9 de fevereiro de 2017

Baseado em loiras reais



Minha cabeça rodava levemente quando ela se aproximou de mim, na calçada. Um leve chuvisco caía e observei-a atravessar a rua com passos rápidos, animada e agitada demais, com a garrafa de Skol Sense na mão. Traguei meu cigarro e confesso que olhei para cima, na direção da lâmpada do poste, com uma patética atitude de quem se mostra indiferente. Eu não fazia a mínima ideia do porquê ela havia atravessado, já que desse lado da rua estava só eu e os chuviscos. Sua sapatilha era de um verde claro, quase branco, daquelas tonalidades que certamente tinham um nome, mas só as mulheres eram capazes de definir – as aulas de semântica e pragmática serviram-me, pelo menos, para comprovar a histórica conclusão de que homens não eram lá muito bons com cores. A calça jeans escura de cintura alta e a camisa vermelha de botões, com as mangas até os pulsos, realçavam as mãos de pele clara. Os cabelos eram loiros e caíam lisos pelas costas.
Pouco se importou com o chuvisco e veio até o meu lado. Afastei-me para que a fumaça não fosse até ela.
- Tão novinho e já fuma?
- Quê?
- Tão novinho e já tá fumando.
- Ah. – E ri, meio indiferente, embora algo gritasse dentro de mim. Por. Que. Está. Falando. Comigo? – É, moça, acontece.
Talvez eu tivesse até mais idade que ela, embora nossos corpos não aparentassem. A nível de embriaguez, era ela quem mostrava-se desde cedo mais animada e propensa a dancinhas com a amiga e os cinco homens que as rodeavam.
O que está fazendo aqui?
Continuei fumando e talvez por irritante desconcerto, segurei a alça da mochila com a outra mão.
- Até que horas vocês vão ficar por aqui? – Ela perguntou, sorrindo demais.
Julguei ser o efeito do álcool. Aliás, loira alguma em sã consciência atravessaria a rua para falar comigo, senão fosse o efeito do álcool. Era o preço das duas caipirinhas e das infinitas Senses, imaginei.
- Estamos quase indo. – Sorri de volta, menos indiferente e mais espontâneo, igualmente levado pelo efeito do álcool que fazia minha cabeça rodar.
- O que tu e teu amigo fazem aqui?
- Enchendo a cara, moça. Alguém tem que sextar depois da semana fodida.
Ela gargalhou brevemente, escandalosa demais.
- Vocês estudam?
- Sim, senhora. Ele faz cinema – apontei na direção do meu bom e velho amigo, que ficou sozinho com o copo de cerveja quando atravessei para foder a garganta – e tá quase se formando.
- E tu?
- Letras português. – Mordi o lábio, pensando na minha atual situação. – Longe demais pra aguentar, perto demais pra desistir. Por isso eu encho a cara.
- Ahhh, que bonitinhos!
- É, o cineasta e o escritor fodido.
- Mas quem faz letras não vira professor?
- A gente tem que quebrar as regras, moça.
E então ela riu e me estendeu a mão.
- XXXXXXX, prazer.
- Ah, prazer, XXXXXXX. Felipe.
- Me diz duas coisas? – Ela olhou no relógio caro que tinha no pulso.
-  Claro.
- O que tu costumas escrever? Poesias?
- Poesias? – “Poemas”, poderia eu tê-la corrigido sorrateiramente, sem que necessariamente percebesse. Era um hábito escroto que os acadêmicos de literatura, metidos a sabichões, geralmente tinham e que me irritavam a ponto de matar cada um deles mentalmente, todo dia útil da semana, mas por sorte eu não era um babaquinha sabichão e peçonhento da literatura. – Ah, não, não. Não é pra tanto, isso é pros fortes.
- Escreve o quê?
- Contos sobre amor e morte, crônicas de dor, sofrimento, chifres e acidez desgraçada.
- Uaaaaau – ela fez, mostrando alegre interesse. – Como é que funciona isso?
- É uma maldição fodida, XXXXXXX. Nem queira saber. – Mais um trago, dei alguns petelecos para as cinzas caírem.
- Tá, então se eu te pedisse pra escrever sobre... sobre... – E olhou em volta, expressando um esforço mental que não era de todo verdadeiro. Ela tinha as sobrancelhas grossas que sobressaltavam bem o castanho dos olhos. Mordi o lábio com um sorriso de ponta enquanto a esperava concluir. Quando encontrou o que procurava, voltou a me olhar com um fervor que, sim, eu voltava a me convencer: era efeito do álcool. Loira alguma atravessaria a rua ou me olharia com aquele fervor se não fosse o álcool. – Sobre mim. O que seria preciso?
- Ah. – E gargalhei da mesma forma que ela fizera há um instante. Duas cachaças de Jambu e quatro cervejas e minha cabeça já rodava justificavelmente. – Depende, XXXXXXX. Tu queres a resposta habitual ou a resposta verdadeira?
- Quero as duas!
Nós rimos. Ela insistiu:
- Qual é a habitual?
- A habitual é que pra eu escrever sobre ti e sobre como atravessaste a rua pra, aparentemente, só falar comigo... Comigo, logo comigo...  A resposta habitual seria “um beijo”. Eu precisaria de um beijo teu pra escrever.
- Tu usas sempre essa resposta?
- Ah, é a habitual. Não que funcione sempre.
- Sei!
Nós rimos. Ela insistiu novamente:
- E qual é a verdadeira?
- A verdadeira?
- É, qual que é?
Do outro lado da rua, agora bebendo a quinta cerveja, meu amigo quase-inteiramente-cineasta mal parecia acreditar que a loira falava comigo. Atrás dele, eu via a amiga dela rindo e os caras em volta segurando copos de cervejas sem entender nada.
Nem mesmo eu entendia porra nenhuma do que acontecia.
- A verdadeira é que eu só preciso de um momento apenas, um único momento que valha a pena e que desperte qualquer coisa em mim, desde um sentimento mais idiota e romântico, até um de escárnio por causa do tiozinho que tá em volta de vocês duas desde cedo, mas não consegue desenvolver papo algum porque aquele bonitão ali tá em um assunto muito interessante com a tua amiga. O tiozinho é engraçado, ele é meio careca e penteia o cabelo pra frente e...
A loira começou a rir. Na realidade, ela gargalhava, mas agora não pelo efeito do álcool, e sim porque o cabelinho do tio era verdadeiramente digno de risada ou o modo como ele travava sempre na hora de avançar e no fim acabava ali, em volta, parado e concordando com o andamento das conversas alheias que não era capaz de penetrar.
- Ou eu precisaria do momento em que tu começaste a me olhar quando eu cheguei ali e fiquei me perguntando se aquela porra era verdade. – Balancei os ombros, fatídico.
- Poxa, tu precisas de um pouco mais de confian...
- Todo mundo fala isso. – Estalei os lábios. – Mas o que faria uma loira como tu, olhar pra um cara como eu?
- Ahhh, para!
- Parei. – Dei um peteleco na bagana de cigarro.
- Eu atravessei a rua, não atravessei?
- É verdade.
- Então!
Nós rimos. Dessa vez, eu continuei:
- Agora me diz, XXXXXXX. Qual era a segunda coisa que tinhas pra me perguntar?
- Ah, tá. A segunda coisa era: eu te olhei a noite inteira, garoto. Por que não fizeste nada?
- Quer saber a resposta habitual ou a verdadeira? – Tirei outro cigarro do bolso e pus na boca, rindo.
Ela riu e sinalizou com os dois dedos que mais uma vez, queria ambas.
- A habitual é que eu sou um frouxo, e dessa vez sempre funciona. Todas concordam. – Acendi o cigarro, traguei suavemente e deixei a fumaça escapar devagar entre os lábios. – A verdadeira é que, veja bem, vocês são três mulheres. Tu estiveste com a tua amiga a noite inteira enquanto o bonitão conversava com ela e os outros quatros circulavam tu e a outra. – Ela prestava atenção com um sorrisinho de claro interesse. Balançava a cabeça positivamente enquanto eu apontava para o outro lado da rua e me sentia mal por ter abandonado meu bom amigo. – Esse, em si, já é um grande bloqueio. Na pior das hipóteses, eu sairia dali com um não gigante e seria uma piada para os tios e o bonitão. Acredite, de piadas eu já ando meio saturado. – Outro trago, outra risada. – E tem o Walter.
- Como sabe o nome dele?! – Questionou, espantada.
- Prestei atenção em algum momento que chamaste o nome dele. O Walter. Tipo, vocês estão todos bem vestidos e o Walter tá de uniforme. Eu diria que saíram da firma ou, sei lá, são funcionários públicos...?
- Uau, bela observação. – Bateu palminhas, animada.
- Firma?
- Funcionários públicos.
- Tá, beleza, viu? – Dei uma piscadela vitoriosa. – O Walter é um senhor de quase meia-idade que parece ainda ter tudo em cima e te circulou a noite inteira. Certo, vocês provavelmente são colegas de trabalho, mas estão bebendo, tu estavas animada demais e ele interessado demais. O Walter parece ter grana o suficiente pra pegar um táxi de volta pra casa, meu amigo e eu ali... voltaremos logo, por causa do ônibus.
- Tá me chamando de interesseira? – A voz vacilou.
- To falando sobre estabilidade e aparente maturidade. – Frisei, categórico. – Meu amigo e eu somos uns moleques comparados ao Walter, que esteve a noite inteira ao teu redor. Walter é vivido, aparentemente maduro, funcionário público e... Eu sei lá, eu certamente escolheria ele ao invés de um universitário fodido com cara de criança. – Outro trago e sorri, franco. – Você não parece o tipo de mulher que...
- Que...?
- Que atravessaria a rua por um cara como eu.
- Ah, não?
- Não.
Mas ela atravessou, palerma.
- Fui um idiota, né?
- Pra cacete.
Ao invés de virar e dar o fora dali, ela permaneceu de pé, olhando-me como se aquele fosse meu último oportuno momento de redenção. Peguei o recado. Eu ficava mais esperto com um pouco de álcool nas veias, talvez fizesse aflorar minha lua em Capricórnio.
- Mas pelo menos foi a resposta verdadeira, não a habitual. Fui sincero, desculpa. – Soltei a fumaça devagar. – É só que entre um homem e um menino, tu parecias o tipo que escolheria o homem.
- E vou escolher. É com o Walter que vou voltar agora à noite. – Ergueu as sobrancelhas, sugestiva e desafiadora. Era provocação naqueles olhos castanhos? – Mas por algum motivo idiota, seu babaca, eu atravessei a rua. Não se tocou disso?
- Me toquei. – Assenti, meio risonho. – Posso fazer uma pergunta, agora?
- Vai lá.
- Por que atravessou a rua?
- Porque eu já vou embora com a porra do homem maduro do Walter, mas queria vir aqui antes. Babaca.
- É o que todas dizem, moça.
Aí ela finalmente riu. Com um longo suspiro que denunciou a falsa carranca que queria manter, olhou para o relógio caro no pulso e me perguntou:
- Eu te dei um momento marcante pra escrever alguma coisa?
- Com toda a certeza. Mais que um momento.
- Melhor que um beijo?
- Eu não colocaria dessa forma, pera lá.
Nós rimos, ela inclinou o rosto e ordenou meio baixinho:
- Anota meu número.
- Sim, senhora. – Obedeci prontamente, anotando o número dela e quase não acreditando na merda inteira.
- E escreve sobre isso.
- Sobre tu?
- É, é. Sobre o tal momento que eu te dei, quero ver se é tão bom assim.
- Não mesmo, mas eu vou tentar. Quer que seja triste, doído, ácido ou...?
- Só seja legal e tenta ser menos babaca, babaquinha. – Gargalhou. – Hoje eu volto com o homem maduro, mas amanhã eu espero que tu fales comigo.  
- E aí a gente conversa sobre aquela outra resposta?
- Qual?
- A resposta habitual. A do beijo.
- A gente vê isso daí.
- Sim, senhora.
Ela sorriu, mas nenhum de nós arriscou um aperto de mão, abraço ou troca de beijos nas bochechas.
- Vou escrever e fazer que pareça mentira, só um texto idiota. Nem teu nome vou revelar. – Fiz uma pequena continência.
- Só escreve!
Ela continuou a rir com aquela gargalhada sincera sob efeito de álcool. Acenou na minha direção com um tchauzinho animado. Todos eles foram embora: o tiozinho do cabelo engraçado, o cara bonitão e o Walter ao lado dela, ambos em um táxi rumo a sabe-se lá aonde iriam.
Não dei asas à imaginação.
Acendi outro cigarro e voltei na direção do meu parceiro quase-inteiramente-cineasta. Ele bateu no meu ombro e sorriu, empolgado demais com o rumo dos fatos. Nove anos depois, parecíamos ainda aqueles dois nerds adolescentes que não acreditavam nas pequenas e improváveis circunstâncias que a vida nos pregava.
Bebemos a última cerveja e descemos, zonzos, a Manoel Barata numa chuvosa sexta-feira à noite em direção à Doca. Passamos por travestis nas esquinas e contamos com a sorte de não encontramos nossos queridos amigos malacos que brotavam sempre sorrateiramente das sombras. Então chegamos vivos à Doca. Ele apanhou um ônibus, já eu parei no Batistão e enchi o bucho de hambúguer, Coca-Cola zero e um prato gigantesco de babatas fritas. Talvez naquele momento XXXXXXX estivesse se divertindo ou talvez Walter nem fosse lá tão maduro ou interessante assim, mas de qualquer forma, enquanto mastigava, eu estava rindo.
No dia seguinte, fiz o combinado.
Enviei uma mensagem.
“Oioi, moça”, eu disse.
“Oiii, babaca”, ela respondeu.


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