24 de dezembro de 2012

Capítulo IV, All I Want For Christmas Is You




Red From Christmas, Cap. IV,   All I Want For Christmas Is You.

Quando Evan caiu, tudo o que ele ouviu foi um grito. Um grito longe e perdido, desesperado. Feminino. Não soube por quanto tempo esteve apagado. Nessas situações, o tempo tem um jeito estranho de correr. Era como tentar dormir ouvindo música com os fones de ouvido. Você de repente sente o começo de uma canção e, logo em seguida, já se depara com o término dela, como se jamais tivesse existido um meio. Ficava sempre uma lacuna, e você se pergunta: “eu adormeci tanto assim? O que me pareceu ser uma noite inteira de sono, foi apenas alguns trechos de música perdidos e cochilados?”. Era estranho, e para Evan a comparação era a mesma.
Ser arremessado por um punhado de areia do mau e cair no chão. Ele sequer tivera a sorte de ser aparado por uma pequena montanha de neve, acumulada na entrada da garagem ou... Ou seja lá onde ele tinha caído. Tudo o que sentia era absolutamente nada. Não tinha dor, não tinha sofrimento. Sem lágrimas, nem cheiro de sangue. Tentou se mexer, e deu graças a Deus quando percebeu que ainda detinha o poder sobre o corpo. Talvez eu ainda não esteja tetraplégico. Mas a visão ainda estava turva, além da sonolência. Ele fechou os olhos, abriu e voltou a fechar. Esperou a visão se ajustar, percebendo que ainda estava na frente de casa, mas bem afastado... Muito mais distante. Girou o rosto, buscando um conforto. Os lábios encostaram em algo ainda mais frio: o asfalto. Talvez estivesse no meio da rua, ou quem sabe na calçada. Fechou os olhos. Reabriu. Enxergou Stacy nos braços de Chris. Ela se debatia, esperneava com veemência. Fechou os olhos. Quando abriu, ela já estava ao seu lado, não, não. Ela estava sobre ele, de joelhos no chão, acariciando-o o rosto. Seja lá como ela tinha chegado ali, Evan tinha certeza que um segundo atrás estava sendo segurada por Chris. É... Aquilo era como dormir com fones de ouvido. Você não sente a música passar, sem perceber, fecha os olhos, transitando entre a sonolência e o mundo real. Aí segundos se transformam em horas de sono ou vice versa. Como cheguei aqui? No fim da música? Como passei... Como... Como cheguei em outra música? Como?

- Stacy? – Perguntou, ainda perdido e sonolento, oscilando entre o desmaio e a consciência – Stacy? É você? Stacy...
- Evan, Evan... – Ela segurou o rosto dele, tocando com a ponta dos dedos. O toque era delicado e cuidadoso, como se a qualquer momento ele fosse rachar feito um copo de vidro – Calma, você vai ficar bem. Você, você vai...
Lágrimas despencaram dos olhos escuros de Stacy. Ela o segurava nos braços como uma mãe com o filho. Ele sentia suas mãos, sentia seu calor em meio ao frio. E mais que isso, Evan sentia a neve caindo com mais força, quase congelando as lágrimas da garota. Ele fechou outra vez os olhos, desejando poder dormir e esquecer tudo o que tinha acontecido. Estava atordoado e o mundo girava sem nexo ao seu redor. Quando deu por si, já estava sentado, os braços dela o envolviam as costas e o rosto enterrado em seu ombro. Sentia o aperto. Reabriu os olhos, achando que eles já estavam abertos – devido à vívida sensação que o corpo da garota lhe trazia. Então reuniu forças para retribuir o abraço. Quando forçou a visão, enxergou Chris se abaixando para pegar algo do chão. Dentro de sua cabeça, a voz do outro gritava, as palavras estavam longe, mas Evan pôde identificá-las. Chris gritava “a arma, a arma, a arma”, uma dezena de vezes.
Estreitou os olhos, mais fundo, com mais força. O assistiu agarrar o objeto no chão, correr para dentro da casa após arrombar a porta. O sono veio outra vez. Evan sabia que talvez estivesse à beira da morte. Não sabia quantos metros fora arremessado, mas notou que suas pernas esticadas tocavam o limiar da calçada e do asfalto. Não tentou calcular a distância na qual voou e se espatifou quase no meio da rua. Afinal, os números nunca fizeram sentido na sua cabeça. Os braços ternos de Stacy o envolveram uma última vez, num aperto mais forte, Evan fechou os olhos, agora certo de que não voltaria a abri-los. Sentiu o corpo leve, embora pudesse movê-lo sem dores ou dificuldades. Desejava levantar, correr para casa e salvar a vida do pai, tirá-lo da iminência do pesadelo profético; queria salvar Chris, porque era o mínimo que deveria fazer, certo? O cara acabara de entrar numa tentativa que borrara todo o seu plano de se manter longe de Krampus, num ato heroico e suicida, ele entrou na casa para salvar o pai de Evan, ou talvez apenas o fazia por causa do livro? É, claro. Era óbvio. Chris jamais se arriscaria por alguém. Apenas correra com a arma em punho para encontrar o livro e colocar fogo, na sua tentativa desesperada por sobrevivência. Que seja. Chris tinha feito o seu melhor, Evan não negaria tal verdade, e nem muito menos estava decepcionado com a última dedução a seu respeito. Diante da morte, ele não conseguiu nutrir raivas ou mágoas. Era tudo limpo, silencioso e tranquilo.
Não havia agonias em morrer. Apenas paz.
VOCÊ VAI DORMIR AGORA, CRIANÇA? NÃO DURMA. NÃO DURMA. NÃO... DURMA!
Poderia ser clichê, mas quando Evan fechou os olhos, sentiu o corpo ser tragado para um abismo sem fundo. Uma espécie de gravidade mais intensa, sugando cada parte sólida de seu corpo. Havia uma escuridão que o envolvia, ou talvez ele estivesse cego. Era estranho. Talvez aquilo realmente fosse a morte, sem delineações ou definições, um grande abismo ou espiral envoltos num breu profundo, matutando sobre qual destino expurgar o corpo estranho: céu ou inferno?
Também não havia dor. Sem medo. Normal. Com paz. Um vazio. Sem nada, ausência de felicidade e tristeza, desprovido de passado e futuro. Sem decepções ou esperanças. Pelo que pareceu uma eternidade, Evan caiu de olhos fechados, o corpo girando num espaço solitário e escuro. Parecia mais a lembrança de uma psicose lunática, a típica cena de jogos psicológicos onde ao se atravessar uma porta, você se depara com as lembranças de uma infância distorcida, entre desejos não realizados. Deixando-se levar, o garoto não questionou o porquê da morte precoce, muito menos revoltou-se. Ele apenas aceitou. Quando suspirou para mais uma expressão de seu conforto e conformismo, sentiu as pernas e as costas serem puxadas por um líquido espesso e pegajoso. Ele arregalou os olhos, logo a escuridão que tomava conta do vazio transformou-se num cone vertical de luz fraca, típica de um dia de inverno. Logo os braços arquejaram para cima, tentando buscar apoio no ar, mas estava afundando mais no líquido. Sem demoras, o rosto foi coberto completamente e volumes encheram suas narinas e a boca, atravessando a garganta sem permissão. Os olhos arderam e uma ânsia de vômito o tomou, mas estava se afogando numa propriedade tão densa que sequer bolhas de oxigênio escaparam-no a boca. Evan afundou cada vez, debatendo os pés e sentindo o líquido entre os dedos, fechando a mão como se pudesse agarrá-lo. Continuou caindo sem oxigênio, batendo as pernas, tentando nadar para cima. Os olhos pareciam queimar, tentava fechá-los, e mesmo isso não conseguia realizar com sucesso.
Só então pôde fechar a boca, mas era estranho. Queria abri-la, vomitar e tossir, mas manteve-a fechada. Moveu o corpo com sincronia, parou de debater as pernas e mexer os braços com desordem e desespero. Concentrou-se em alguns segundos de calmaria e posicionou o corpo num ângulo vertical, reassumiu a ordem de movimentos e nadou para cima, usando as mãos com demasiada força. Funcionavam como remos eficientes, já que o líquido era denso, ele o apalpava com as mãos e empurrava para baixo, obrigando o corpo a subir. Realizou a tarefa até enxergar a superfície se aproximando, bem como a luz que enxergara antes de afundar totalmente. Nadou, empurrou o líquido para baixo, bateu os pés e precipitou o tronco para cima. Quando a superfície chegou mais perto e a luz clareou, Evan esticou a mão para cima.
Tocou algo gelado e duro.
Segurou-se no objeto com as duas mãos e retirou o corpo. Quando pôs a cabeça para fora e puxou o ar para respirar, percebeu que estava na banheira de sua mãe, imerso em uma substância espessa e vermelha. Quando concluiu o que exatamente era aquilo, o garoto gritou e pulou para fora, batendo a lateral do corpo contra o azulejo do banheiro. O sangue dentro banheira sofreu com a precipitação do garoto, de modo que boa parte dele caiu para fora, molhando o chão. Evan tentou recuperar o fôlego, atordoado e desconexo, sem entender como fora parar ali; sem ao menos compreender como uma simples banheira parecia tão funda e abrangente feito um oceano. Ele passou as mãos pelo rosto, tentando a afastar o sangue que havia ali. Toda sua roupa estava encharcada, o cheiro era forte e enjoativo. Outra vez a ânsia de vomitar, mas o máximo que fez foi tossir. Estava sentado no chão, respirando fundo, suspirando, assimilando todo o terror que passara. Foi só então que recordou que já estava morto – isto é, com noventa porcento de certezas.
Levantou devagar, pois ainda havia sangue demais no chão e escorregou duas vezes antes de se colocar de pé. O banheiro parecia incrivelmente claro e branco, o que realçava o vermelho escarlate. Evan engoliu em seco e desejou mais do que nunca dar o fora dali. Apressou os passos até a porta, quando a abriu e atravessou o entre ela e o quarto, deu de frente com uma visão que não esperava encarar: ao invés do cômodo pertencente aos pais, Evan se viu no término de uma pequena estrada de terra, ladeada dos dois lados por uma sequência de casinhas que formavam um longo corredor vazio, ostentado por uma fina neblina. As moradias eram antigas e com arquitetura clássica. Evan engoliu em seco, porque automaticamente sabia onde estava. A memória do livro veio a sua mente, e as palavras “lendas”, “Krampus” e “São Nicolau” de repente faziam um sentido absoluto. Ele estava onde tudo aparentemente começara, em qualquer vila europeia do século XVI ou XVII.
Aparentemente, também era inverno, embora a neve caísse sutilmente. Um bosque extremamente denso cercava a área de trás das casas, circundando a vila e a estrada onde Evan estava. Ele olhou para trás, mas não podia enxergar com clareza, já que as árvores sombrias e a neblina rasteira dificultavam a visão. Ele então decidiu caminhar, sugado pelo mistério do lugar e fadado a descobrir a verdadeira razão em estar ali. Atravessou a neblina. Tentou se proteger do frio, quando percebeu algo estranho. Suas roupas eram adequadas, mas de alguma forma sentia que um fino calor esquentava seu corpo. Também não percebeu brisa alguma afagar sua pele. Esticou as mãos para cortar o ar, notando a ausência da baixa temperatura nas palmas. Usou a mão direita para aproximar do rosto, inspirou fundo e, quando soltou o oxigênio, o vapor da respiração também não saiu, embora tivesse sentido o hálito quente na pele. Baixou o rosto e olhou para os pés, continuou caminhando e se surpreendeu quando a neblina não parecia ser afetada nem cortada por suas pernas. Levantou o rosto, sentindo um calafrio subir a espinha. Apalpou o corpo para sentir que ele mesmo era real, mas não havia dúvidas. Seu corpo era sólido, bem como o calor que sentia era vívido, e seu hálito quente como uma xícara de café.
Evan era apenas uma figura alheia ao ambiente, totalmente desconectada da cena, mas ainda assim presente nela.
Continuou caminhando. Se estava morto ou não, com certeza aquilo era um tipo de realidade ilusória ou uma ilusão realística. A vila estava abandonada, a julgar por suas portas abertas. Nenhuma alma viva ambientava o lugar e com certeza alguma bizarra surpresa o espreitava ao fim da jornada. Iluminadas por lamparinas, o interior das casas não exibia nada de anormal, ignorando o medo e a estranheza de um garoto do século XXI caminhar por uma vila tão antiga, distante há centenas de anos. Mas Evan sabia raciocinar, o medo que sentia não cegava suas conclusões: se o livro tivera uma origem, então fora na mesma época daquele lugar. Algo deveria ser visto e descoberto ali, caso contrário...
O garoto parou, estático.
À sua frente, como num passe de mágicas, crepitava uma fogueira alta e atraente. Outra vez a mudança de ares se mostrava sobrenatural e paranoica, exatamente como quando saíra do banheiro e se deparara com a vila abandonada, talvez mais um jogo sádico de uma mente louca ou, pior ainda, de um mentor pervertido. De qualquer forma, ele agora se via perante uma fogueira, as chamas subiam a quase dois metros de altura, alimentadas por toras de madeira perfeitamente cilíndricas. Evan olhou para trás, onde não existia mais uma vila, e sim um círculo fechado de árvores. Ele estava rodeado pelo bosque, no centro de uma clareira. Mas não era esse o detalhe que o fez estremecer. À frente da fogueira, sacos de couro mal fedidos estavam dispostos, cheios de alguma coisa que o garoto preferiu não saber. Mas ele já tinha visto a cena antes em seus pesadelos. No entanto, nos sonhos o saco se debatia, e ali... O que é que estivesse lá dentro, estava morto, podre e moribundo.
Decerto ele sabia, mas precisava de uma prova mais concreta, uma espécie de tato insano buscando somente a verdade que já estava clara demais para ser remexida ou mais aberta. Aqueles sacos guardavam presentes, cujos quais provavelmente haviam sido desejados como aqueles que o nerd desejou. Todos estavam imóveis, numa aparência suja e arrepiante, escondendo cadavéricas surpresas para a grande comemoração do nascimento do Senhor Jesus Cristo.
Eu preciso sair daqui, eu preciso sair daqui!
- É isto o que há de acontecer.
Uma voz estraçalhou os planos de Evan. Outra vez o garoto permaneceu parado, sem saber aonde ir ou o que fazer. Procurou o portador da voz com o mesmo desespero que olhava para os sacos. Foi aí que o viu: um menino jovem, cabelos compridos, esqueléticos e de expressão melancólica. Estava sentado do outro lado da fogueira, com as pernas cruzadas e costas curvadas. Ele era ruivo, os cabelos ressecados caiam-lhe os ombros. Tinha olhos verdes – um pouco mais claros que os de Evan, mas igualmente apagados, sem vida. Lembrava mais um zumbi, embora realmente estivesse vivo e à beira da morte. O corpo nu revelava sérias feridas – algumas totalmente infecionadas e necrosadas –, a genitália escondida por um amontado de pelos embaraçados e sujos. As costelas tatuavam a pele como cordas de um deprimido violão desgastado. Mas ele respirava, tinha forças para mover os maxilares, despejando palavras fracas e desanimadas. Elevou as verdes órbitas na direção de Evan. As chamas crepitavam inclinadas para o lado, talvez ordenadas a abrir caminho para a troca de olhares dos dois.
O menino fitou Evan com uma serenidade dramática. Havia razão no seu olhar; havia sanidade.
- É isto o que há de acontecer.
No primeiro momento, o rapaz não aceitou a ideia de que era com ele a quem o menino se referia. Necessitou de alguns segundos para engolir o medo e o terror, só assim mirando os olhos do outro com curiosidade e hesitação.
- Se continuares com a ousadia da ganância, terás os presentes aos teus pés. Tolo eu fui, também o ousei chamá-lo. Vinde a mim, novo amigo. Mostrar-te-ei os presentes que recebi.
Evan deu um passo atrás, abismado demais para aceitar o convite. Mas não ousou continuar.
- E-Eu... Eu estou morto? – Perguntou, gaguejando e atropelando as letras.
O menino não exprimiu reação diante da pergunta, respondendo indiferente e sugestivo:
- Queres isso?
- Quero saber se estou morto!
- Se queres a morte, estarás morto. Se queres a vida, terás a vida.
- Ahn?! – Aproximou-se da fogueira, não entendendo e repudiando aquele joguinho de xaradas. O fogo sofreu uma leve explosão, fazendo-o pular para a posição que antes estava e obrigando-o a manter-se afastado. – Eu não estou entendendo! Preciso saber se estou morto ou se isso é mais um sonho como todos os outros.
- Se há de ser um sonho, por que não acordas?
Evan trincou os dentes, apertando os punhos. Desejava uma resposta, mas tudo o que vinham eram questionamentos.
- Isso só pode ser um sonho! No mínimo uma ilusão! – Ele caminhou para trás, rindo nervoso. Movias as mãos em sinal de desistência, se afastando da fogueira e todos os sacos. Sairia dali mesmo que tivesse de atravessar aquele bosque enegrecido. Cerdo ou tarde teria de acordar. – Eu caí, fui arremessado. Ainda estou vivo, ainda estou... É apenas uma ilusão, outro sonho ruim...
Deu as costas e saiu correndo, deixando pra trás todos aqueles sacos com cadáveres humanos e o menino esquelético. À sua frente havia uma escuridão densa e inóspita, guardando demônios que nem ele sabia que nutria. Mas era o único caminho. A vila ficara para trás, assim como a névoa ou o oceano de sangue (aliás, ele não estava mais sujo). Deveria se acostumar com aquele terror, já que nos últimos dias vinha sendo atormentado pelos pesadelos vívidos. Precisava nutrir uma porção de sangue frio e estômago forte, pois logo acordaria, estaria aos braços de Stacy ou despertando em uma manhã agradável de Outono, dando-se conta que tudo não passou de uma estranha alucinação durante o sono.
Quando chegou perto de entrar na escuridão da floresta para abandonar a clareira, Evan sentiu as costas arderem. A sensação quente logo se transformou no intenso toque da queimadura. Ao virar o pescoço, percebeu que as costas queimavam, as roupas se incendiavam e a carne era chamuscada. Ele gritou e caiu no chão, rolando pela terra em desespero. Esperneou-se, tirou a camisa e a jogou para o lado, desejando mais que tudo vê-la longe da própria pele. A roupa continuou a pegar fogo até não mais passar de cinzas. Ele tateou as costas, contorcendo-se de dor ao sentir a superfície da pele sensível, no entanto não havia sangue, muito menos cheiro de churrasco. Uma leve queimadura deixara a pele branca vermelha e rosada, em pontos distintos. Mas estava vivo. Ele continuou no chão, encarando de longe o menino que continuava imóvel.
- Há de julgar esta dor como ilusão? – O menino perguntou sugestivamente. – Há de julgar sendo um sonho ruim?
Evan mordeu os lábios, gemendo. A dor era intensa demais para ser um sonho. Caso o fosse, então ele já teria acordado.
- Merda! Quem é você?!
Um brilho surgiu nos olhos do esqueleto humano. As chamas continuavam a crepitar inclinadas, os dois se analisavam. O menino, imparcial, sem demonstrar verdadeiramente as reais intenções; Evan, apoiando-se no chão, gemendo ao esticar a costa ou ao fazer qualquer movimento.
- Quem é você? – Insistiu na pergunta após perceber a mudança. – Qual seu nome?
- Nomeação não mais importa, nem lugares, idades...
- Quem diabos é você?!
O menino cedeu.
- Alguém como tu, Evan.
- O quê? C-Como assim...
- Vinde e veja. Vinde até mim.
Evan levantou, embora tenha levado tempo demais para isso. Tocou as costas, elas ainda ardiam, a sensação era péssima. Mas ele continuou, obstinado demais a conseguir respostas para todas as perguntas. Ele parou diante da fogueira, mantendo distância dos sacos. O menino balançou a cabeça de forma negativa, sugerindo com os olhos que o rapaz fosse ao seu lado. Evan engoliu em seco, pestanejando feito um cego. Ignorou os medos, no entanto contornou a fogueira e percebeu que, enquanto se mexia, ela mudava sua inclinação para manter os dois indivíduos ao alcance um do outro, de modo a voltar ao normal (como uma fogueira comum e sem vontade própria) no instante que o rapaz se colocou ao lado do menino. Ainda assim, manteve distância suficiente, caso viesse a ser atacado. Mas aí lembrou o que ocorrera na última tentativa de fuga.
- Olhai os embrulhos, olhai todos estes presentes diante de ti. – Referia-se aos sacos com cadáveres humanos. O menino os fitava indiferente. – Eram todos meus irmãos e irmãs. Desejei a ganância, pedi a Krampus pertences e ouro. Hei de pousar teus olhos sobre meu sangue morto, novo amigo. Foram todos tirados de mim, sacrifícios realizados a contra gosto. Eu não tinha a intenção, mas estão todos aqui, dados a mim por Ele.
Então Evan contou: eram oito os sacos, eram oito os corpos.
- Você não desejou a morte deles. – Não foi uma pergunta. Estava concluindo.
- Jamais cometeria tal traição. – O menino retrucou rapidamente – Amava a todos eles. Krampus não entendeu o pedido que lhe fiz.
- Ele se agarrou às brechas – Evan completou – E levou ao sentido literal. Ele usou seus desejos para...
- Cumprir com os dele.
Evan levou as mãos ao rosto e caiu de joelhos. Tudo estava perdido, já era tarde para voltar e consertar as coisas. No fim, ele terminaria como aquele menino, todos morreriam e não teria salvado ninguém. A culpa era toda sua.
- Não me rebelei, porém. – Continuou o menino – A pena que me dei foi esta: perdi-me na floresta, assim, nesta imagem e neste corpo. Aqui fiquei desde então. Vivo ou morto, já não é algo que eu hei de saber.
- Não se “rebelou”? Você não lutou contra Krampus?
- Lutarias contra o demônio, novo amigo?
- Claro! Eu preciso acertar as coisas que fiz, tenho de voltar...
- Voltar aonde?
É claro. Eu estou morto!
- Eu morri? – Evan encarou o menino, pela primeira vez tão próximo e determinado, como se o medo no seu semelhante não existisse.
- Se é a morte que queres, sim.
- Eu não quero morrer! – Devolveu num grito. Pessoas dependiam dele. Dependiam daquele garoto que nunca fizera nada de tão grande na vida, mas que agora tinha uma chance de consertar os erros egoístas que construíra. Mais sangue não haveria de ser derramado, o nerd precisava evitar. – Eu quero viver! Preciso salvar meu pai... Não posso abandonar o Chris naquela casa e... Meu Deus, Stacy precisa de mim. Eu preciso dela!
O menino sorriu, deveras vitorioso.
Evan arregalou os olhos ao enxergar um traço de vida naquela face petrificada e morta. Os dois pareciam ganhar a esperança para continuar a encarar os medos, se convencerem da verdade para, no fim, se “rebelarem” contra Krampus.
- É a vida que queres, novo amigo? – Questionou o menino.
Evan assentiu com veemência.
- Vá. – Apontou ao fogo com o queixo esquelético – Faça da sua rebelião àquela que não fiz. Ide ao demônio e o impeça. São embrulhos demais, Evan.
- O que eu devo fazer? – Olhou o fogo crepitar, querendo não entender a indicação feita pelo outro.
- Pulai no fogo.
- O-O quê? Claro que não, eu, eu...
- É o único modo para voltares.
- Mas...
- Confies em mim. Pulai no fogo. Sinta a dor, somente ela trará à vida que te pertencias.
- Eu não posso... Eu não...
Você pode. Era vida que ele queria, desejava voltar para salvar as pessoas que amava. Evan não era, nem muito menos seria, um grande herói renascido das chamas da morte. Ele não se considerava assim. Existia ali no limite um ideal a ser cumprido. Um homem de verdade corrigia seus erros ou, no mínimo, pagava por eles, sozinho. Sem envolver outras pessoas, sem envolver àqueles próximos de si. Não se tratava em ser um herói – longe disso. Tratava-se do conserto. Um sacrifício. 
Somente a dor trará à vida que te pertencias.
- Como eu termino isso?
- Olhai, novo amigo. – O menino sorria, pela primeira vez em toda a sua “vida” após a experiência com o demônio, realmente em paz. Fitava a fogueira com um brilho eterno nos olhos verdes. – É ele quem guarda a tua resposta. Olhai. E lembres: do fogo ao fogo.
Sem despedidas. Sem aviso prévio. Evan não viu o rosto do menino outra vez, porque estava ocupado demais sendo empurrado (por uma força invisível) em direção à fogueira. Outra vez ele caiu, sugado por um abismo. Mas agora, havia dor e agonia. As chamas consumiram sua carne enquanto a garganta se desgastava aos berros. O garoto se debatia enquanto caía, tentava rodar e abanar o corpo, mas até a palma das mãos chamuscavam venenosamente. Logo teve sua pele corroída, as células sensoriais o fizeram sentir a dor até o fim e em momento algum sua consciência dispersou. Ele permaneceu vivo e são, totalmente sábio de seu sofrimento enquanto as chamas derretiam pele, carne e cozinhavam os órgãos internos. Manteve os olhos fechados, porém não por muito tempo, já que eles também entraram para a festa da combustão. Se antes as costas o incomodavam, agora a dor era maior. Uma simples queimação daquela vez em nada se comparava ao incêndio ao qual seu corpo fora submetido. “Dor” passava a ser uma explicação vaga demais, e vida... Bem, aquilo tudo era pela vida.
Do fogo ao fogo.
Assim como fora parar naquele mundo de espaços intangíveis e manipulados, o garoto agora voltava. A primeira vez havia sido uma espiral profunda de escuridão e imparcialidade, um mundo totalmente neutro e desprovido de dor ou felicidade. No entanto, o caminho de volta não era em nada parecido. A ironia presidia exatamente este fato, embora Evan não tivesse tempo ou disposição para pensar nisso (não era apenas o corpo físico que queimava, como também a alma e os pensamentos): morrer era calmo e silencioso, já voltar à vida era o contrário. Viver exigia dor e confusão, talvez por isso – por trás de toda a explicação científica e plausível - os bebês chorassem quando retirados da barriga da mãe. Talvez houvesse um lado espiritual que os alertava da agonia do fogo e do calor do desespero. Viver exigia resistência, talvez o pequeno choro fosse um alerta e um cartão de boas-vindas ao mesmo tempo. É, talvez fosse isso.
Evan ainda caía e gritava, sentindo o corpo se reduzindo às cinzas de uma voraz chama. A pele já havia sido devorada, não antes de dar nascimento às milhares de bolhas que nasciam e estouravam ao logo dos membros e do rosto. Gradativamente, o calor atingira os nervos, corroendo os músculos, cozinhando-os usando como tempero e solvente o próprio sangue que havia nas veias e entre as fibras. Mas não bastou até aí. Evan permanecia consciente, gritava enquanto os dentes eram aquecidos; a língua já não mais era apropriada para qualquer uso; os cabelos foram os primeiros a encolher feito copo de plástico descartável. Vieram então os ossos, ultrapassando sua solidez e queimando – enfim – a alma.
A síncope normalmente teria ocorrido há muito, devido à grande e descomunal dor que o organismo do garoto vinha sentido. Isso ocorreria a qualquer outro ser humano. Era uma resposta básica do homem: proteger-se de uma agonia intensa ou descargas emocionais gigantescas. Evan era uma exceção. Ele não perdeu os sentidos; suas sinapses não desligaram o sistema por proteção e recuperação. Elas continuaram ativas, cada terminação nervosa; cada célula sensorial. Ardendo o calor do Inferno, para que o garoto entendesse o sacrifício de voltar à vida e entender as consequências de sua escolha.
A mensagem e o significado do fogo eram simples, demasiadamente primordiais, quase didáticos: o fogo queimava e fazia sofrer; a dor significava vida, um alerta de que algo ainda funcionava e de que quando há sofrimento físico e palpável, há um fluxo vivo e persistente. Apenas isso.
Ele caiu, despencou. Gemeu forte. Gritou e incendiou.
Queimou. Profundamente. Literal e solidamente.
Física e espiritualmente, Evan queimou.

Stacy ainda soluçava quando foi jogada para trás.
Ela segurava o corpo de Evan com os braços firmes, mas não aguentou o sobressalto que ele deu. Ela também se assustou e pulou para trás com as mãos sobre o peito. Não se afastou tanto do garoto, mas percebeu o terror ao qual ele estava afogado. A expressão era de espanto – três vezes maior que à dela. Evan estava sentado no chão com as pernas esticadas, as mãos tocavam o asfalto gélido como se nunca tivesse sentido frio na vida – de alguma forma ele procurava se agarrar à sensação gelada como um consolo literal e espantoso, feito um desenho animado que procura um balde de água após engolir um punhado de pimenta. Os olhos arregalados expressavam o medo e um alívio tenebroso, ambos misturados em um liquidificador cujo qual era o cérebro do nerd. Ele necessitou de longos segundos para cair na real e perceber o lugar onde estava. Olhou para o alto e identificou o céu escuro; fechou os olhos e elevou o rosto em direção às nuvens, para sentir as prazerosas partículas de neve que caíam e derretiam sobre sua pele quente; respirava fundo, como alguém que acaba de escapar de um afogamento.
A emoção maior veio quando reabriu os olhos e enxergou Stacy ao seu lado. Sem entender, ela foi abraçada por ele num salto, o que fez com que ambos caíssem no chão. Evan estava sobre a garota, um sorriso largo assaltava seu rosto, e ela, da mesma forma, embora confusa, também o fazia. Tinha certeza de que antes ele estava morto, e o garoto também pensava assim.
Seja lá o que tivesse acontecido, Evan sabia que o menino esquelético o ajudara. Talvez tivesse dado um empurrão espiritual, obrigando-o a sair do corredor da morte eterna. Talvez tenha sido uma ilusão, mas a lembrança das queimaduras e do oceano de sangue – além do cheiro – não o dava tanta certeza do estado ilusório. Talvez, de verdade, aquele menino de uma época distante – que também fizera um pedido a Krampus – o tivesse ajudado a voltar para consertar as coisas. Afinal, depois de todos os erros que Evan cometera, desistir e morrer não eram atitudes tão dignas. As atitudes certas deviam ser escolhidas e efetuadas. “Do fogo ao fogo” significava alguma coisa, o garoto se dispusera a descobrir com todo o ímpeto de sua nova vida.
Se havia morrido ou não, já não importava. As visões que tivera foram reais demais para serem contestadas. Tudo o que mais significava naquilo eram as lições que ele deveria aprender. E erros a corrigir – principalmente isto.
- Stacy! – Ele falou sussurrado, parecia mais um cachorro empolgado latindo de felicidades sobre o dono.
- Evan, você...
- Eu sei! Eu sei! – O sorriso era estranho – É loucura, não é? Eu estive desacordado, eu tive umas visões estranhas, parecia que...
- Evan. – Ela chamou sua atenção, abismada e com o olhar sério – Você não ficou desacordado.
Um breve silêncio.
- O quê? – A expressão dele ficou nervosa, o coração acelerou mais que o normal. – Como assim?
Ela subiu as mãos e aplacou o rosto dele. Uma última lagrima desceu de um dos olhos, congelando ao parar no asfalto frio. A neve continuava a cair, enchendo a rua de silêncio e tranquilidade aparente. O garoto engoliu em seco quando a viu chorar, notando que as órbitas escuras da garota estavam rodeadas por um avermelhado anômalo. Ela esteve chorando forte. As mãos frias dela enchiam o espírito do nerd de paz, acolhendo-o da ardência que pensara ter sentido. Ou será que realmente sentiu?
- Esquece. – Ela falou fraco, retirando as mãos do rosto dele com as bochechas queimando em desconcerto. – Eu achei que você tivesse... Depois do que aconteceu... Você caiu aqui, então eu pensei que... Você...
- Tivesse morrido? – Ele concluiu, pasmo.
Stacy apenas assentiu, igualmente assustada com a ideia.
Evan esbanjou um sorriso agradável, levantando-se e puxando-a consigo. Ele não mencionou o fato, muito menos as imagens que vira. Ele não balbuciou sobre o menino, mas já tinha certeza absoluta de que nada fora ilusão. Talvez aquele fosse um espírito atormentado sobre os pedidos de natal que fez; talvez o menino, quando mencionou o fato de “perder-se na floresta sob tal imagem e tal corpo”, nada mais quisesse se referir à própria alma angustiada, à procura de penitência e redenção.
Ele acabara por se dar conta do óbvio, já que a morte não era algo somente terreno e material, mas sim espiritual. Seu corpo sofreu com a queda, sua carne e seus ossos se desfaleceram diante da existência terrestre; sua alma, no entanto, foi obrigada a vagar pela confusão a qual o terror de Krampus o havia submetido. Ele foi levado a um plano mediano, para ser colocado à prova em relação a escolha que deveria fazer: vida ou morte. Recebera a chance de voltar e terminar com os crimes e terrores do demônio natalino e assim, quem sabe, libertar todas as vítimas que ele já havia feito até então. Por isso foi necessário o sacrifício do fogo; por isso todas as dores e toda a sensação infernal.
Evan precisava se sentir vivo, uma espécie de desfibrilador mítico e espiritual.
Puseram-se de pé. Ele olhou para a casa e lembrou que Chris ainda estava lá dentro. O tempo terreno mal tinha transcorrido, ele sentiu que esteve naquele mundo por tempo demais, quase uma eternidade.
- Eu preciso entrar. – Ele a segurou firme pelos ombros.
- Não! A última vez que fez isso, aquele monstro o atacou e você voou pelos ares. Não posso deixar que volte lá!
Ele a ignorou, soltando as mãos e tentando se afastar. Mas ela o segurou pela camisa com força, agarrando-o com todas as vontades.
- Evan, por favor, não!
- Eu preciso, Stacy.
Tentou se soltar, embora ela continuasse a segurá-la. Evan abaixou a cabeça, esforçando-se para não ter de olhá-la nos olhos. Era uma espécie de tentação estranha, como se sentisse que pudesse largar todos os seus ideais para obedecê-la e ficar ali, ao seu lado. Mas se o fizesse, saberia que Krampus viria atrás deles, e o pior: seu pai e Chris estariam definitivamente mortos. Apesar de Stacy ser uma escolha irresistível e atraente sob aquela imagem frágil e vulnerável, ele precisava correr para salvar os dois naquela casa, caso contrário o sacrifício do fogo não teria valido a pena, e a segurança da garota não estaria 100% garantida.
Quando ela continuou insistindo, Evan tomou coragem e levantou o rosto, pareando ao lado dela. Ele agarrou as mãos da garota, retirando com pressa de sua roupa, mas com delicadeza. Ele a olhou profundamente, fitando seus olhos escuros. Não pronunciou palavra alguma, já que não teve forçar nem raciocínio para tal coisa. Apenas permaneceu ali, naqueles segundos que mais pareceram horas. Podia sentir a respiração da garota saindo forte e transformando-se em vapor em meio ao frio e à neve. Ele quis beijá-la, talvez abraçá-la tão forte a ponto de protegê-la de todos os males. A sensação forte chegava ser tão grande, que algo já enrolava em sua garganta, apertando e ardendo-o os olhos.
Soltou as mãos dela, afastando seus corpos e o calor momentâneo que um proporcionava ao outro. Se tivesse que fazer algo, então seria depois que tudo aquilo terminasse. Era a única forma de Evan se manter vivo, como uma promessa particular; sua motivação mais forte e concreta. Ele precisava sobreviver àquela noite.
- Fique aqui fora. E não importa o que aconteça, não entre na casa! – Ele se afastou, correndo e sentindo o corpo perfeitamente intacto. A única coisa que o incomodava ainda era o buraco da maldita bala que atravessara o ombro, mas já estava se acostumando com a dor, ela fazia parte de todo o pacote de aventuras do Natal.
- Eu vou com você! Não me dê ordens!
- Você fica aqui! – Ele parou, virando-se, a expressão de apelo – Nós precisamos de você aqui fora, Stacy.
- Ah, é? E o que eu faço? Congelo aqui fora enquanto vocês morrem...?
- Ninguém vai morrer! – Ele suplicou – Então, por favor, você fica aqui!
Assim deu as costas, correndo sem se importar – momentaneamente – com as lágrimas que Stacy desabou. Cruzou todo o espaço pelo qual havia percorrido antes – por cima. Subiu os poucos degraus da varanda e atravessou a porta que estava escancarada. O corrimão da escada, espatifado pelo chão, já não mostrava sinais de seu pai. Mas Evan escutava passos e sons abafados pela casa, como uma luta fervorosa. Ele olhou para cima, duvidoso demais sobre os sons estarem vindo de lá. Então percorreu os poucos metros de corredor que levavam à sala de estar.
Quando chegou lá, viu o que tanto procurava. Krampus (sob as roupas de papai Noel) segurava seu pai pelo pescoço, pressionando o homem contra a parede, tentando-o levantar na intenção de enforcá-lo. Talvez tivesse êxito na tarefa, caso não fosse a persistência de Chris em estar agarrado ao seu pescoço. O ex-namorado de Stacy estava pendurado nas costas largas e gordas de Krampus, empregando uma chave de braço e puxando o inimigo para trás, atracado ao pescoço. Chris mantinha o rosto de lado, afundando nos ombros do papai Noel. Mantinha uma feição quase esverdeada, tamanho era o nojo que seus olhos transbordavam. Um cheiro forte entorpecia suas narinas, Evan sabia o quanto o monstro fedia, mas não tinha a real noção do quão intenso aquilo poderia ser de tão perto. Era isso o que Chris sentia. Seus braços também passavam sobre a barba da criatura gorda, os braços mostrando todos os músculos que fizera tanta questão de conservar durante a vida. Era ele quem impedia a morte iminente do pai de Evan.
Quando Chris o viu parado na entrada da sala, apenas conseguiu gritar:
- Vai atrás do livro, porra! Não fica parado aí, vai atrás dele, caralho! Vai, vai!
Evan sequer pestanejou, apesar do impulso de salvar a vida do pai ser maior. Mas ele tinha algo bem mais importante a fazer, já que aquilo tiraria da morte as vidas de mais três pessoas. Girou sobre os pés e correu tropeçando de volta à escada. Subiu com velocidade, pulando de dois em dois degraus. Foi direto ao próprio quarto e abriu a porta aos empurros, escancarando com os ombros. Olhou em volta, varrendo com os olhos num ritmo frenético. Onde estava a porcaria do livro? Correu até a escrivaninha, abriu as gavetas fazendo com que uma delas caísse no chão e espalhasse milhares de objetos sobre o chão. Não encontrou. Correu até o guarda-roupa, tirou os pertences e todas as vestimentas, jogando para trás e aumentando a bagunça. Abria as gavetas em meio aos sons abafados que a luta causava no andar de baixo. A tensão crescia intrinsicamente com a pressa. Revirou todas as partes do móvel e nada encontrou. Sabia que o livro estava ali, em algum lugar. Ninguém entrara no quarto, muito menos o próprio Krampus. Evan tinha total consciência de que o desespero era o único fator a bloquear sua memória, uma sensação válida à de tentar lembrar qual foi o almoço do mesmo dia e não conseguir.
Houve um estrondo. Evan pulou para o lado, levando os olhos na direção da porta. O barulho vinha lá de baixo, alguém gritava. A voz se assemelhava com a de Chris, mas em meio ao desespero não havia como identificar decerto. Evan deu outra varrida pela quarto com os olhos, deparou-se diante da cama e um estalo veio à mente. Ele correu até a mobília e se abaixou no chão, colocando a mão esquerda sob ela e tateando. O quarto estava escuro, mas ele conseguiu encontrar – com certa rapidez – o que tanto procurava. Quando segurou o objeto e trouxe para si, o coração pareceu aliviar. O livro continuava ali, igualmente assustador à primeira vez que tinha colocado os olhos sobre ele. Era de um marrom escuro, quase negro. A capa dura lembrava um tipo de couro estranho, mas não o era (Evan saberia). As inscrições em letras distorcidas traziam consigo um idioma desconhecido, lembrando um alemão antigo.
- Do fogo ao fogo! Do fogo ao fogo! – Ele repetia, frenético.
Levantou e saiu correndo do quarto, o livro embaixo do braço com as mãos firmes. Quando cruzou o limiar da porta, deu de cara com a surpresa que o aguardava no topo da escada: Krampus estava parado, ofegante e sorridente. Em umas das mãos estava sua arma, estendida como uma espada; as duas extremidades de metal armadas, gotejando uma quantidade relativamente grande de sangue. Evan temeu a conclusão iminente, já que o sangue não pertencia ao demônio, mas sim a uma das duas pessoas que antes estavam no andar de baixo: Chris e seu pai. A julgar pelo sorriso vitorioso de papai Noel, alguém estava morto. Um dos presentes acabara de ser empacotado.
São embrulhos demais.
- O que acha que vai fazer com esse livro, criança?
Evan deu um passo atrás. O monstro era enorme, tanto para cima quanto para os lados. Bloqueava toda a passagem da escada. Naquela altura, apenas uma parte do corrimão mantinha-se intacto, já que a metade para baixo havia se partido com o impacto que seu pai sofrera. O garoto olhou para a parte conservada e alguns pensamentos insanos tomavam sua mente.
- Posso fazer mil coisas. – Ele andava para trás, utilizando o semblante de medo como blefe. Não direcionou o olhar ao corrimão, para que Krampus não entendesse seu plano. O garoto apenas tomava distância.
- Não seja desobediente. Dê-me o livro e tudo ficará bem, criança. Eu prometo. O Papai Noel promete, HoHoHoHo!
Ele continuou caminhando para trás, até sentir a parede em suas costas. Evan estava encurralado, enquanto Krampus sequer se mexia.
Não houve mais conversa, pois não havia diálogos a serem tecidos. Evan era apenas um humano, enquanto papai Noel era um demônio sanguinário com fome de mortes. O livro parecia revelar a única vulnerabilidade do monstro, por isso talvez ele tivesse subido até ali. Mas o que teria acontecido com os outros dois? E Stacy, ainda estaria do lado de fora obedecendo às ordens de Evan? Só havia um meio de descobrir.
O garoto tomou impulso e correu. Ele protegeu o livro sob o braço direito, feito um jogador de football e oferecendo o lado esquerdo como resistência, numa espécie de escudo humano. Não era forte, tampouco provido de imensos músculos como Chris, mas ele faria o seu melhor, utilizando das atitudes mais ridículas que pudessem aproximá-lo da fuga. Um breve momento de hesitação passou por sua cabeça quando viu Krampus reagir à súbita atitude. O monstro passou a correr também, na direção de Evan. O espaço que separava os dois era mínimo, por essa razão tudo transcorreu rápido demais: quando o garoto notou que menos de um metro o separava de papai Noel, conseguiu se abaixar sob o braço esquerdo do monstro - que agarrou o ar em vão e cruzou como uma bala sobre ele. Krampus se espatifou na parede onde Evan antes estava, mas agora não havia tanta escolha ao garoto. Seu impulso de corrida fora rápido demais para o pouco espaço, o que o impossibilitou de diminuir a velocidade. Ele agora estava caindo pela escada, tentando frear e se agarrando ao livro como se fosse um passaporte para a nova vida. Rolou escada abaixo encolhido em posição fetal, a superfície fragmentada e gradual da escada infringindo várias partes do corpo, amassando membros e impactando os ossos; sentiu quando o supercílio esquerdo foi cortado pela quina de um dos degraus. Ele berrou e sentiu o corpo ser cuspido para fora na metade da escada, exatamente onde o corrimão havia quebrado.
Evan se espatifou no chão, causando outro estrondo. Mas em momento algum ousou soltar o livro. Sentia o sangue descer pelo rosto devido ao corte – um novo ferimento para sua coleção atual. Comparado à queda que o vitimara à morte, aquilo não era nada. Ele gemeu, no entanto se esforçou para levantar, agarrou-se à parede e o fez rapidamente. Ele recordava os filmes de terror, onde as vítimas, perseguidas pelos monstros ou assombrações, tropeçavam e levavam tempo demais para se recuperar. Evan não contribuiria com seu nome para aquela lista de erros fatais. Não faria parte de tal clichê cinematográfico. Levantou com esforço e ao recobrar o equilíbrio, deparou-se com Chris a sua frente. Ele estava ensanguentado, também apoiando-se à parede. Um ferimento na coxa esquerda despejava toda a quantidade de sangue, uma perfuração cilíndrica e perfeitamente delineada através da roupa e da carne. Olhou para o livro, atônito.
- Você conseguiu!
- Onde está meu pai? – Foi o que Evan conseguiu responder. Caminhou ainda desorientado até colocar-se ao lado de Chris, exatamente na entrada da sala de estar.
- O livro, seu idiota... – Chris arquejou e um punhado de sangue saiu de sua perna. Ele se segurou na parede e despencou no chão, fraco demais para se manter de pé. – Queima o livro... Queima o livro...
Evan se abaixou e ficou ao lado de dele, ignorando a ordem. Pôs o objeto no chão, ao seu lado e tocou o ferimento, colocando as mãos em cima para estancar o fluxo. Mas aquilo não parava e a pele clara de Chris começava a ganhar uma palidez doentia. O nerd balançou a cabeça, aflito. Precisava ajuda-lo, mas a preocupação sobre o quê tinha acontecido ao pai ainda o instigava a sair dali; incendiar o livro também era prioridade. Evan era apenas um, com três cartadas a dar em uma só jogada.
- Porra! – Chris gritou, agarrando-o pelo colarinho – Sai daqui e toca fogo na merda do livro, você é surdo?!
- Cala a boca! – Evan devolveu. Com as mãos ensanguentadas retirou o próprio casaco. Segurou com as duas mãos umas as mangas e se esforçou para rasgar o tecido. Aquilo não era tão fácil quanto nos filmes, mas teve sucesso. Arrancou a manga e passou em volta do ferimento de Chris. Amarrou com um nó apertado e impiedoso na parte inferior. Pegou o livro com e ajudou Chris a se levantar com o braço direito. – Vai lá pra fora! Stacy está lá.
- O livro, porra... Vê se não enrola...
Os dois foram interrompidos por uma gargalhada forte que veio do topo da escada. Quando ambos olharam na mesma direção, viram papai Noel descendo os degraus com passos pesados. Um godzilla gordo e avermelhado fazendo o solo tremer. Evan puxou Chris consigo, aumentando a velocidade dos passos em direção à saída. O garoto olhou para o lado direito na direção da sala de estar e enxergou o próprio pai no chão, se remexendo e atordoado. Parou de andar no mesmo instante, enquanto Chris soltava uma risada irônica e nervosa.
- Achou que eu não conseguiria salvá-lo?
Evan olhou para trás, Krampus já descia pela metade da escada.
- Você consegue sair sozinho? – Afastou-se de Chris, segurando o outro pelos ombros, esperando a confirmação.
- Deixa comigo. – Falou entre gemidos.
Não era grande a distância que os separavam da porta. Evan apertou o livro entre o braço, assentindo.
- Dá o fora, ele não vai atrás de vocês. Krampus quer a mim e ao livro. 
- Pirralho maluco...
Evan não deu atenção. Afastou-se de Chris, dando as costas. O outro saiu da casa mancando com toda a velocidade que conseguia com a perna ferida. Papai Noel já havia concluído toda a descida quando Evan abaixou-se ao lado do pai e ajudou a levantá-lo. O homem ainda fez um punhado de perguntas e bravejava aos ouvidos do filho, dizendo-o para fugir e chamar a polícia. Mal sabia ele que as autoridades não dariam jeito algum naquele tipo de ameaça; mal sabia ele, também, que seu filho sentia-se confiante e preparado demais para lutar contra o demônio do natal. Talvez estivesse assim pela oportunidade que lhe fora dado ao voltar à vida.
Os dois levantaram e se depararam com o velho gorducho e sanguinário bloqueando a saída da sala.
- Por que não vai embora daqui?! – Seu pai gritou.
- Por que ele não pode. Ele tem algo que é meu, não pode sair sem que deixe comigo. Vamos, vamos, criança. Não seja desob...
- Que se foda minha desobediência! – Evan gritou de volta, sem se importar em dizer o xingamento ao lado do pai.
- Me dê o livro, Evan! O livro!
Ele pôs a mão no peito do pai, obrigando a ir pra trás.
- Pai?
- O que é isso, Evan? O que... O que é tudo isso...?
- Pai, me escuta! – Deixou o rosto de lado, sem desgrudar os olhos de Krampus. A voz e o alerta sérios fizeram com que o pai se calasse – Me escuta! Você vai sair de casa assim que eu correr para a cozinha.
- O quê?! Você ficou...
- Shhh! – Obrigou-o a falar mais baixo – Me escuta. Eu preciso queimar esse livro, é o único jeito de dar um fim nessa coisa. Mas eu não tenho como fazer isso com o senhor aqui dentro ou perto dele. Você precisa sair e ligar para a polícia. Chame a ambulância, o Chris precisa de ajuda. Vocês têm de se afastar e ficar perto de várias pessoas, quanto mais misturados, melhor. Preciso que faça isso, pai. Dê o fora e ajude o Chris.
- E-Ele me salvou desse...
- Monstro. – Evan concluiu, assentindo em relação às palavras do pai – É um monstro. Eu não estou brincando, muito menos ele. – Mencionou Krampus com o queixo. Os olhos continuavam fixos no demônio. – Pai, você precisa confiar em mim. O Chris salvou a sua vida, retribua.
- Mas eu não vou te deixar aqui...
- Ah, claro, você não vai. Você é um presente!
Quando Krampus gritou, sua arma foi apontada na direção do peito do pai de Evan e, pela segunda vez naquela noite, ele arremessou com imensa destreza. O garoto parecia estar acostumado àquilo e se jogou para o lado, agarrando o corpo do pai e obrigando os dois a caírem no chão. Dessa vez, no entanto, Evan não teve tanta sorte e sentiu a lâmina rasgar sua costa de uma ponta à outra. Os dois se espatifaram pela sala – já destruída. A arma de Krampus ficou presa à parede, parecendo uma tendência repetitiva. O livro caiu, deslizando pelo chão em direção à árvore de natal retorcida e apagada. O pai estava deitado de frente para ele, aterrorizado por presenciar outro ataque do papai Noel e, principalmente, pela rápida reação do filho.
Evan gemeu no chão. Olhou para o pai, sentindo a pele das costas aberta num traço horizontal de sangue.
- Sai daqui! Sai! Agora! – Gritava desesperado.
Krampus veio correndo à toda velocidade. Mas ao invés de tentar segurar o livro, ele foi direto ao homem. Evan agiu rapidamente, outra vez. O sangue no rosto ainda descia, devido à queda da escada; o tiro no ombro deixava aquela área totalmente amortecida, já que o sangramento já havia cessado; a costa ardia, mas ele foi capaz de superar mais essa dor (recordando que sobrevivera à agonia das chamas). Evan poderia se levantar e fazer mais um esforço, pois esse era o seu objetivo. Ele pulou sobre o livro e o prendeu à cintura na parte de trás da calça. Rolou pelo chão na tentativa de bloquear a passagem de papai Noel, quando enxergou um objeto reluzente e pesado sobre o chão: o revólver de Chris. Evan esticou as mãos, a sensação da ferida nas costas ser aberta aumentou, mas ele se esforçou, ignorando a dor. Agarrou a arma de fogo, ainda haveria três ou quatro balas. Rodopiou no chão, parando de barriga para cima. Colocou-se no caminho do demônio e mirou entre os olhos dele. Ele não hesitou.
Quando a bala saiu e atingiu a testa, o imenso papai Noel desabou para trás, fazendo todo o chão estremecer. Evan arregalou os olhos, mas por um breve instante. Então voltou a gritar:
- Vai, pai! Dá o fora daqui! Agora!
Ele o obedeceu, hesitante. Saiu correndo da casa, tomando distância do corpo do monstro.
O garoto se arrastou pelo chão, reunindo forças para levantar. Olhava com incerteza para Krampus que parecia totalmente desfalecido, mas com certeza tal estado seria por pouco tempo. Ele levou a mão à cintura, garantiu a segurança do livro. Então verificou o revólver. Nunca tinha tocado em uma arma de fogo até antes daquela noite, também parecia estar se acostumado a isso. Conferiu a munição e contou três balas restantes. Ele respirou fundo e trotou pela sala, tomando distância do corpo de Krampus. Cambaleou em direção à cozinha, sempre olhando para trás. Certificou-se que o demônio não se mexia. Chegou ao compartimento da casa e checou os armários, fazendo a mesma bagunça do quarto. Não demorou tanto pra encontrar os fósforos.
Procurou a lata de álcool. A ironia maior estava em ser a cozinha de sua própria casa e nem ele mesmo saber onde estavam as coisas mais básicas. Revirou todos os armários, sobre e sob a pia, quando encontrou o álcool. Girou o corpo e olhou em volta, obrigou-se a correr. Passou pelo corredor eufórico. Em uma das mãos segurava o revólver, na outra segurava os fósforos e o líquido inflamável. Atravessou se arrastando nas paredes quando perdia o equilibro. Outra vez foi obrigado a cruzar pela entrada da sala de estar, onde viu o maldito monstro natalino se levantando. A bala sequer estourara seus miolos. Evan ignorou a imagem e aumentou os passos. Passou pela porta da frente e enxergou seu pai gritando eufórico no celular, provavelmente pedindo ajuda. Chris estava sentado na calçada, a perna estancada, mas ainda deixando-o desorientado devido à perda de sangue. Stacy estava o seu lado – todos juntos e agrupados, dando segurança uns aos outros. Quando ela o viu, seus olhos brilharam; seu pai deu outro berro, suplicando por ajuda imediata. Evan pulou os degraus da varanda e superou toda a extensão que levava à calçada.
O garoto não perdeu tempo fazendo perguntas ou tecendo diálogos. Trocou o livro pelo revólver, prendendo a arma na cintura. Segurou o livro e teve um rápido momento de reflexão. Finalmente estava terminado. A vida de duas pessoas (Mike e Kate), pagas em função daquela brincadeirinha de mal gosto, enfim seriam justiçadas. Evan trincou os dentes e jogou o livro na neve acumulada. Não hesitou ao abrir a lata e espremer o líquido para fora, molhando a capa e o conteúdo do livro. Despejou toda a quantidade existente na lata e a jogou fora, com determinação inflamando-o os olhos. Chris e Stacy observaram a cena, igualmente vitoriosos, sabendo que aquele seria um fim definitivo dado ao pesadelo que vinham sofrendo.
Para Evan o significado era bem mais profundo. Ninguém jamais viria a entender o tamanho de sua culpa, mas o que mais o perturbava eram as lembranças de todos os pesadelos. O cheiro vívido do sangue que inebriava seu nariz; os gritos de terror e a visão das inúmeras mortes. O encontro com o menino também estava incluindo em tais memórias, bem como o castigo e sacrifício das chamas. Por mais que tal noite viesse a ser lembrada com temor por seu pai, Chris e Stacy, para Evan, teria um significado bem maior, que jamais seria compreendido. Talvez fosse sua punição ter de carregar o peso das lembranças ruins e da sensação da morte atormentando-o todas as noites pelos próximos anos de sua vida; assim como a sensação concreta do fogo, fazendo-o entender o real significado da vida. Ele acendeu o fósforo e viu a pequena quantidade de fogo acender a ponta avermelhada do palito. A identificação pessoal de Evan era intensa, pois conhecia o fogo melhor do que ninguém, e agora, seu amigo papai Noel deveria sentir o mesmo.
Krampus cruzou a porta com a arma colorida de sangue na mão direita. Ele berrou, mostrando sua fúria. Todos ali se assustaram, com exceção de Evan, que trocou um olhar iminente com o demônio. Papai Noel perdeu a voz quando viu a minúscula forma de calor com o garoto. Esticou a mão para tentar impedir de fazê-lo aquilo, mas já era tarde. O monstro berrou suplicante, uma vez mais. Evan jogou o fósforo.
Quando a combustão iniciou, queimando a capa e encolhendo as folhas, todos os olhares presentes – exceto do monstro – se iluminaram com chamas que iam além das físicas. Uma fagulha crescente de esperança ganhava vida em seus peitos. Mesmo o pai de Chris que não sabia o porquê de incendiar o livro, também se entregava ao clima congênito do momento. O fogo crescia e crepitava nas páginas, soltando fracos estalos, como se queimasse a mais pura das madeiras. O gelo ao redor derretia e deslizava pela calçada, caindo na vala e se perdendo no caminho de esgoto mais próximo. Já Evan mordia os lábios, com os punhos fechados ele encarava o livro. Observou as folhas se converterem em pequenos pedaços de brasa, misturando-se à neve que caía. O fogo era mais forte, naquele momento. Nada poderia vencê-lo.
O garoto olhou para Krampus. O monstro continuava parado, de braço esticado, perplexo com a cena. Pouco a pouco o fogo consumia o livro, juntamente com o feitiço que dera início àquele pesadelo de natal. Ele queimou, incendiou, exatamente como quando tinha levado Evan de volta à vida. Os segundos se arrastaram, todos olhavam esperançosos e apreensivos.
Dez segundos. Vinte. Trinta segundos. Quarenta e cinco. Um minuto.
Chris abriu a boca, fraco e pálido. Suas mãos tremiam. Olhou para Evan e engoliu em seco.
- E-Evan... Evan... Pirralho maluco...
O pai do garoto e Stacy estavam igualmente assustados.
O fogo havia consumido todo o livro, reduzindo-o a um amontado de brasa.
Evan soltou a caixa de fósforos, deixando-os se espalharem pelo chão frio. Seus olhos fitavam a criatura em pé na porta de sua casa. Era um homem gordo e alto, vestindo roupas vermelhas e portando uma barba longa e encardida que escondia um grisalho branco feito a neve. Seu nome era Krampus, mais conhecido como Papai Noel. E mais importante que isso:
- Eu sei... – O garoto respondeu com a voz fraca – Ele ainda está vivo.

Chris atirou-se sobre os fósforos. Pegou três ou quatro deles e acendeu na lateral da caixa. Os palitos brilharam, ele os lançou no livro já queimado, mas as chamas não cresceram. O monstro continuava ali, de pé, soltando uma risadinha gutural e sádica, divertindo-se com o teatrinho desfarelado que aquelas crianças faziam. Nada o deteria. Outro livro poderia ser escrito em uma nova língua e com o mesmo feitiço que, na próxima temporada, seria recitado por uma nova criança carente e desiludida. Evan não era o primeiro, tampouco seria o último. O próprio Krampus dar-se-ia ao trabalho de talhar um novo livro confeccionado com a carcaça de um dos tantos embrulhos que guardava para si. Na próxima estação e no próximo natal, o ritual se repetiria. Às vezes isso não acontecia e o feitiço caía no esquecimento por anos, levando Krampus a uma existência de tédio e desprovida de sangue, mas cedo ou tarde uma criança fervorosa sempre fazia o pedido. Era isso o que movimentava a tradição cristã do Natal. Era isso o que alimentava o demônio.
- Não pode ser, não pode ser! Isso é impossível...
Chris se arrastava sobre a neve enquanto Evan e seu pai tentavam puxá-lo. Stacy outra vez entrara em um estado perplexo para fazer qualquer coisa. Krampus começou a andar com um ar vitorioso, divertindo-se demais com o plano falho daquelas pessoas. É claro que a risada escondia apenas a irritação por ver sua criança obediente descumprir o acordo ao tentar por fim – com fogo – nos pedidos que fizera. Aquilo era um compromisso do qual humano algum havia escapado, durante toda a existência do demônio. Não seria Evan a primeira criança a se dar bem na tentativa de voltar atrás. Pessoalmente, Papai Noel estava demasiadamente decepcionado com aquele garoto – que antes lhe parecia tão admirável e disciplinado. Agora, no entanto, ele mereceria todo o castigo por ter queimado o pequeno e disfarçado pacto. Seja lá o que tivera ocorrido para voltar à vida, Krampus se esforçaria para levar o garoto aos campos obscuros da morte; além disso, colocaria todos que se aproximassem em seus sacos de couro. Quando a comemoração pelo nascimento da criança sagrada terminasse, o demônio abandonaria outro livro pelo mundo, permitindo que suas promessas fossem disseminadas através dos anos terrenos que estariam por vir. Enquanto aguardasse por novos pedidos, estaria se divertindo com suas novas crianças – infringindo seus corpos, degustando de seus órgãos, rompendo suas inocências e bebendo do sangue.
- Levanta! – Evan puxou o outro pelo braço com a ajuda do pai.
- Eu chamei ajuda, eles já devem estar chegando.
- Não! Nós temos que sair daqui!
- Não!
Evan assistiu Krampus se aproximar demais. Chris ainda resistia no chão, seu pai já desistia da ideia e o puxava pela camisa, obrigando-o a deixar o garoto com a perna ferida ali. Mas o nerd não fugiria, não mais. Puxou o revólver da cintura e apontou na direção da cabeça do papai Noel. Afastou-se de forma grosseira do pai, tomando distância de Chris e de Stacy. Krampus ficou parado, observava o cano do revólver. Ainda continuava a sorrir.
- É a mim que você quer. Deixo-os fora disso.
- Não é mais um pedido que eu possa atender, sinto muito, criança. Eles fazem parte do menú que a mim foi requisitado, todos os três. Você não ser uma criança sincera, mas eu sou o Papai Noel, e como tal, cumpro com minhas promessas, hohohoho.
- E quem disse que foi um pedido? – Evan balbuciou com as mãos tremendo.
A insulta foi o estopim para o bom velhinho que inclinou-se em uma posição de ataque e avançou na direção de Chris. Agarrou o garoto pela perna machucada e o levantou no ar, arremessando-o para o lado. O rapaz parecia um fantoche inanimado nas mãos de Krampus, indo parar num amontoado de neve. Por sorte sua queda foi amortecida, mas não menos aliviada. Ele saiu rolando como uma bolinha de neve trotando de um desfiladeiro; girou de diversas formas, arrastando o rosto pela superfície gelada. Quando o corpo finalmente entrou em inércia, com a barriga para cima, Chris segurou a perna e sentiu que ela não estava mais no lugar – não literalmente, já que havia deslocado bem na altura do fêmur. Foi quando começou a berrar e cuspir palavrões entre as lágrimas de dor.
Um “hohohoho” novamente ecoou pelo ambiente. Evan apertou as mãos entre o revólver, mas ambos sabiam – tanto agressor quanto vítima – que o disparo não teria efeito algum. Krampus aproveitou-se da oportunidade para ameaçar um salto sobre o pai de Evan, mas quando dobrou os joelhos para fazê-lo, foi interrompido por uma sonoridade irritante que anunciou-se a uma quadra dali. Ele olhou naquela direção e se deteve quando as sirenes o impediram de atacar outra vez. Então caminhou para trás, mantendo-se na defensiva. Evan seguiu o olhar de Krampus e enxergou luzes azuis e vermelhas piscando ao fundo da rua e da noite deserta. Chris permanecia gritando, berrando a mais profunda dor – garotos como ele não conheciam o real significado de resistência e sacrifício, o que levou Evan a pensar se ele aguentaria queimar na fogueira da vida.
O demônio fez uso da arma outra vez, cortando o ar horizontalmente na altura da cabeça de Evan em uma jogada de baseball sangrenta, na qual Strikes não eram permitidos – quantas tentativas de acabar com a raça daquela criança já tinham falhado, em uma só noite? Evan foi mais esperto e seus reflexos instantaneamente acionados. As duas pontas de metal na extremidade cilíndrica passaram a poucos centímetros da bochecha do nerd, ele cambaleou para trás e apoiou as costas no carro.
- Chega de brincadeiras! Estou farto e você vai pagar pela desobediência. Você é o próximo, Evan! Eu vou te castigar!
Aos ouvidos de Evan, as palavras eram extremamente cafonas, mas igualmente perigosas e amedrontadoras. Respirou forte e ofegante com imensas lufadas de vapor escapando entre os lábios, a arma tremendo e ousando disparar outro tiro. Sentiu o veículo ganhar vida e o motor cortar o som das palavras de Krampus. Quando o garoto olhou em volta, não encontrou Stacy, dando-se conta de que fora ela quem acabava de dar partida no carro. Também procurou o pai e ele ainda estava ao seu lado, perplexo e sem reações aparentes. As luzes vermelhas juntamente com as sirenes se aproximaram. Pela primeira vez naquela noite, Evan pôde enxergar um traço de dúvida nos olhos de Krampus, como se medisse quais as ações mais sensatas – ou psicopatas – a serem tomadas.
A ambulância dobrou a rua e todos olharam para o veículo. O garoto deu um empurrão no pai e apontou na direção de Chris.
- Fica com ele, pai! Acompanhe-o até o hospital e, eu estou implorando, não fique sozinho!  Esteja sempre perto de alguém, quanto mais pessoas em um lugar, menores serão as chances de Krampus aparecer!
A buzina do carro berrou, ecoando por toda a rua. O monstro observava ao diálogo, bufando e acuado pelo som das sirenes, lembrando um gato assustado. O garoto olhou para o veículo e enxergou Stacy acenando com desespero. Ela persistia pressionando a buzina. Krampus levou as mãos aos ouvidos e deu alguns passos para trás, atordoado pelo agudo som do carro e pelos gritos da ambulância.
- Mas e você, Evan? – O pai insistiu na pergunta.
- Entra no carro! – A menina implorou.
- O que você vai fazer?! – Continuou.
- Não fuja, criança! É uma ordem! Não fuja!
- Pelo amor de Deus, entra na merda desse carro agora!
Evan também estava atordoado, olhando para diversas as direções. Continuou apontando na direção de Chris e deu outro empurrão no próprio pai, fazendo tropeçar sobre a neve.
- Me obedece, pai! Vai, vai! Agora!
A ambulância chegou mais perto, já diminuindo a velocidade. Evan viu o pai correr sobre a neve totalmente relutante, olhava para trás com a dor de deixar o único filho para trás, mas certo de que era a única coisa a se fazer. Aquela era a primeira vez que coisas tão grandes eram confiadas ao garoto, foi aí que ele se deu conta disso. As pessoas ao seu redor pareciam acreditar nele com uma fé desmedida e kamikaze.
Vendo o pai obedecendo suas súplicas, Evan não hesitou em abrir a porta do carona e pular para dentro do carro. Stacy arrancou no mesmo instante, cantando pneus sobre o asfalto ligeiramente congelado. Evan abaixou o vidro e pôs a cabeça para fora, olhando a cena de terror que Stacy e ele acabavam de abandonar. Mesmo com o carro ganhando distância, ele pôde ver a ambulância estacionar barulhenta diante de sua casa com alguns paramédicos descendo e correndo em direção ao seu pai e a Chris. Ironicamente, alguns vizinhos começavam a mostrar os rostos, saindo das portas e casas, curiosos em saber qual a razão de tanta confusão – eles nunca estavam presentes quando realmente se precisava. Ele pôde respirar aliviado, enfim por saber que uma parte do terror havia chegado ao fim. A atitude que o demônio assumiu lhe soou estranha, mas totalmente benéfica: o berrar das sirenes chamava a atenção, o que parecia incomodá-lo. Logo Evan concluiu o quanto mesmo um monstro apreciava discrição. Caso estivesse ao redor de muitas pessoas, Krampus não poderia agir. Talvez dependesse de certo número de curiosos, o que fez lembrar que ele não se incomodara em matar Mike na frente de sua família. “Eram poucas pessoas comparadas à quantidade de vizinhos, curiosos, paramédicos e policiais que tomariam o lugar”, se pensasse assim, Evan poderia tranquilizar-se mais, pois as vidas de Chris e de seu pai já estavam salvas. Agora só falta mais uma: Stacy.
Uma sombra gorda e grande insistia acompanhá-los ao longo da rua, atravessando os jardins de casas e arrebentando tudo o que havia pelo caminho (caixas de correio, enfeites de natal, bonecos de neve, pequenas cercas e algumas varandas). Movia-se com destreza e habilidade, sustentando nas mãos um objeto longo e mortal; era um borrão avermelhado contrastando na neve branca. Deixava para trás um rastro bem fraco de sangue, vindo de todos os ataques que fizera até então. Evan trincou os dentes e voltou para dentro do carro, segurando-se firme enquanto Stacy pisava no acelerador, rompendo todos os limites de velocidade e desenhando curvas fechadas e perigosas. Em dados momentos ela subia as calçadas, também destruindo uma porção de coisas à frente e esparramando latas de lixo pelos gramados cheios de neve e pelo meio da rua. Evan fechou a janela. Gemeu ao sentir o corte nas costas, mal se lembrava dos ferimentos, como se a dor física fosse apenas um empecilho irrelevante.
- Ele está atrás de nós, não é? – Ela perguntou nervosa e com os olhos escuros vidrados à frente.
O garoto não respondeu.
- Ele está atrás de nós?? – Berrou, exigindo uma resposta.
Outra vez, Evan não respondeu para impedir que o nervosismo da garota aumentasse. Do jeito que ela dirigia, ele começava a temer por uma morte através de acidente ao invés das mãos de Krampus. O carro derrapou novamente pelo asfalto, entrou em uma curva e seguiu em linha reta.
- Por Deus! Você sabe dirigir?!
Ela o olhou e finalmente abriu um sorriso divertido, parecendo a Stacy livre de demônios antigos que ele sempre conheceu. A expressão se desfez rapidamente e ela voltou ao desespero de antes, mostrando-se confusa e abalada por rir em uma situação daquelas.
- Estou fazendo o meu melhor, droga! – Gritou.
Evan olhou pelo retrovisor ao seu lado, já não conseguindo avistar sinais de Krampus. Olhou para o revólver em sua mão e sentiu um peso deveras esmagador. Não era correto uma pessoa como ele utilizar determinado tipo de arma, mesmo que isso protegesse a vida das pessoas que estavam perto, na atual situação. Stacy percebeu o devaneio do garoto, já se tranquilizando. Também olhou pelo espelho retrovisor e nada viu.
- O que vamos fazer? – Forçou a voz para obrigar a trazê-lo de volta dos amargos pensamentos. Isso servia para ela também.
- Eu não sei. – Ele suspirou, abalado por uma coisa que pareceu incomodá-lo naquela pergunta – Você não deveria vir comigo, nem ficar perto de mim. Por que não dirige até o hospital e fica em segurança, também?
- Como você pode saber disso? – Questionou, a voz embargada e trêmula – Como pode concluir que seu pai e Chris estarão a salvo?
- É só um palpite forte. Você viu a reação dele. – Olhou pelo retrovisor novamente – Krampus não se atreveria a...
- Que porra, Evan?! – Ela o cortou, olhando-o com indignação – Você está falando como Chris. Com a mesma certeza que o fogo dele “queima tudo”. Não adiantou tanto, não foi?! Seu lindo papai Noel ainda está vivo. Sabe-se lá se podemos matá-lo. Eu só quero que você tivesse um pouco menos de calma! – Ela enxugou uma lágrima com as costas das mãos.
- Desculpe...
- Cala a boca. – Exigiu, evitando olhar para o garoto – Eu juro que você morreu. Juro que o vi morrer e depois...
Seja lá o que tenha acontecido, você voltou assim: confiante e determinado, totalmente indiferente”, Evan completou mentalmente, já que Stacy não conseguiu terminar. O abalo da memória era imenso demais para fazê-la concluir a frase. Ele não mencionara o fato de toda sua viagem onírica e estava decidido a não compartilhar com ninguém, mas era verdade que o modo como deveria tratar as coisas mudara desde sua “volta”. Havia um Evan antes e depois daquelas visões: o primeiro sempre estivera fugindo, de certo modo; o segundo desejava correr a um fim solucionável, onde mais sangue não seria derramado.
- Você tocou fogo na merda do livro e nada aconteceu! – Ela continuou, dirigindo em meio às ruas quase desertas e esbranquiçadas.
Do fogo ao fogo.
- Talvez... – Ele colocou uma mão na cabeça como alguém que tenta aliviar uma enxaqueca – Talvez Chris não estivesse errado.
Abriu um olhar claro, um tanto entusiasmado. As ideias começaram a se juntar na cabeça num plano muito fácil e simples, clareando as soluções postas à sua frente. Quem sabe o plano de ataque desde o começo estivesse certo, mas apenas fora executado no lugar e no alvo errado? Chris poderia ser um amontoado de músculos e um crápula humano, mas naquela noite de véspera de Natal, ele conseguira sua redenção de forma impecável. A ideia do fogo, inicialmente, partira dele, e mais tarde todo seu sacrifício foi o que salvou o pai de Evan. Sejam as quase póstumas visões do garoto reais ou não, havia um sentido muito explicativo por trás dela, como se seu subconsciente estivesse falando diretamente por trás da imagem de uma antiga vítima de Krampus. A sugestão de Chris talvez fosse o elemento que fizera surgir a solução entregue pelo menino ruivo, assim servindo de catalisador para as conclusões óbvias: o fogo queima tudo, incendiar o livro significava apenas eliminar o feitiço e não o executor dos pedidos.
- Do que você tá falando? – Ela fez uma curva, rodando pela cidade mantendo o carro sempre em movimento. Já havia reduzido a velocidade.
Era uma chance que deveria ser testada. Ele não entraria em detalhes sobre como concluíra tal hipótese.
- Eu queimei apenas o livro, o que significa que consegui dar fim apenas na história contada e no feitiço que... eu sei lá, no feitiço que invocou Krampus. Stacy, eu queimei apenas o livro e as palavras das quais ele trazia consigo. Mas eu já havia pronunciado e já havia feito os pedidos.
- Ele disse que você não poderia fugir e nem desfazer o que desejou. – Ela pareceu entender, mesmo com um semblante duvidoso. – Mas o que isso significa?
- Significa que há uma chance de...
Evan não finalizou as palavras.
Um forte impacto acometeu o veículo, fazendo com que Stacy gritasse devido ao susto. O carro derrapou para a direita, subindo a calçada e depois seguindo a um cruzamento. O semáforo estava fechado para a passagem deles, mas por sorte pareciam ser os únicos a dirigir por ali. Ironia ou não, a cidade estava estranhamente deserta naquela noite. O veículo atravessou a encruzilhada de asfalto, derrapando e rodopiando como um peão de criança. Os dois seguravam onde podiam; a garota gritava desesperada, sem muita experiência diante do volante. Também não sabia o que causara o impacto, mas as batidas ressoavam através do automóvel.
Quando o carro finalmente parou, atravessado horizontalmente na travessa – agora de frente para a rua que antes cortava o cruzamento do qual Stacy dirigia -, os impactos se intensificaram. Os dois ainda se recuperavam do susto ao perceberam que os estrondos fortes vinham da parte superior do veículo, havendo alguém lá em cima que pisoteava a lataria na intenção de perfurá-la com os golpes.
- Acelera! Acelera! – Evan gritou, apontando para frente.
Stacy não hesitou e enfiou os dois pés no acelerador, arrastando o atrito dos pneus pela superfície gelada da pista. Os sons ecoavam por onde passavam – tanto pneus cantando quanto o ataque do bom velhinho -, provavelmente chamando a atenção de famílias que aguardavam em suas casas a chegada do natal. O carro cruzava ruas e cruzamentos feito uma bala, o que provavelmente não daria tempo às pessoas de ver o que realmente acontecia. Mas Evan imaginava uma cena muito transparente em sua cabeça: um papai Noel grande e bizarro sobre o carro, batendo sua arma feito um martelo de 100 kg. Os impactos continuavam. Tanto ele como Stacy deslizaram nos bancos, diminuindo seus corpos e mantendo as cabeças abaixo do nível normal. A lataria começava a ser amassada para o lado de dentro, as batidas frenéticas tinham um ritmo intenso. Krampus não cansaria até romper o metal e puxar a primeira pessoa que a abertura permitisse.
O caminho começava a afunilar diante de Stacy e um canteiro central se aproximava. Atrás dele, um conjunto de árvores desnudas de folhas e compensada com enfeites e brilhos, piscavam e dançavam através da escuridão noturna; a neve que caía do céu, também atingida pelas luzes, pareciam confetes coloridos agitando uma festa macabra com poucos convidados. A entrada de um estacionamento se abria por onde a rua afunilava, havia também um caminho que cortava horizontalmente o término do canteiro central, indicando que eles acabavam de chegar ao fim da rua e, pior que isso, que a curva era fechada e estreita demais. Evan arregalou os olhos. Não tinham outra escolha a não ser passar direto pela entrada do estacionamento – o espaço à frente era todo cercado por um muro alto, com exceção da abertura livre. Ali ficava o bosque denso da cidade.
- Ah meu Deus! – Stacy gritou. O desespero começando a subir por suas mãos trêmulas. O carro ziguezagueava pela rua, mostrando a indecisão da garota sobre seguir pelo estacionamento a céu aberto ou fazer a curva que, provavelmente, os faria capotar ou se chocar direto contra o muro alto do bosque. 
Não havia outra saída a julgar pela velocidade do carro.
- Vai direto! – Evan gritou.
Aquela era a única saída. Stacy controlou o volante e passou pela entrada.
O espaço aberto era extenso, oferecendo vagas – de ambos os lados – para no mínimo cinquenta carros. O muro circundava todo o bosque que, além de agir como entretenimento na cidade, também sustentava a responsabilidade como uma área de preservação ambiental, já que ali não era uma capital grande ou importante. As vagas dos carros distribuíam-se em linha reta – uma à frente da entrada dos diversos caminhos através do bosque e a outra sob os mantos da sombra do muro. No final do amplo espaço, uma construção servia como o ponto de monitoramento central dos guardas e da administração, além de manter uma enfermaria e um mapa do bosque. Depois do pequeno prédio, apenas a imensidão de árvores retorcidas e nuas obscureciam o ambiente. Ele era o ponto final e provavelmente não havia ninguém de serviço àquela noite. Sem pessoas por perto, Krampus estaria livre para atacar e completaria seu sonho de Natal. Evan praguejou por não dirigir o carro, graças a Stacy os dois acabaram de parar num ambiente desprovido de vidas ou testemunhas. Entraram literalmente na arena do demônio.
O carro passou pelo estacionamento em direção ao prédio. A garota não precisou de ordens para pisar no freio, apesar de estarem no mínimo duzentos metros distantes da construção. O veículo deslizou por algum tempo antes de parar bem no centro, os dois passageiros com olhos arregalados e ofegantes. As batidas continuaram no teto do carro até que uma abertura foi feita. Evan olhou para cima e enxergou uma mão deformada – gorda e com garras afiadas – rasgar a lataria e puxá-la como folha de papel. Stacy entrou em desespero e bruscamente engatou a ré, fazendo com que Krampus rolasse para frente e se segurasse sobre o capô. Agora os dois encaravam um rosto três vezes mais assustador, sob uma pele acinzentada – ou talvez fosse apenas a noite escura. Os olhos pareciam mais vermelhos, a gosma preta caía através dos vapores de ar que saíam pela boca e pelo nariz. A arma estava presa à cintura pelo cinto, lembrando a espada assassina de um samurai gordo e pervertido. Enquanto a garota gritava e dirigia o carro (ela sequer olhava para trás, já estava de olhos fechados para não ter de encarar o monstro), papai Noel cravava uma das mãos sobre a lateral do veículo para segurar o próprio corpo e a outra para socar a vidraça. O punho fechado descia com força, formando um círculo no vidro e ramificando pequenas e crescentes rachaduras através do centro dos golpes. Evan assistia a tudo sem saber o que fazer. As marteladas com a mão ficavam mais intensas, a vidraça já embaçava e não resistiria por tanto tempo.
- Meu Deus! – Stacy acelerava, guiando o carro de ré em direção ao muro.
O garoto olhou para trás e espantou-se quando viu a barreira de tijolos se aproximar. Foi quando não teve outra escolha a não ser puxar o freio de mão e obrigar o carro a parar outra vez, agora mais estupidamente que antes. Krampus foi jogado para frente, mas conseguiu se segurar a ponto de não ser projetado em direção ao chão. Ele olhou para os dois passageiros do carro e cravou a outra mão sobre a lataria, arrastou os pés e ignorou a vidraça quase totalmente destruída, voltando rapidamente para cima, engatinhando como uma aranha gorda e ligeira. Com o veículo inerte, outro ataque começou: papai Noel projetava o braço para o interior do carro pela abertura que havia feito. Sua mão suja e monstruosa agarrou o rosto de Stacy, encaixando perfeitamente a ponto de abafar seus gritos; puxou-a para cima, ela se debateu e agarrou o braço dele na vã tentativa de liberdade. A abertura feita cabia apenas o braço do monstro, mas ele tentava puxá-la mesmo assim, e a obrigaria a passar pelo buraco, espremida e esmagada - Evan não quis imaginar a cena. A única coisa que oferecia resistência diante do ataque do demônio era o fato do corpo da garota estar preso ao cinto de segurança, o que a impedia de ser puxada para cima violentamente. Por outro lado, as tentativas não deixavam de ser menos macabras: Stacy ainda esperneava com os pés sem sucesso tentando alcançar o pedal do acelerador.
Evan então puxou o revólver e encostou o cano da arma na altura da abertura, pressionando-o contra o ombro do demônio. Ele girou o rosto de lado para se proteger e fez o disparo. Uma rajada de sangue inundou o interior do veículo e o monstro despejou um grito que ecoou por toda a noite de inverno. O aperto sobre o rosto da garota se desfez e ele retirou o braço, gemendo de dor e surpreendido pelo ataque, embora permanecesse sobre o carro. Stacy arquejava, procurando oxigênio para os pulmões e extasiada pelo odor que a palma da mão de Krampus continha. O garoto desprendeu o cinto de segurava que prendia seu corpo e o de Stacy a tempo de ver a mão de Krampus – agora a esquerda – projetar-se novamente através da abertura. Assim, ele se abaixou e obrigou Stacy a fazer o mesmo, esticou o braço e abriu a porta que ficava ao lado dela.
- Sai do carro! – Ele falou fraco e abafado, de modo que apenas ela escutasse.
- Eu não posso, eu...
Evan não aguentaria mais teimosias que pusessem a vida dela em risco, afinal ele estava lutando para recompor as falhas adolescentes e infantis que havia cometido ao ler aquele livro e invocar o demônio do natal. Foi quando desistiu da ideia de tentar convencê-la com palavras e a empurrou para fora, fazendo com que Stacy caísse de lado sobre o chão. A atitude foi um tanto quanto bruta, mas totalmente necessária. Ela o olhou confusa e perplexa, sem entender os planos dele.
Papai Noel ouviu o som abafado de um corpo caindo e viu Stacy sobre o chão. Seja lá qual fosse o plano do nerd, tinha acabado de proporcionar outra vítima ao monstro. Quando o demônio decidiu desistir do ataque e puxar a mão de volta, Evan saltou sobre o banco do motorista e agarrou-se a ele, envolvendo todo o corpo ao braço da criatura. Os dois tentaram lutar: Krampus puxava o próprio braço e o garoto empregava todo o peso do corpo para impedi-lo. Nos segundos que a lutava progrediu, Stacy se afastou, arrastando-se encolhida pelo chão, abismada pela cena que assistia. A porta continuava aberta, Evan viu a garota distante e aparentemente segura. Engoliu em seco e fechou os olhos, manteve o braço do monstro preso a si com o lado esquerdo do corpo, desfez o freio de mão e engatou a primeira marcha com a mão direita, dando movimento ao carro. Manteve o veículo em linha reta sem encostar-se ao volante, pisando fundo no acelerador e forçando Krampus a permanecer preso pela abertura que ele mesmo fizera.
Evan agora sentia o fedor que a criatura exalava. Cheirava a carne podre, sangue e banheiro de restaurante à beira de estrada. Manteve-se firme, prendendo a respiração ao máximo, sentindo o vento frio entrar pela porta que logo se fechou automaticamente devido ao movimento progressivo do veículo. Ele ganhou velocidade, alcançando os 30 km/h. Krampus debatia-se, tentando dobrar o braço e usando o cotovelo para golpear o garoto. Mas a luta seguiu frenética, nenhum dos lados se dava por vencido. Evan passou a segunda marcha e, ao enxergar a proximidade do prédio à frente do carro, usou a mão livre para novamente passar o cinto de segurança em volta do corpo. Ao prendê-lo, sentiu-se fadado a fazer um segundo sacrifício àquela noite: não pela sua própria vida, como atirar-se ao fogo; o que estava prestes a fazer, agora, era pelo bem de todas as pessoas a quem tinha causado aquele problema, como uma forma de perdão aos que haviam sobrevivido e redenção aos que perderam a vida – Mike e Kate.
O carro ultrapassou os 60 km/h quando Evan decidiu que era hora de soltá-lo. Mas o plano agora definia-se perfeitamente em sua cabeça: o garoto tirou o pé do acelerador e pisou no freio, ao fazê-lo, também soltou o braço de Krampus. O monstro foi jogado para frente devido à parada e deslizou sobre o capô. Estavam a pouquíssimos metros da parede de concreto do pequeno prédio, quando o motorista voltou a pressionar com todo o ímpeto o pedal do acelerador. Papai Noel deslizou sobre a lataria do motor tentando agarrar-se com as unhas, conseguiu prendê-las sobre o capô, de modo que suas pernas foram sugadas e arrastadas para baixo. Manteve-se firme, gritando e praguejando o garoto. Quando o veículo ganhou velocidade suficiente, Evan tirou as mãos do volante e protegeu o rosto.
Veio o impacto.
A força do choque fez com que a frente do veículo fosse esmagada contra o prédio. A velocidade não foi grande a ponto de fazê-lo atravessar a parede, de modo que ao bater, a traseira do automóvel subiu alguns metros acima e depois desabou sobre o chão. O som do impacto ecoou pelo bosque duas vezes mais forte que os gritos de Krampus ecoaram há poucos segundos, ao levar um tiro no braço. O para-brisa – antes já danificado – se espatifou instantaneamente, espirrando fragmentos sobre o rosto de Evan e pelos antebraços que usava como proteção. O airbag foi ativado, aliviando a violência. Na realidade, o motor do carro, no momento do choque, funcionou como uma sanfona, absorvendo grande parte da força. E, claro, havia Ele, o monstro que tentara se segurar: Papai Noel foi totalmente esmagado da cintura para baixo, já que seu tronco estivera o tempo todo sobre o capô.
Stacy observou à cena sem acreditar no que seus olhos viam. Levantou-se atordoada, reunindo forças nas pernas e no peito para continuar. Tudo o que enxergava era a carcaça de um carro colidido à parede, inteiramente imprensado e destruído. Uma fina fumaça saía do motor; alguns pneus retorcidos continuavam a girar, perdendo pouco a pouco a rotação enquanto o silêncio da noite voltava a afogar os personagens do acidente. Stacy balbuciava o nome de Evan como uma oração, implorando a Deus que ele estivesse vivo. Ainda não conseguia entender o motivo de tal sacrifício e o porquê ele parecera determinado demais a por um fim naquilo, mesmo que sua vida fosse oferecida como moeda de troca. Aproximou-se lentamente, cruzando em estado de choque todo o espaço do estacionamento que o carro atravessou. O que mais a afligia era a ausência de qualquer ruído; qualquer gemido seria o suficiente, desde que fosse Evan a sinalizar um sopro de vida. Caminhou, arrastou-se. Quanto mais próximo chegava, mais o desespero ganhava forças. Por duas vezes ela julgara tê-lo perdido naquela tão fatídica e estranha véspera de Natal: primeiro fora o tiro de Chris e depois... Depois fora o modo como aterrissou no chão, após o golpe do monstro.
De repente, o pedido da garota pareceu ser atendido: houve um gemido, seguido de algum palavrão fraco.
Evan abriu os olhos, sentindo dores por todo o corpo. O pescoço doía, precisando de massagem por no mínimo um mês inteiro. Ele conseguiu mexer os braços, começando os movimentos pela ponta dos dedos. Estavam caídos e necessitou erguê-los para retirar o airbag da cara. As articulações queimavam, embora o corpo estivesse adormecido e dolorido ao mesmo tempo. Sentia que a pele dos braços também ardia em vários pontos diferentes, sentindo frágeis filetes de sangue escorrendo dos pequenos e diversos cortes.  Pestanejou por alguns segundos, tentando recobrar a visão embaçada. O para-brisa não estava mais lá, apenas uma imensa abertura separava a cabine do motorista do capô onde Papai Noel estava de bruços com o rosto pra baixo. O demônio sequer se mexia, também imprensado contra a parede. Evan duvidava se aquilo poderia dar fim na criatura. Decidiu então soltar o cinto de seguranças – sim, as propagandas eram sinceras quando diziam que o equipamento poderia salvar vidas -, deixou a cabeça descansada no apoio do banco e respirou fundo, mal acreditando na insanidade de seus atos.
- Evan?
Ele virou para olhar na direção da voz. Stacy estava a poucos metros dali, olhando-o incrédula.
O garoto sorriu e abriu os lábios para responder, quando tentou fazê-lo, uma imensa mão precipitou-se sobre a lateral direita de seu rosto e rasgou-o com as afiadas unhas, desenhando riscos da testa até o maxilar. Apesar de não tão profundos, a pele se desfez e deu lugar a quatro rastros progressivos e crescentes de sangue. Evan berrou e levou as mãos ao rosto, sentindo-as ensanguentadas. Stacy deu um pulo pra trás, igualmente aterrorizada. Krampus voltou a se debater, movendo apenas a cabeça e os braços como um animal descontrolado, também gritava e ousava outros ataques, mas Evan esticou as costas para longe das mãos da criatura, ficando protegido por apenas três ou cinco centímetros. Ainda segurando o rosto martirizado, ele procurou o regulador do assento e forçou o corpo para trás, fazendo com que o banco se afastasse das investidas do demônio. Papai Noel não conseguia se esticar além da posição que estava, apenas o para-choque e a parede do prédio eram os elementos que o mantinham ali. De sua garganta saía um chiado estranho, quase animalesco, os olhos se intensificavam no vermelho e da boca um ar moribundo era exalado. Evan, totalmente desesperado sem saber se era o sangue que prejudicava a visão direita ou se o olho havia pulado fora. Sentia a ardência na pele e os cortes salientes em alto relevo. O sangue não era tão intenso como o corte no supercílio ou a bala no ombro, mas o fato de ter a face desfigurada e ter sido cegado pelas garras do demônio o afligia a níveis dantescos. Enxugou o sangue e sentiu o coração se tranquilizar – um pouco – ao notar que conseguia enxergar. Olhou paras os lados, tentando se esquivar dos ataques mais fervorosos e deu de cara com o revólver de Chris, cintilante e um pouco abaixo do banco do carona.
Stacy começou a gritar para que Evan saísse o quanto antes dali e arriscou se aproximar, mas por ordens do garoto, ela voltou. O veículo balançava devido às movimentações de Krampus e o bom velhinho agora não parecia tão bom assim: roupas rasgadas, pele dos braços à mostra, exibindo uma tonalidade anômala e acinzentada, totalmente enrugada e cheia de feridas e cicatrizes; decerto o rosto se deformava a cada segundo, como se a imagem humana fosse apenas uma máscara física para esconder sua verdadeira forma; os cabelos encardidos e grisalhos estavam maiores, bem como a barba; os dentes afiados e pontiagudos trincavam com um som agudo, lembrando trituradores de lixo metálico dentro de fábricas. Viu quando Evan esticou-se sobre o banco do carona, tentou esticar as mãos, mas não obteve êxito. Foi aí que o monstro pareceu se lembrar da arma presa à cintura. Retirou a bengala e com um movimento rápido de mão ativou as duas lâminas na ponta. Esticou-se para cravar um dos lados na costa de Evan, mas foi interrompido pelo grito de aviso da garota, que fez garoto se virar no mesmo segundo. Antes que Krampus pudesse açoitá-lo com a bengala, Evan já tinha girado sobre o banco e apontou o revólver em sua direção. Atingiu-o com um tiro que passou raspando a lateral do rosto, próximo ao olho esquerdo, massacrando também parte da orelha. O monstro ainda sentia dor, desistindo do ataque e recolhendo a mão com a arma. Esperneou com outro grito, Evan estava ofegante, sem acreditar no que acabara de fazer.
Aproveitando o momento de dor da criatura, ele saiu pelo lado da porta mais próxima, jogando-se ao chão. Pelas contas, havia somente um tiro. Arrastou-se para longe do carro, inalou um cheiro forte deslizando pelo solo gélido, notando que a gasolina caía no chão com um gotejar contínuo e crescente. As pernas fracas vacilavam nas tentativas em se manter de pé. Pouco a pouco, ganhou distância do carro e do papai Noel. Stacy correu até ele e ajoelhou, pondo as mãos no seu rosto, sem saber como reagir diante de tamanha brutalidade. Mas o garoto nerd não choramingou ou reclamou, fitou-a com um olhar de alívio e sorriu.
Krampus continuava gritando, tentando empurrar o carro e sair dali.
- Eu preciso de ajuda... – Sussurrou com a voz fraca.
- Não, não, não! Você fica aqui. Vamos chamar a polícia!
- Não vai adiantar, pelo menos não esse tipo de ajuda. – Apoiou-se nos ombros dela e se levantou. Pôs-se de pé com dificuldade, sem saber como ainda conseguia ficar vivo. – Me deixa, por favor.
Foi o pedido mais sincero às vésperas de Natal.
Stacy percebeu então que não poderia impedi-lo. Ela esteve fugindo a noite toda, enquanto ele fizera exatamente o contrário. Via em seus olhos verdes uma responsabilidade latente em resolver o que tinha começado. Desde o momento em que se submetera ao ridículo ao tentar avisar Chris e Mike; desde o momento em que contara a ela toda sua história maluca sobre pesadelos e profecias (o modo como descrevera perfeitamente o dia em que Stacy descobrira em qual vagina Chris andava enfiando o pau); o jeito que se sacrificara, levantando da queda, superando um tiro e todos aqueles ferimentos adversos. Se precisava morrer fazendo aquilo, Stacy percebeu que Evan iria até o fim. Por esse motivo ela apenas assentiu e o viu caminhar de volta ao carro, dando a volta pelo outro lado.
Ele parou ao lado do motor, Krampus movendo a bengala como uma espada amadora, já não tendo toda a habilidade de antes, lembrando um fracassado implorando para vencer e descrente da própria derrota. O garoto olhou o revólver entre as mãos, pôs o tambor para fora e confirmou a contagem de balas: apenas uma. Suspirou e encarou o demônio. A partir daí, a atitude que tomou surpreendeu até mesmo o monstro: guardou a arma na cintura e subiu sobre o carro, esquivando-se das tentativas de ataque falhas do demônio. Como papai Noel estava de peito para baixo, não conseguia mover o pescoço ou os braços para tentar um ataque, o máximo que pôde fazer foi continuar se debatendo, descrente sobre a submissão que sofria perante sua mais desobediente criança. Evan respirou fundo, mantendo as pernas afastadas e entre elas, o tronco gordo e largo de Krampus. Ele inclinou as costas para baixo com dificuldades, sentindo dores agudas em umas cinco regiões e, num rápido mover de mãos, tomou a bengala sem que o próprio papai Noel esperasse ou resistisse.
Pela primeira – e última - vez, o nerd segurava aquela arma que tanto estivera em seus pesadelos como uma tormenta sem fim. Sustentou o objeto, totalmente vislumbrado com a demanda de força que emanava para seu corpo. Seus olhos poderiam ter brilhado e, por uma fração de segundos, a ganância pelo poder supremo e sobrenatural talvez tivesse cruzado seu caráter e infectado de forma fatal. No entanto, Evan nutria dentro de si um compromisso, selado desde que seu corpo físico e sua alma intangível foram, juntos, engolidos pelo fogo. A justiça por todas as centenas de pessoas que fizeram seus pedidos antes dele, agora estava em suas mãos, bem como a vingança por todos os “presentes” que foram parar naqueles sacos imundos. Relembrou quando o rosto indiferente do menino ruivo ganhou um traço de vida.
Girou as mãos através do prolongamento da arma, movendo em direções diferentes e para lados internos (a mão direita para o lado esquerdo e a mão esquerda para o lado direito). A arma trincou e os dois metais na extremidade sumiram, voltando para o interior da bengala. O funcionamento era simples e nada de sobrenatural havia nisso. Krampus ouviu o som das lâminas e se debateu. Ainda enrolou um dos braços em um dos pés de Evan, mas o garoto não perdeu o controle, tampouco sentiu-se ameaçado. Ergueu a arma cilíndrica e moveu as mãos no sentido contrário, fazendo com que as lâminas se revelassem novamente. Ele sorriu com o canto dos lábios. Girou uma vez mais e fez que elas se escondessem, Papai Noel então se debateu pela última vez. O garoto desceu a bengala com força, enfiando-a pelas costas de Krampus e sentindo-a ultrapassar algum órgão de funcionamento vital; o sangue começou a transbordar, o demônio pronunciava palavras desconexas, tentando movimentar os braços e se afogando no próprio sangue e dor. Mas não estava terminado: ele tinha a arma entre as mãos, sentindo a palpitação do órgão ecoar pela extremidade da bengala. Suas lâminas estavam guardadas.
Evan disse entredentes, determinado:
- Feliz Natal, Papai Noel!
Ele girou as mãos no sentido aberto, acionando os dois metais e fazendo com que eles saltassem para fora. Quando o barulho metálico – que se assemelhava ao impacto de uma espada na outra – ecoou abafado dentro do corpo de Krampus, Evan sentiu que algo ali dentro havia estourado, rasgando – ao que parecia – o coração do demônio de dentro para fora. A criatura suspirou mais profundamente e parou de se debater.
O nerd retirou as mãos da arma, respirando fundo. A bengala estava cravada de pé e fixa no corpo do demônio. Quando deu por si, Stacy o olhava não com uma expressão de terror, mas de orgulho – porque se ela fosse inflamada pelo sentimento de coragem e estivesse em seu lugar, faria a mesma coisa. Ela sorriu para ele, agora realmente crédula de que o pesadelo tinha chegado ao fim. Ela se aproximou e estendeu a mão, ajudando-o a descer do capô. Os dois se afastaram do carro, o garoto se sustentando nos ombros dela.
Evan então parou. Algo ainda o incomodava.
- O que foi? – Perguntou confusa, temendo pela expressão perdida pairando no rosto do rapaz.
Ele a olhou fundo, mas distante demais do mundo em que habitavam. Ao voltar à realidade, virou de costas, obrigando-a a fazer o mesmo. Ficaram diante do carro. Evan enxergou um líquido crescente derramado sob as rodas traseiras. Retirou o revólver da cintura e engatilhou, mirando naquela direção.
- “Do fogo ao fogo”.
Atirou.
A bala riscou o chão e acendeu o líquido inflamável, dando vida às chamas que teriam um significado diferente na vida daquele garoto a partir dali. O fogo cresceu e ganhou volume. Os dois adolescentes se afastaram o suficiente para ter assento vip diante do espetáculo. Sentaram-se no chão, próximos ao muro, assistiram de longe as chamas consumirem o carro e, consequentemente, o corpo de Krampus. Daquela vez o monstro não reagiu, tampouco pareceu incomodado com o calor. Aos poucos o cheiro de carne queimada infestou o ambiente, mas já não parecia tão incômodo assim. A bengala derreteu pouco a pouco, caindo de lado quando o cadáver do monstro já havia fritado. Três explosões seguiram, espalhando faíscas dançantes que se misturavam à neve que caía do céu escuro. Logo, aquilo mais parecia uma lembrança a Evan: pela primeira vez na vida, ele soube que nem sempre a dor ou agonia são coisas ruins; de vez em quando, são elas que o acordam e o relembram que ainda há motivos para viver. A dor significava vida.
- Eu espero que o seguro cubra isso. – Ele comentou, fraco e sorridente, ao ouvido de Stacy.
A garota sorriu tranquila e divertida. Aconchegou-se ao corpo dele, tentando mantê-lo aquecido.
Ao longe, os sons de sirenes já rompiam o limiar de suas audições, sinalizando que não ficariam tanto tempo ali e que logo estariam em um hospital, comemorando o fato de permanecerem vivos em pleno Natal.
Stacy suspirou fundo, olhando-o com dúvida.
- Evan?
- Sim?
Ela pestanejou, mas prosseguiu:
- O quê exatamente você pediu quando leu aquele livro?
Ele fechou os olhos, embaraçado por ter de responder àquilo.
- Achei que já tivesse ficado claro.
- Mais ou menos. – Continuava a fitá-lo – Mas quero ouvir claramente de você. Diz.  
- Isso é uma ordem? – Reabriu os olhos, ironizando.
- Não. É o meu pedido.
O garoto suspirou, dando de ombros e sentindo a dor do tiro; o arder do corte na costa, os arranhões pelo rosto, mais o ferimento no supercílio. Como ainda estou vivo?!
- Eu pedi... – Ele começou a fitá-la, sabendo que era o mínimo que devia a ela, agora – Eu pedi você. Pedi você como presente de Natal.
Ela o encarou sério.
- E por isso olha o que aconteceu!
- Eu sei. Desculpa...
Stacy começou a rir, divertindo-se com a cara de culpado que ele assumiu.
- Bem... – Ela concluiu, aproximando e pareando o rosto ao dele, aproximou seus lábios. Sentiram a respiração um do outro aquecendo o que sobrara do frio cortante daquele natal. – No final, acho que deu tudo certo: você ganhou o seu presente. Feliz Natal, Evan.
Eles não sabiam, mas o último minuto do dia vinte e quatro de dezembro acabara de terminar.
Era meia noite, era natal.
Os dois se beijaram. 

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