15 de março de 2014

Ela e mais ninguém



Quando a garota começou a abrir a boca, os ouvidos dele se fecharam. A cabeça balançava estampando um sorriso falso, extremamente aberto, entendedor, mas no fundo tedioso. Ele odiava aquele tipo específico de mulher – aquelas que tentavam impressioná-lo. A menina falou sobre enredos bem bolados, sobre como desenvolvera algumas personagens, sobre como fizera todo o processo de pesquisa e desenvolvimento de época, cenário e relações. E, ah, ela falava bonito. Ele odiava isso, odiava gente que o achava um gênio e por isso se forçava a falar da forma mais culta e erudita. No fundo, o que ele gostava era de verbos não conjugados corretamente ao usar-se o “tu”, de forma proposital e preguiçosa, afinal, era o que ele fazia. Ele amava as gírias, ele amava a espontaneidade, ele amava o “caralho”, “puta que o pariu”, “que merda”, saídos descontraidamente da boca de uma mulher. Por isso estava desligado para aquela garota, por isso odiava quando elas vinham até ele tentando parecer interessantes, sem se darem conta que era o que as tornava profundamente desinteressantes. Na realidade, ele amava somente três tipos de mulheres: as normais, que poderiam ou não venerá-lo, mas não caíam aos seus pés como baba-ovos bajuladoras; as que tinham o mesmo ofício que ele, porém mantinham conversas sobre desenvolvimento de tramas e personagens por puro gosto, não para impressionar, não para dizer “ei, eu quero que você veja que eu também gosto do ato da escrita, portanto tenha interesse em mim, me note”; e, claro, a garota que guardara para si, a garota pela qual ele andara tantas milhas, a garota pela qual tornara-se um homem, embora solitário e devasso, porém ainda assim um homem. Ele gostava Dela. E o por quê? Ela odiava o que fazia, ela não era a melhor no ofício, julgava-se um lixo, uma fraude, mas pouco sabia o quanto ele a amava por isso; ele a amava pelas linhas bem montadas sem intenção, amava o modo como ela parecia sempre perdida em seu mundo distorcido entre cores fluorescentes, o amor pelos animais, pela natureza e o uso exacerbado de drogas relaxantes e alucinógenas. Ele amava o olhar Dela diante do mundo e o modo como conseguia passar tudo para as linhas de parágrafos que ele nunca fora capaz de reproduzir, somente de admirar e concluir: “ela é única”.
Ela é única.
E de repente, sempre recordava seus olhos puxados que insistia dizer lembrarem os de uma asiática, embora ela negasse veementemente a afirmação. Ele amava o modo como ela escrevia sem se dar valor, sem notar o profundo e magnífico dom que possuía. O "teu dom?”, foi o que em uma época distante ele a dedicara, o que em uma época distante fora sua verdadeira percepção sobre o quão era inferior à ela, mesmo tendo um número mais alto de admiradores, seguidores e bajuladores. Ela era o que ele adorava chamar de “talento escondido”, um talento que o mundo jamais descobriria, porque existiam fraudes lindas demais para ofuscar verdades como ela. Pois, ora, assim como ela julgava-se um lixo, ele também julgava-se uma fraude linda, um falso talento que o público amava e que ofuscava o brilho de joias verdadeiramente raras como ela. Como ela, suas linhas, sua realidade entorpecida, inigualavelmente perfeita e linda. Ela sim tinha um dom, ela sim tinha a admiração dele, não a garota que agora o enchia com ladainhas bajuladoras para tentar impressionar. Não, ele não gostava daquilo, ele não gostava de farsas, ele gostava de pessoas como ela.
Ela, ela e mais ninguém.


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