3 de fevereiro de 2017

Grupo de apoio: sala C-3




Eles não me viam há semanas e exigiram minha presença em um momento não muito agradável, ainda assim, obedeci expressamente.
O tiozinho barrigudo da portaria foi o primeiro a me lançar um olhar estranho, uma ânsia desgraçada de perguntar o que havia acontecido misturada à diversão estranha que não entendi muito bem qual era, talvez pelo fato de eu aparentemente ser criança demais para aquilo. O nome dele era Patrício, vulgarmente chamado de “Seu Patrício”. Talvez até houvesse o “Seu” na identidade, ficava muito tentando a averiguar com uma simples perguntinha, mas sempre me contive atrás de um sorriso sem graça. Todas as moças que cruzavam a portaria sorriam para ele em função daquele aspecto de panda inofensivo, talvez pelas respeitosas brincadeiras que ele fazia com todas. Com os homens, era sempre amigável, porém um pouco mais sisudo. A mim, sempre direcionava um aceno de cabeça e notei que agora esteve tentado a me questionar o que era aquilo na minha cara, mas fingi que nada tinha de errado e fiz um comentário sobre “muita chuva, quase me afoguei lá fora”, que obrigou-o a sorrir e a responder qualquer resposta banal relacionada à chuva.
Então entrei no prédio. Cruzei pela senhorinha do café e pelas irmãs coroas do A-2, depois dei um olá ao cara com a cicatriz na sobrancelha, que estava sempre com alguma roupa ou acessório do Paysandu. Incrivelmente, apesar da camisa, era um cara legal. Incrivelmente. O que era raro. Subi as escadas, ignorei todos aqueles que não costumava conversar. Todos, sem exceções, olhavam espantados e curiosos para minha cara amassada. Ok. Eu abanava a mão e comentava que “viu a chuva lá fora? Quase me afoguei”. Eram educados demais para perguntar e eu esquivo demais para explicar. Subi mais um andar. Sala C-3. Obviamente, eu estava atrasado. Bati duas vezes e acenei pela janelinha antes de entrar. Denise tinha uma boca gigantesca e um sorriso tão grande quanto, mostrou-me os dentes brancos e bem cuidados e sinalizou para que eu entrasse. Muito bem, vamos lá. Entrei. Todos sorriram e se espantaram, nessa exata ordem de fatos. Parece que tudo aquilo era um tanto quanto incomum, como se pessoas não escorregassem em casa, como se pessoas não sofressem acidentes domésticos.
Mentira.
Procurei uma cadeira vaga, que por acaso estava do outro lado da roda e que me obrigou a passar pelo meio e pela frente de todos antes de procurar meu devido lugar. Aguilar já estava sem o gesso na perna, Joana sem as olheiras e somente Gustavo, de olhos azuis, é que tinha um recente curativo no pulso esquerdo. Foi o único que me olhou sem interesse, o único que aparentemente sabia que caras amassadas e olhos roxos eram normais nesse mundo insano de pessoas sem rumo. O único que nunca expressava coisa alguma, o que era ruim, aos olhos de gente como Denise. Gustavo era aquele que parecia sempre um centímetro à beira do abismo, o mais cauteloso dos casos.
- Ô, rapaz, o que aconteceu contigo? – Denise perguntou, sorridente, mas observadora. Qualquer resposta ou coisa esquisita e ela anotava na caderneta. Irritante.
Eu não aparecia há semanas na roda.
Não frequentava a universidade há dias.
Saía de casa há bem menos.  
E não por vergonha do supercílio inchado ou do olho levemente roxo.
Era apenas a boa e indisposta vontade de sempre, minha velha amiga.
 Escorreguei no banheiro.
 Humm. – Ela fez, circunspecta. – Meu Deus, menino, me conta como aconteceu isso...
 Escorregou? Rá-Rá-Rá. Isso tá com cara é de confusão. – O velho Roger comentou com aqueles dentes amarelos de cigarro. Aquele merdinha escroto e indiscreto podia morrer e eu nem sentiria falta.
 Pois é, precisava ver a outra garota... Opa... – e fingi um espasmo de surpresa e vergonha, abanando a mão e tentando me corrigir – O outro cara. Eu quis dizer “o outro cara”.
Todos riram.
Até o velho Roger riu.
Exceto as três feministas da roda. Certamente, em dois segundos problematizaram meu comentário ou talvez já assumissem que tudo precisava ser problematizado. Eu gostava das feministas, não traziam consigo as frescuras e preconceitos e cargas negativas e opiniões calcificadas que as não-feministas traziam. Elas até dividiam a conta do restaurante e pagavam suas próprias despesas, não se surpreendiam com caras bonitos em carros bonitos em cidades litorâneas bonitas de beiras bonitas de praias bonitas. Incríveis, maravilhosas. Porém nem sempre. Olhei para elas e tentei imitar o sorriso da Denise, mas mesmo com meu carisma e fofura, elas não expressaram a menor empatia. Talvez já estivessem me queimando mentalmente em praça pública. Era divertido. Dei de ombros. Sentei na cadeira.
 E então, como foi isso? – Denise insistiu. – Primeiro foi no banheiro, agora foi com outro cara.
 Uma garota. – Corrigi.
 O quê?
 É, o outro cara. – Voltei atrás, propositalmente confuso. – O outro cara. O banheiro.
 Ihhh, o outro cara tava no banheiro? – O velho Roger gritou, apontando na minha cara como se eu fosse uma bicha. Como se ser bicha fosse um crime.
Ele gargalhou.
Aquele Rá-rá-rá-rá estalado de uma rança nojenta na garganta, Deus quisesse que fosse um câncer crescendo. Fase 5. Terminal. Ninguém sentiria falta.
 É, me pegou. Ele tava no banheiro, o outro cara. – Apontei o dedo de volta, rindo com a animação forçada. – O outro cara. No banheiro. O negócio tava tão bom que escorreguei e me bati no chão. Pronto, a verdade.
Mentira.
Que se fodessem todos aqueles depressivos e suicidas e aquela terapeutazinha de caderneta implacável.
Por que eu estava ali?
Ah, sim.
 Vocês estão muito engraçadinhos hoje. Que tal me contar tudinho mais tarde?
 Ah, mas... – Dei de ombros. – Só escorreguei no banheiro. – E abanei as mãos.
 Sei. – Denise fez uma anotação na caderneta.
Irritante.
 Sei. – O velho Roger repetiu, encrenqueiro.
O câncer fazia sucumbir os melhores. Levou Swayzer, por que não o velho Roger?  
 Por onde tem andado, mocinho? – Denise insistiu.
 Por aí.
 O que tem feito, por que nos abandonou?
 Eu to aqui, ué. Senti saudades e apareci.
 Se eu não telefonasse para a sua mãe, né, espertinho? – Havia aquela delicadeza e falsa simpatia sempre por trás do largo sorriso.
Irritante.
 Andei dormindo, assistindo séries e escrevendo – “bebendo, fumando, fodendo e chorando”, acrescentei mentalmente.
 Ah, você escreveu! – E houve um burburinho de sentimentos mistos. Enquanto Roger desdenhava, as feministas continuavam a me queimar com os olhos, Aguilar sorriu com carinho e Joana bateu palminhas. Gustavo inclinou-se, como se aquilo fosse interessante. – Sobre o que escreveu?
 Uma garota que ao ser interrogada por um policial de uma cidadezinha isolada, conta sobre um grupo de caipiras que cultuam um deus-inseto ancestral. Ela quase é estuprada por algumas das criaturas-monstros-inseto quando o herói do conto aparece e acaba com toda a festa.
 Uau. – Ela forçou empolgação.
 Na verdade, é bem menos fantasioso e excitante que isso, embora seja... isso, basicamente. Mensagem de auto-estima e perseverança e tudo no final.
 Crianças. – O velho Roger suspirou.
Gustavo sorriu. Apoiava o rosto com as mãos sob o queixo. Eu só esperava que a pressão da cabeça não abrisse os pontos do pulso.
 Talvez eu até escreva sobre esse meu retorno aqui na roda. Ou sobre como escorreguei no banheiro com o outro cara.
Aí o velho Roger sorriu.
 Que ótimo saber disso! Se escrever sobre esse retorno, seria bom que mostrasse a todos nós.
 É, veremos. Talvez eu publique para todos verem.
E então mais murmurinhos de reações diversas, mas pareciam gostar da ideia.
Denise anotou alguma coisa com aqueles olhos investigadores, sorrateiros e dissimulados que só os terapeutas eram capazes de ter. O velho Roger sorriu, com o câncer que eu torcia para existir estalando com mais sonoridade. As feministas cruzaram os braços e reviraram os olhos, talvez àquela altura eu já tivesse virado churrasco na fogueira mental delas e já estivesse servido com farinha enquanto me mastigavam com desprezível prazer. Aguilar e Joana sorriam, eram os meus favoritos. Eu gostava deles. E tinha o Gustavo.
Alguma coisa me dizia que Gustavo seria o único propenso a divertir-se com esse tipo de irônica poesia que engolia a todos nós e da qual era a merda dessa vida.
Na próxima semana, haveria outra reunião da roda, sala C-3. Àquela altura, o roxo na minha cara já teria sumido, minha mãe saberia apenas do resultado de minhas desastrosas brigas de bar através de uma mensagem de texto da terapeuta irritante e fofoqueira e, em alguns dias, eu talvez até sentisse vontade de frequentar novamente as aulas na universidade. Talvez.
Eu cumpriria minha promessa. Publicaria para todos aqueles depressivos-suicidas apanharem o recado. E que o velho Roger morresse de câncer, definhando enquanto seu time de futebol perde de 5x0 numa noite chuvosa dessas de Fevereiro de quarta-feira Global de retrocesso mental e alienante.    
E que o Gustavo risse de tudo isso, pois era o único que realmente tinha e compreendia o bom, velho e negro senso de humor.
O Gustavo era o único que tinha estilo.


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