se imediatamente de pé e em posição de largada.
- Foi isso mesmo o que você ouviu. – Evan tentava enrolar.
- Você está fazendo as coisas erradas, criança – A voz do monstro agora parecia mais profunda. Era literalmente um animal perigoso.
- Eu pedi para que deixasse essas pessoas em paz. Disse que não era mais necessário. Eu pedi.
- HOHOHO. – A gargalhada soou forte e exagerada, chegando até a inclinar as costas para trás. – Sabe que isso está fora de cogitação.     
Evan respirou fundo. Nunca tinha feito isso. Nunca sentira o peso de uma arma nas mãos, e principalmente: jamais tinha feito uso de uma.
- Então você não me deixa escolhas.
Não hesitou. Soube o que fazer naquele momento: contraiu todos os músculos do corpo e reforçou a resistência nos ombros e, ignorando todo o tremor que havia nas mãos, puxou o gatilho com extrema convicção pouco abaixo da altura do peito do gorducho.
Já sabendo o impacto que sofreria e o quanto a sustentação da arma lançaria suas mãos para o alto, Evan sentiu o choque resultante do tiro percorrer a extensão de seus braços quando o projétil escapou pelo cano. Ele apenas fechou os olhos e ouviu aquele som que sempre escutara nos filmes de perto, quase estourando seus tímpanos. O barulho que fez a seguir o assustou ainda mais: lembrou de um açougue e o som das marteladas na carne crua, mas o que aconteceu ali era real.
Ele reabriu os olhos e observou o velho cambalear para trás, totalmente desorientado. Mas o que mais o surpreendeu foi a agilidade com que Chris saiu do canto do corredor e pôs-se ao seu lado como um atleta em dia de maratona. Chris estava salvo.
Eu consegui!  
- Vamo dar o fora daqui, nerd! – Chris gritou, agarrando-o pelos ombros.
Obedecendo à súplica sensata do outro, Evan não cogitou a possibilidade de ficar um segundo mais ali. Mas antes que começassem a correr, os dois vislumbraram com horror o bom velhinho reerguer forças – mesmo com o disparo que o acertara no peito e expulsava uma gosma negra através do buraco – para colocar-se de pé ao lado da parede. Ele subira como um zumbi atônito buscando apoio em algum lugar.
Soltou um grito que arrepiou os dois garotos, primeiramente de dor, em seguida de ultrajes numa língua desconhecida e arcaica.
Sem esperar, Chris e Evan romperam a porta da casa em direção à rua, desesperados demais para concluir que tal disparo em nada servira para acabar com a raça de papai Noel. Assim que pularam a varanda e cruzaram toda a extensão gramada da frente da residência, observaram Stacy acenando para eles. A garota estava no banco carona do carro dos pais de Evan, buzinando numa frequência repetitiva.
O motor já estava ligado. Chris então adentrou o automóvel no banco de trás, batendo a porta com força. Já Evan deu a volta no veículo para dirigi-lo. Assim que entrou, os dois passageiros exigiram às gritarias que ele saísse imediatamente dali.
Eu não preciso de avisos. Eu sei o que fazer, eu sei o que fazer!
O rapaz jogou o revólver no carpete embaixo do seu banco e pisou fundo no acelerador, cantando pneus no asfalto e sentindo o carro derrapar por um rápido instante. Não soube por onde ou aonde seguir, mas tinha a total certeza de que iria para bem longe. Seus sentidos estavam a mil: as conclusões, as dúvidas, incertezas e pavores.
Mas houve uma coisa, pelo menos naquela única hora, que estremeceu Evan dos pés à cabeça e congelou todas as moléculas de seu corpo: enquanto saíam com o carro, ele conseguiu ouvir ao longe os berros do papai, e eles não eram mais de dor ou raiva – eram de advertência. Enquanto dirigia, o rapaz não conseguiu tirar as palavras de sua cabeça:
CRIANÇA DESOBEDIENTE. CASTIGO! CASTIGO!”.

Já estavam longe quando o carro derrapou num freio súbito. Subiu a calçada e saiu arrastando um punhado de grama sob a neve.
Chris soltou um palavrão e pulou sobre Evan, passando o braço em volta do pescoço dele e o enforcando numa chave de braço. Ele se debateu e tentou se livrar, enquanto Stacy gritava para que o outro parasse com a agressão. Evan inclinou o corpo para frente, comprimindo ainda mais o pescoço; tateou com as mãos o tapete, em busca do revólver. Até conseguiu roçá-lo com a ponta dos dedos, mas se exigisse mais do próprio corpo, então morreria estrangulado pelos músculos de Chris.
A garota cuspiu outro grito desesperado, foi quando o brutamonte largou o nerd. Caiu exausto no banco de trás, enquanto Evan deitou a testa no volante, tossindo e recuperando o fôlego. Passou as mãos pelo pescoço, sentindo a dor do aperto. Stacy ficou quieta, olhando tensa para os dois. Chris queria matar Evan a todo custo, e ela... Bem, tudo o que ela queria eram explicações.
- Foi verdade? Foi verdade tudo o que ele disse? Responde, Evan!
O garoto mandou-a esperar, totalmente ofegante. Abaixou a mão e segurou o revólver, para a própria proteção.
- Responde! – Ela exigiu, em outro grito.
- Responde, seu filho da puta!
 Era Chris quem gritava, agora. Saiu do carro tão rápido que Evan mal pôde perceber. Em seguida já estava ao seu lado, abrindo e puxando-o para fora. Foi jogado na neve, caindo de cara. Mas ainda tinha o revólver na mão. Quando Chris pulou sobre ele e o virou para empregar alguns socos, o nerd apontou a arma para o outro. Ela estava destravada e pronta para o abate. Chris levantou as mãos, bufando de ódio.
- Atira... Me mata, como você e o seu papai Noel fizeram com o Mike!
- Eu não queria que isso acontecesse...
- Porra de mentira! – Interrompeu – Eu ouvi o que ele disse naquela sala! Todos ouvimos! Você estava lá, não tem como mentir! A culpa é sua. Então por que não puxa o gatilho e me mata? Ahn? Não vai te custar nada, não é?
- Chris, para com isso, por favor! – Stacy já estava ao lado deles. – E Evan, por favor... Abaixa essa arma.
- Abaixo assim que ele sair de perto de mim. – Negociou, se precavendo de uma possível chuva de socos na cara.
Chris então desceu a mão direita. Não acertou Evan, mas apenas socou a neve. A mão afundou no amontoado de gelo, Evan arregalou os olhos, mas não ousou atirar. Ele estava blefando, mas não com Chris, e sim consigo mesmo. Não seria capaz de matar alguém, essa nunca foi sua real intenção.
Stacy calou um grito, também não esperava a atitude do ex-namorado. Então ele saiu de cima de Evan, parecendo três vezes mais assustado. Era como se estivesse decepcionado pelo tiro que o nerd não fora capaz de efetuar. Esperava um assassino puxando um gatilho, e não um moleque hesitante. Afastou-se e encostou-se no carro, caindo sentado. Passou as mãos sobre a cabeça, tendo dificuldades pra digerir todas as coisas que tinham ocorrido até então. Fechou os olhos. A garota sentou-se no capô, sentindo o calor emitido pelo motor recém-desligado.
- Foi tudo por causa daquele livro, não foi? O maldito livro que encontrei no seu quarto? – Stacy desabafou, olhando perdida o céu escuro. A neve havia cessado, mas voltaria a qualquer instante.
As palavras “seu quarto” trouxeram Chris de volta ao mundo real. Que porra era aquela? Stacy estivera no quarto do nerd...
- Sim. - Evan guardou o revólver de Chris na cintura. Acabara de comprovar que a arma ficava melhor com ele do que com o dono.
- Quarto? Livro? Que livro? – Chris fuzilou-o com os olhos. – Que porra é essa?
- É... O que diabos você fez? – Stacy continuou – E por que ele me chamou de “presente”?
- Explica essa merda! Explica o porquê do Papai Noel não estar entregando presentes para criancinhas normais, ao invés de...
- Não é o Papai Noel. – Evan elevou o tom de voz, perdendo a paciência.
- Mas você disse que era!
- Mas não é. Não oficialmente. Não como todo mundo conhece. – Levantou, já quase se acostumando com a dor no ombro. Voltou ao banco do carro, sentou, com o corpo de fora. Talvez fosse a hora de explicar a situação para os dois. – Eu te falei a verdade, Chris. Mas você e Mike não acreditaram em mim.
- E como iríamos acreditar? Você veio falando sobre monstros e coisas sem sentido...
- Por que fui chamada de “presente”?! – Stacy enfatizou a pergunta.
Evan fechou ambas as mãos em concha sobre o rosto. Quis gritar, talvez desejasse quebrar alguma coisa. Tinha um sentimento crescente dentro do corpo, algo que o mantinha aquecido e ligado em meio àquele inverno. Perdia a paciência, e a voz de Stacy não parecia mais tão agradável assim. A imagem de tantas mortes e tanto sangue ainda pairava sobre sua consciência, pessoas inocentes haviam pagado o preço de seu vacilo, e os sonhos em que seu pai estava presente... Nada fazia sentido. Nada.
- Explica! – Chris bateu na porta do carro. Parecia mais um soco.
- Evan! Por que aquele monstro...
- Tá! – Ele explodiu, querendo agarrar algo entre as mãos para estraçalhar, mas só tinha um punhado de oxigênio gelado. Ele respirou fundo e um forte vapor saiu de sua boca e narinas. – Eu explico... Tudo tem relação com o livro. Tudo aconteceu por causa dele.
- Sim, o livro.
- Que porra de livro é esse?! – Chris já perdia a paciência.
Evan também.
- Olha, foi um vacilo meu, beleza? – Evan enfraqueceu a voz, mantinha o rosto baixo, atordoado pela culpa. – Há alguns dias eu encontrei um livro na internet. Besteira, pura coisa de histórias infantis e lendas. – Ele mordeu o lábio, recordando o dia e desejando poder voltar para mudá-lo. Os dois ao seu lado estavam calados, esperando o resto da história. Stacy já sabia grande parte de tudo, mas ainda tinha informações embaralhadas que não faziam sentido para ela. – Falava sobre uma antiga lenda europeia, e o livro parecia autêntico. Coisa excêntrica, mas eu achei legal, sei lá... Pura distração. Foi aí que eu o comprei e dias depois a porcaria do livrou chegou, mais rápido do que eu poderia imaginar. A princípio, aquela coisa velha me assustou, mas aí então eu ignorei e comecei a ler.
- Pervertido. – Chris ressaltou. – Aposto que era o livro do demônio ou coisa parecida.
- Krampus. – Evan o corrigiu, balançando a cabeça negativamente.
- O quê? – Os dois perguntaram.
Evan abanou a mão.
- Krampus. Não é exatamente um demônio, apesar das lendas o descrevem como tal. Talvez seja, sinceramente eu não sei mais. Acho que é aí onde entra a parte do Papai Noel. – Coçou a cabeça desnorteado por onde deveria seguir na história. Mantinha uma calma aparente, mas por dentro gritava e desejava paz. Nunca fora introduzido numa situação de extrema tensão; nunca havia tocado em uma arma; nunca havia levado um tiro; nunca vira um monstro diabólico antes; eram coisas demais para um dia só. Sua cabeça estava à mil. – O livro era exatamente sobre isso: a verdadeira história por trás do Papai Noel. A lenda conta que o bom velhinho não agia sozinho, durante as noites de Natal. Na verdade ele teria uma espécie de... Sei lá, ajudante, eu acho. Uma espécie de alter ego reverso, uma cara metade avessa. Enquanto o papai Noel de verdade saía pelas noites entregando presentes para as crianças boazinhas, que tinham sido obedientes e praticado boas ações durante o ano inteiro, esse ajudante fazia exatamente o contrário. Ele açoitava as crianças más... – A palavra o fez parar de falar. Lembrava os avisos que escutara. Criança desobediente, castigo, castigo. Engoliu em seco e tentou continuar. Sentiu um leve arrepio, recordando que agora não era mais a criança “querida” de Papai Noel e que a criatura estava bastante “decepcionada" com ele – Esse... Esse tal “Krampus”, como é conhecido, ia atrás das crianças que haviam sido malvadas e... Err, desobedientes. – Suspirou fundo, sentindo uma breve falta de ar – Ele as punia por uma noite ou as levava para sempre. Talvez nunca tenha existido um papai Noel de verdade. Quer dizer, todo mundo sabe que isso é mentira! Mas a história teve origem em algum lugar, e com certeza foi nessa lenda. Não existe “um bom velhinho e um ajudante”. Ele é as duas coisas ao mesmo tempo. Concede os desejos para as crianças que julga obedientes, e pune aquelas que julga desobedientes. Krampus e Papai Noel são a mesma criatura,. Mas apenas se diferenciam em... Droga! Que merda! Era pra ser apenas um livro com uma história bizarra, tá legal? Quando o comprei, eu não imaginava que...
- Continue. – Stacy pediu, a voz menos autoritária. Parecia absorver o medo e arrependimento que emanavam de Evan – Conte sobre aquelas coisas que tinham no final.
Ele fechou os olhos, agarrou os cabelos. Respirou, inspirou. Respirou e soltou mais vapor pela boca. A temperatura havia caído vários graus nos últimos minutos.
- E aí o livro terminava. Ele falava mais sobre Krampus do que propriamente sobre o “bom velhinho”. E nas últimas páginas havia uns símbolos estranhos, umas palavras esquisitas em outra língua. Logo abaixo, havia uma instrução.
- O que dizia? – Chris se inclinou, tragado pela explicação.
- Dizia apenas “faça seu pedido”. – Evan quase gaguejou, então sorriu, nervoso e envergonhado – Eu não acreditei. Eu só fiz aquilo pra caçoar. Santo Deus! Como eu imaginaria que tudo ia acontecer de verdade?
- Filho da puta. Você fez um pedido, não fez?
- Ah meu Deus... – Stacy olhou para o outro lado, incrédula.
Evan olhou para os dois. Mas era a garota que o preocupava. Talvez não tivesse a chance de se retratar com ela, caso sobrevivessem àquela noite.
- Sim. Eu fiz a porcaria do maldito pedido. Eu pedi que certas pessoas saíssem do meu caminho e que... – Seus olhos continuavam em Stacy. Sim, ele havia pedido que Chris e Mike pudessem dar o fora ou não mais existirem, para que ele pudesse, no mínimo por um minuto, ter a paz dos lábios de Stacy junto de si, ou de sua companhia nas noites de tédio ou nos intervalos do colégio. Ele a desejava, gostava dela, sentia uma leve e estranha palpitação no peito quando estava perto da garota. Ele a queria, a desejava sem segundas intenções ou sem qualquer maldade de um pervertido. E aquilo era algum tipo de pecado imperdoável? Ler um livro de historinhas bizarras, desejar aquilo num súbito momento de humor negro, era algo imperdoável? Evan jamais poderia saber que aquelas coisas iriam de fato acontecer, que seu pedido seria levado a sério e Mike e Chris seriam mortos. Ele não tinha culpa. Não poderia ter presumido aquilo. Ninguém poderia. – Eu fiz um pedido. Fiz. E não sabia que toda essa merda iria acontecer! Podem me crucificar!
- Você... Você me desejou? Eu era o seu... “presente”?
As imagens dos pesadelos vieram à mente de Evan: toda aquela poeira, o sangue, a pequena montanha de corpos e um saco sujo e cheio de remendos, gemendo e se debatendo. Seu presente. Era Stacy quem estava ali dentro. Era esse o significado dos sonhos ruins. Novamente as dúvidas vinham: Kate estava morta, mas não estava em seus pesadelos; assim como seu pai, que estava nos pesadelos, mas não tinha sido pedido para “sumir” da vida de Evan. Eram duas peças que não se encaixavam.
Stacy não obteve sua resposta, mas sabia que um “sim” era mais provável. Ela também engoliu em seco, e sentiu uma estranha paz e libertação ecoar no peito. Era como um alívio. Estranho, àquela altura da tensão. Começava a entender o dilema de Evan: ele não pediu por maldade, apenas por um momento de rápido vacilo. E tinha sido correspondido, já que o monstro vestido de papai Noel o tratara como um mestre. Como uma criança obediente que faz seus pedidos e tem o direito de tê-los atendidos. Afinal, crianças ruins sofriam as consequências, a exemplo de Chris e Mike; crianças boas... É, crianças boas tinham seus presentes recebidos, e por mais que isso soasse perturbador para a garota – ela era a encomenda sobre a embalagem de Natal -, isso a levava para outra linha de pensamento: Evan era isento de culpa. Seu coração não era tão sujo assim, ele era apenas o garoto desorientado e ignorante que topara com uma força bem maior e devastadora. Ele não fez com intenções direcionadas ou propositais.
Stacy entendera aquilo, embora ainda estivesse receosa em admitir. Ainda nutria um instintivo orgulho feminino.  
- Saquei. – Chris se levantou, com os punhos fechados – Aí você fez o seu pedido e leu as palavras estranhas que estavam escritas lá. E então, com um “puff” mágico, seu pedido foi feito e aí despertou esse tal de krumpi... Krumps...
- Krampus. – Stacy o corrigiu.
Evan o fitou, espantado. Chris realmente tinha um cérebro por trás dos músculos. Resumira em um palpite certeiro.
- Acho que sim. Li as palavras em uma língua estranha. Olha, tudo me pareceu uma brincadeira na hora. Eu não sabia que isso ia acontecer...
- Você já disse isso, pirralho maluco. – Chris entrou no carro, batendo a porta de trás.
Evan e Stacy se entreolharam, confusos. A garota finalmente lançou um sorriso menos tenso para ele, pousando as mãos em seu ombro.
- Vamos dar um jeito nisso, Evan. Não vamos?
- Vamos! – Chris gritou, pondo a cabeça para fora da janela – Vamos atrás do livro, pegamos ele e colocamos fogo.
- O quê? – Stacy o fitou, confusa.
- Vamos à casa desse nerd desgraçado, procuramos o livro e tocamos fogo!
- Que ideia brilhante, Chris! – Evan respondeu, debochado – Como não pensei nisso antes? Seu plano é fantástico e vai ter 100% de eficiência! Quem te disse que isso vai resolver alguma coisa?
- Ninguém! – Gritou. Não havia ninguém na rua, mas dentro de casa, sim. Talvez já estivessem olhando os três lá fora – Ninguém me disse nada, mas eu vou colocar fogo na porra daquele livro e pouco me importo se vai rolar nada ou não! Eu vou tentar! O meu rabo e a minha vida estão na reta, tudo por sua causa, Evan! E não sei você, mas eu vou tentar sobreviver daquela porra de Papai Noel ou Kumpris! Que se foda! Vamos até sua casa e ponto final. E quando tudo isso acabar...
- Já sei, já sei: você acaba comigo.
Chris assentiu.
Stacy deu a volta no carro, sentando no banco do carona. Olhou para os dois.
- Evan, por mais que isso seja estúpido de se admitir, Chris tem razão. Podemos tentar, talvez... Talvez tenhamos alguma chance.
Ele fechou a porta e girou a chave, reaquecendo o motor.
- Tá, tá bom. Vamos tentar. – Olhou para o espelho retrovisor, encarando a expressão animalesca de Chris no banco de trás. Tinha dúvidas quanto ao plano. Tinha medo de voltar pra casa. Temia que as coisas não fossem tão fáceis, mas valeria a tentativa. Ele pisou fundo no acelerador e saiu de cima da calçada, com a hesitação borbulhando em suas veias.
Chris se mexeu, olhando pela janela fora.
- Eu não preciso ser a porra de um nerd pra saber que o fogo queima tudo.
Evan olhou para a garota. Parecia que ele perdera toda a coragem e ela fluíra para os outros dois. O revólver também pesava na sua cintura, como um lembrete sádico de que ele não era aquilo que estava sendo, àquela noite. Evan era apenas um estudante normal, erroneamente estereotipado como nerd; 18 anos de uma vida de monotonias, sem tempestades, sem grandes garotas ou relacionamentos. Não era de seu feitio estar afogado em uma merda sobrenatural daquela. Não mesmo.
- Então me diz... O fogo seria capaz de queimar tudo, até mesmo um desejo? – A voz do nerd saiu sombria, propositalmente jogada para que Chris pudesse refletir sobre o próprio plano. Também havia uma tonalidade de derrota e dúvida ali.
- Eu não sei. – O ex-namorado de Stacy respondeu, no mesmo tom – É o que vamos descobrir.

Ao longo de todo o caminho, nenhuma palavra foi pronunciada.
Não havia tensão entre os três, mas estavam ocupados demais com os próprios pensamentos. Talvez o carro mostrasse os resultados de tantas derrapadas e subidas em calçadas, já que o tempo pareceu alongar juntamente com o caminho. Horas se depositaram em minutos, assim como quilômetros tomaram o lugar de metros. Enquanto não chegavam à casa de Evan, os três permaneceram quietos; Chris e Stacy encostavam a cabeça na janela, observando a neve despencar lentamente na noite fria e silenciosa. Talvez a aparente tranquilidade dentro do automóvel proporcionasse uma maior aceitação psicológica diante dos fatos. Havia perguntas demais, e elas não eram respondidas facilmente como nos filmes de terror. A arte da dedução pouco os aplacava, e estavam completamente perdidos sobre os últimos acontecimentos. Era uma falsa impressão que as histórias de suspense passavam: em algumas pouquíssimas horas de filme, os personagens precisavam e conseguiam soluções rápidas e eficazes para descobrir as fraquezas do monstro ou assassino, raciocinavam de forma esplêndida e conseguiam se livrar no final. Com aqueles três, no entanto, a história real não se desenrolava assim. Era a vida real, bem mais massacrante que um thriller de terror.
Existia um monstro lá fora; um monstro que a indústria televisiva e o mundo capitalista exaltavam como a pura imagem da bondade e consumismo. Uma criatura horrenda que vestia a roupa do bom velhinho e saía para reivindicar sangue e morte. Não era o típico Papai Noel que sondava o natal com um alegre “Ho ho ho”, era bem pior, mais obscuro e arrepiante. Talvez simplesmente sangrento demais, fato que proporcionava o medo. Uma lógica simples: não era uma criatura tão feiosa e asquerosa, como as antigas pinturas de demônios ou fantasmas japoneses. Não era assustador pela imagem, mas pela agressividade com que buscava as vítimas. O seu maior trunfo em exalar o medo não estava inserido na imagem externa, mas na ameaçava que expressava para quem perseguia, explicando que um velho gordo, assassino e sanguinário que corre atrás de você para matá-lo pode ser mil vezes mais assustador que uma assombração demoníaca no escuro. Com o Papai Noel do mau – ou Krampus - a única psicologia que funcionava era a do medo, fazendo as pessoas temerem a chegada da morte violenta e sangrenta. Lutar pela vida era a única saída, e perder essa chance era o que garantia o terror a Krampus. Apesar da existência sobrenatural, toda sua maldade estava em assustar e ameaçar a sobrevivência. Era isso que fazia o medo brotar em suas vítimas.
Era sobre isso que Evan, Stacy e Chris pensavam a respeito.
- Qual o plano? – Evan cortou a monotonia, olhando pelo espelho retrovisor.
As ruas estavam praticamente desertas, como se todos tivessem combinado um estranho toque de escolher. Apenas dois ou três carros cruzavam o caminho deles. A cidade não era uma metrópole, bem como também não era tão minúscula, quem sabe toda a calmaria fosse uma forma de luto para com a morte de Mike. Evan sabia que ele não era um adolescente tão amado ou deveras conhecido, pelo menos não ao ponto de entristecer sua cidade. Havia mais dois colégios além do que eles estudavam, o que o fazia concluir que Mike era apenas mais um grão de areia no deserto. Talvez fosse o medo que calava os moradores; a afronta de uma morte terrível em plena véspera de Natal. É, com certeza deveria ser o temor congênito pela possível presença de um serial killer nas redondezas. Ou aquilo tinha uma explicação meticulosa e macabramente bolada? Se um papai Noel do mau era capaz de jogar poeira em uma sala de estar inteira, assassinar seu alvo e sumir num passe de mágica, qual seria a dificuldade em tornar uma noite de natal deserta e assustadora? Evan engoliu em seco. Sabia a resposta. Não tinha ideia de como Krampus fazia aquilo, nem quais leis físicas, químicas e religiosas da natureza burlava para fazê-lo, mas conseguia de forma impecável para tudo sair conforme seus planos maléficos.
O rapaz concentrou o olhar na estrada gélida e sem viva alma, esperando a resposta de Chris.
- Queimamos o livro.
Stacy se remexeu no banco, ligeiramente incomodada.
- Não, gênio. – Evan revirou os olhos, dobrando uma esquina – Precisamos de um plano pra fazer isso.
- Você sempre bolou planos para chegar em casa, subir as escadas e entrar no próprio quarto?
Evan bufou.
- Me refiro a um plano caso Krampus esteja nos esperando. Por acaso isso não passou pela sua cabeça?
Chris gargalhou, irônico. Aquilo respondia à pergunta de Evan.
Um não parecia mais suportar o outro, e as farpas trocadas só aumentavam.
- Você entendeu o que ele quis dizer, Chris. – Stacy passou a mão entre os cabelos, impaciente – Santo Deus!
Silêncio outra vez. Chris ao menos entendeu o lado da garota.
- Você está com a minha arma.
- E é melhor que continue assim. – Evan frisou – Pareço ter um controle mais elevado e consistente. – Instigou.
- Ah, não me diga?! É interessante como não conseguiu matar o papai Noel. Deve ter errado a merda do tiro...
Os nós dos dedos de Evan ficaram brancos quando apertou o volante. Se Stacy não estivesse ali, ele sem dúvidas pisaria no acelerador e jogaria o carro contra um poste. Andava perdendo a paciência – talvez ela nem mais existisse.
- Eu acertei o desgraçado bem no peito ou em alguma parte próxima! – Respondeu, com a voz forte – Acho que você estava ocupado demais tentando fugir.
- Claro!
- E a propósito: “De nada”, por salvar a sua vida!
- Era o mínimo que me devia, pirralho maluco.
Evan calou-se. Sabia que não podia continuar com a discussão, porque não teria razão. “Era o mínimo”. Tudo tinha sido sua culpa e Chris acertara em cheio no xis da questão. A vida de todos estava em jogo, o responsável por isso era única e exclusivamente Evan. Ele pestanejou e não soube o que responder, continuou dirigindo. Quanto mais perto se aproximava, mais o terror tomava conta dele.
Stacy olhou para os dois.
- Por favor, todos estamos desesperados aqui! Não tá sendo fácil pra ninguém e vocês agem feito duas menininhas?! – Passou novamente as mãos nos cabelos, apertou e fechou os olhos – Porra! Chris, dê um desconto para Evan...
- Ficou louca? – Ele protestou, indignado.
- E Evan... – Ela elevou a voz, para interrompê-lo e finalizar o que havia começado – Evan. Dê um desconto ao Chris. Vocês dois! Não estão ajudando com seus gritos e provocações.
Chris cruzou os braços, emburrado. Evan apenas assentiu, açoitado demais pelo peso da culpa.
- Você tem a arma – Chris se adiantou, agora mais calmo – e pode atrasá-lo. Você entra, pega o livro e trás alguma coisa para podermos queimá-lo.
- Espera, e você? – Stacy quis saber – Evan vai sozinho?!
- Eu fico do lado de fora contigo. – Respondeu com um tom de obviedade claro – O pirralho maluco vai sozinho, sim. Primeiro porque a casa é dele, e somente ele sabe onde o livro está; e segundo porque ele é o mais “controlado” para usar a arma, então que seja. E depois... Tudo isso é culpa dele, então que seja o pirralho maluco a arcar com as consequências.
- Mas...
- Ele tem razão. – Evan concluiu, fatídico. – Vai ser assim, então. – Respirou fundo, quando percebeu que só faltava mais uma esquina para chegar em casa. Apertou novamente as mãos no volante, reunindo coragem para o plano suicida. Tomaria ele com toda a determinação, era de sua total responsabilidade. Seria feito. – Vocês dois ficam me esperando do lado de fora, no gramado. Deixem o carro ligado. Se acontecer alguma coisa, qualquer coisa, o menor sinal de que Krampus esteja perto, então você dá o fora com a Stacy, Chris. Você dá o fora. Sem olhar pra trás, sem hesitação.
- E se eu não quiser ir? – Stacy o confrontou, odiando as palavras que acabara de ouvir. Não deixaria Evan pra trás, não depois de já tê-lo feito na mesma noite e ter julgado que tinha morrido com o tiro. Ele não poderia perecer, não depois de tudo o que fizera, não depois de ter sobrevivido tanto, de ter sido bem mais forte do que aquilo que ela jamais imaginaria que ele fosse. Evan tinha vencido a prova de fogo por se manter rígido o suficiente para ir atrás de uma improvável solução – a salvação. E não poderia cair depois de ter feito tanto. Não poderia.  
Evan freou subitamente o carro. Outra vez não respondeu à pergunta de Stacy. Seus olhos estavam arregalados, fitavam a fachada da própria casa com perplexidade. Ela seguiu o seu olhar, assim como Chris, e viram as luzes acesas e a porta aberta. O nerd gaguejou um “ah meu Deus” com extremo desespero, as mãos imediatamente começaram a tremer, mas os olhos verdes continuaram frios e fortes. Stacy e Chris sabiam que Krampus já estava lá dentro, numa incrível dedução monstruosa, como se soubesse que os três iriam até ali; Evan já tinha encarado o papai Noel uma vez, mas isso não justificava a mudança rápida de humor. Para quem tinha dito palavras tão decididas há poucos segundos, aquela reação não fazia sentido.
- Não, não, não, não! – Ele gritou. Saiu do carro aos tropeços, escorregando na calçada e perdendo o equilíbrio. Pisou na neve e correu pelo gramado encoberto pelo gelo.
Chris saiu logo atrás, seguido de Stacy. Os dois não entenderam o surto de Evan, mas não demorou muito para que a explicação viesse.
Quando Chris – que foi o primeiro a compreender – entendeu o que se passava, correu até Evan e o agarrou pela cintura, impedindo-o de continuar. O nerd se debateu, mas o outro era mais forte e conseguiu mantê-lo preso ao chão. Stacy se pôs ao lado dos dois, totalmente perdida.
- Me solta! – Evan pediu.
- Calma! Pega leve, porra! Fica calmo! – Chris o segurava sem a mínima dificuldade.
- Me solta! Me solta! Eu preciso entrar!
- Calma! – Chris gritou mais forte.
Após alguns segundos tentando se libertar, Evan desistiu e parou de se debater. Quando levantou o rosto, seus olhos não fitavam a casa, mas sim o carro que estava estacionado na entrada da garagem. Stacy olhou aquilo e demorou a entender, só depois de um tempo veio ligar as peças. Então levou a mão à boca e lembrou que Evan estava sozinho em casa. O único carro que fora deixado era o dos pais, usado geralmente pela sua mãe ou por ele mesmo, nas ocasiões necessárias. Aquele outro veículo só poderia pertencer à...
- O carro do meu pai! – Ele gritou, completando os pensamentos da garota.
- Olha pra mim, porra! – Chris o libertou, colocando-o de pé. Segurou-o pelos ombros o olhou fundo – Não se desespera. Você vai entrar na sua casa, tirar sua mãe ou quem quer que esteja lá. Vai fingir que está tudo bem. Me entendeu?
Os neurônios de Chris vinham sendo de grande ajuda. De repente, o antigo brutamonte violento e descontrolado era quem liderava o plano de ataque.
- Não é a minha mãe quem está aí. – A voz trêmula de Evan controlou-se. Ele fechou os olhos e começou a bater na própria cabeça, chegando às últimas respostas que faltavam. – Merda! É o meu pai! O meu pai veio atrás de mim, provavelmente pra saber o porquê de eu ainda não ter ido à...
- Ei! – Chris o sacudiu. – Não importa quem esteja lá. Você entra, tira a pessoa e procura o livro. Simples e rápido. Se o maldito papai Noel já estiver lá, você mete bala no filho da puta. Sacou?
- C-certo...
Então Evan avançou. Tocou o revólver preso à cintura por garantia e caminhou perdido para a entrada da casa. Olhou para o carro do pai, tropeçou, engoliu em seco. Inspirou e suspirou, uma forte lufada de vapor saindo pela boca. Contemplou as luzes da sala acesas. Não havia nenhum barulho, nenhum grito. Nada. Tudo estava estranhamente quieto. Olhou outra vez o carro. Aproximou-se. As mãos tremiam, lágrimas já ameaçavam cair dos olhos, quando sentiu uma mão gelada segurar seu braço.
Ele pulou de susto, mas não gritou. Quando olhou para trás, tranquilizou-se ao ver os olhos escuros e – igualmente perturbados – de Stacy. Viu Chris emburrado por sobre os ombros da garota. Forçou um sorriso rápido e passou a costa das mãos sobre os olhos.
- O que foi?
- Toma cuidado. – Ela forçou o aperto, como se procurasse pelo calor dele – Você pode impedir isso, Evan. Sabe que pode.
- Eu não sei sobre mais nada. – Continuou andando, sentindo-a segurar-lhe o braço.
- Olha, olha... – Ela exigiu que ele ficasse um pouco mais. Tinha algo a dizer, algo que ele necessitava saber antes de entrar na casa – Lembra quando me contou sobre os pesadelos? Lembra como eles eram? Não aqueles em que o Krampus entrava na sala, mas todos os outros pesadelos proféticos?
- Lembro.
Os dois pararam diante da varanda. Evan sentia a ansiedade por entrar, mas sabia que precisava escutar o que ela diria. Era importante.
- Você sonhou que morria atropelado pelo carro de Chris. Você viu tudo acontecer e no dia seguinte, conseguiu escapar. Você viu o corpo do seu pai entre o de Mike e de Chris e... Bem, olha pra ele – Apontou para o ex-namorado -, ainda está vivo. E o mais importante de tudo: Kate não fazia parte do seu pedido, a garota não estava entre os mortos e mesmo assim foi morta. Pensa bem, Evan! Não ficou claro para você? É possível mudar as coisas. Se o próprio Krampus acabou com Kate, então ele mesmo mudou o que estava planejado. Você também pode mudar! Chris ainda está vivo, e seu pai também pode continuar. Do que adiantariam pesadelos proféticos se você não pudesse mudá-los? Bem, você conseguiu escapar de ser atropelado e interveio nisso; a morte de Kate foi uma morte que também não estava nos planos e o seu pai... Você pode salvá-lo. De alguma forma podemos mudar isso. – Ela o apertou uma vez mais. Estreitou os olhos e completou, decidida: – E eu vou com você. Salve seu pai, eu procuro o livro!
Evan arregalou os olhos. Poderia rir naquele instante, satisfeito por saber que ela não o abandonou mesmo depois de toda a loucura da noite. Era fiel a ele, mesmo sem devê-lo coisa alguma – era o contrário. De alguma forma, o modo como Stacy o enxergava era estranho. Muitas garotas, assim como Chris, o repudiariam e o fariam correr os riscos em nome do débito, porque a culpa era dele. A maioria das pessoas faria isso, mas não Stacy Watson, ela era diferente. Talvez louca e sem o mínimo pingo de razão.
Ele já tinha estragado as coisas. Já tinha errado demais, e não o faria mais uma vez. Apesar de sentir o alívio por vê-la fiel à causa dele, Evan não permitiria colocá-la em risco novamente. Já tinha extrapolado o limite da culpa e dos erros, não repetiria o ato pela segunda vez. Então sorriu para a garota e puxou o braço, fazendo-a soltar. Olhou para Chris e balançou a cabeça, assentindo num sinal que o outro foi capaz de entender. O ex-namorado de Stacy também se mostrava firme e determinado, totalmente diferente do idiota que sempre fora. Situações de risco revelam quem as pessoas realmente são por dentro, e Evan via coisas boas dentro de Chris.
Stacy, a fiel.
Chris, o determinado.
O ex-namorado e ex-idiota respondeu com um aceno, acolhendo e processando o recado de Evan: “Se acontecer alguma coisa, qualquer coisa, o menor sinal de que Krampus esteja perto, então você dá o fora com a Stacy, Chris. Você dá o fora. Sem olhar pra trás, sem hesitação”.
O nerd subiu os degraus da varanda, respirando fundo. Quando Stacy tentou segui-lo, foi impedida pelas mãos de Chris. Ela gritou e exigiu ser libertada, mas era em vão. Evan subiu, teria de correr contra o tempo, mas antes disso, olhou para trás e encarou os olhos escuros da garota. Stacy era linda e talvez ele estivesse apaixonado por ela. Sentimento desgraçado, inútil e maldito. Mas inevitável. Sentiu um aperto na garganta só de imaginar que talvez fosse a última vez que a veria.
Os dois se entreolharam. Ele, calado e derradeiro na missão; ela, sussurrando para não chamar a atenção e esperneando, como se sua vida necessitasse em segui-lo naquele plano kamikaze. O rapaz forçou uma atitude fria, ignorando as súplicas da garota. Virou o pescoço e se aproximou da porta, tendo uma visão parcial do interior da casa. Estava tudo quieto, imóvel e inabitável. Como se não houvesse vida. Ele continuou, mas antes que pudesse de fato cruzar a entrada, uma sombra se projetou lá dentro e avançou, provavelmente atraída pela movimentação do lado de fora – a noite estava tão silenciosa e inerte, que qualquer conversa e murmúrio soaria como um estrondoso exército marchando.
Evan parou, assim como Chris e Stacy.
Ambos perceberam a silhueta parar na porta, numa estranha boas-vindas à chegada do nerd.
Quando tudo mais se silenciou e a tensão dissipou diante dos olhos dos adolescentes, um segundo de alívio pairou novamente. O corpo que se projetava ali não era gordo, tampouco sujo, não usava roupas vermelhas nem tinha uma barba encardida e olhos vermelhos. Pelo contrário: ali estava um corpo alto e magro, de cabelos grisalhos e calvo, olhos verdes assim como os de Evan, mas imensamente mais severos e maduros.
- Pai?! – Evan sentiu um peso ser retirado de seus ombros.
O homem estava intacto, sem ferimentos, sem sangue. Uma aparente fúria cortava sua expressão, provavelmente por Evan ainda não ter ido à casa dos avós, para a habitual noite de natal em família – e faltava menos de duas horas para o tão esperado nascimento de Jesus. Ele observou os outros dois amigos do filho, estranhando a expressão de dor da garota e o aperto forte e brutal ao qual o outro jovem a submetia.
- Evan? – Apertou os olhos, analisando o filho. O rapaz vestia a aparência de um drogado, além de um estranho ferimento no rosto.
- Pai! Você está bem? Digo, você não...
- O que tá acontecendo? Por que você ainda está aqui? Deveria ter saído há horas...
- Olha pai, eu vou explicar tudo, tá bom? – Saltou sobre ele, o segurando pelos ombros com um sorriso abobado. Vê-lo vivo era a maior recompensa que poderia ter naquele momento. Exatamente como Stacy havia dito: “Você pode salvá-lo. De alguma forma podemos mudar isso". – E-Eu explico tudo... Tudo! Só preciso que venha comigo e...
- Evan!! – Stacy gritou.
E então não houve tempo.
Tudo o que o garoto enxergou a seguir foi uma imensa sombra atrás de seu pai; um vulto borrado em preto e vermelho ganhar forma e se solidificar, como um vendaval levantando um punhado de areia em espiral. A sombra criou formas mais definidas, com roupas sujas e vermelhas, um cheiro forte de cocô e metal. A cena se desenrolou em menos de três segundos. Evan não conseguiu alertar o pai. O “HOHOHO” ecoou dentro da casa como em um sonho longínquo e fraco, e ganhou forças.
Olhos vermelhos.
A mão pesada e gorda caiu sobre os ombros do homem. Evan puxou a sua rapidamente, viu a expressão de medo e dúvida do pai subjugar a outrora furiosa. Gritou pelo nome do filho e foi arremessado para trás, como um simples pedaço de papel. Ele voou reto em direção à escada, passou pelo corrimão, quebrando-o com as costas. Bateu no meio dos degraus e caiu sobre uma das mesas do corredor do primeiro andar. Evan observou a tudo, sem poder fazer algo. Krampus gargalhou, como se houvesse olhos nas costas e tivesse assistido a espetacular queda do homem. Ele ainda se remexeu no chão, gemendo de dor e indicando sinal de vida.
- Criança desobediente! Evan mau, Evan foi muito malvado! Vai ser castigado pelo Papai Noel, Hohoho!
As palavras o cortaram por dentro. Penetraram feito gilete, subjugando cada órgão e esfriando todos os nervos. Apenas o medo corria pelas veias, impulsionadas pelo bater frenético do coração. As mãos procuraram o revólver na cintura, trêmulas, desorientadas. Frente à frente com o monstro, ele lhe parecia agora três vezes maior. Evan o encarava mais de perto, notando que permanecia com a forma de um homem – um velho gordo e sedentário -, mas a pele encardida talvez não fosse devido à sujeira. Era meio acinzentada, mórbida, morta. Os olhos vermelhos, pequenos e penetrantes, lembravam ao de um felino na sua delineação de pupila invertida e vertical. Os dentes eram demasiadamente espaçados, cheios de restos e fiapos de carne podre ou qualquer outra coisa entre eles. E pela barba havia, claro, a gosma preta que lhe escorria sistematicamente o canto da boca. O hálito de Krampus fedia a um amontoado de lixo de três meses. Sua gargalhada fraca e gutural soprava o mau cheiro no rosto de Evan.
- Criança má! Vai pagar pelo que fez! Criança desobediente! O Papai Noel vê tudo! O Papai Noel castiga!
Evan puxou o revólver, mas não pôde atirar.
Assim como nos pesadelos, a estúpida rajada de poeira surgiu num piscar de olhos e o arremessou metros atrás. A porta bateu com força e se fechou, deixando apenas Krampus e o pai do garoto dentro da casa. Já o nerd foi erguido pela poeira, levantou no ar com violência, metros acima e chutado. Os grãos se dissiparam no ar, mas o corpo do rapaz, não. Ele sentiu a brisa gélida do natal atravessar seu corpo, através de segundos de silêncio que antecipariam sua queda no chão. Ele rodopiou de mil maneiras, feito uma simples partícula de gelo ou gotícula de água ao despencar da nuvem mais alta. Não distinguiu o borrão que seus olhos enxergaram, pouco sabendo se o que via era o céu, as árvores da rua, o gramado ou o telhado da casa. Não houve tempo para gritos, não houve tempo para preparação. Apenas sentiu o corpo ser tragado na direção do chão, soltou o revólver, sequer tendo tempo de imaginar onde a arma cairia. Respirou. Pensou no pai lá dentro com papai Noel. Imaginou o que aconteceria. Pensou na mãe, nos avós e nos tios, primos e primas – será que eles imaginam a tragédia que está por acontecer? Pensou no resto de sua vida. Pensou em Kate e em Mike, pessoas que não tinham nada a ver com sua brincadeira de comprar livros misteriosos na internet. Pensou em Chris e o modo como vinha agindo na última hora, como se tentasse se redimir do crápula insolente e filho da puta que havia sido com St... Stacy. Entre o borrão da noite, Evan decidiu fechar os olhos. Comprimiu as pálpebras. Sentiu a gravidade. Esperou a queda.
Pensou em Stacy.
Então caiu.  

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