6 de fevereiro de 2017

Ela odeia Bukowski




Já faz um tempo que esses olhos castanhos pousam em mim de maneira turbulenta e ao mesmo tempo apática, não sei o que fazer.
Faço.
Refaço.
E me perco nos esforços.
Encontro raiva,
rancor,
a cólera escaldante de saber que nesse jogo as cartas não mais me são favoráveis.
Esquento o café preto sobre a pia, mesmo achando que a cafeteira já deu tudo de si: o botão vermelho continua aceso, mas o café já não está tão quente assim. Estou sentado sobre a mesa com as mãos cruzadas embaixo do queixo, encarando a cafeteira do mesmo modo que me encaro no espelho em alguns dias da semana, perguntando-me o que diabos aconteceu e o que farei agora. É um problema complexo esse, já que minha conta corrente e carteira andam um tanto quanto vazias e encarecidas de futuras esperanças.
Todos precisamos de café: eles, eu e você.
É então que ela desce as escadas, quase completamente vestida e com perfume exalando, porém com as Havaianas surradas enfiadas nos pés de longos e esbeltos dedinhos. Por sorte já estou quase inteiramente arrumado, mas isso não a impede de me despejar uma bronca daquelas que têm sido frequentes demais às seis e vinte e quatro da manhã, todas as manhãs, porque estou sempre fazendo algo errado: passando a roupa deveras amassada, enrolando dois minutos para levantar ou correndo aqui por baixo para prepará-la ou preocupado demais em fazê-la tomar café antes de sair. Em suma, estou sempre levando uma bronca e um coice por sempre atrasar nossa saída – por sempre atrasar qualquer mínimo detalhe em nossas vidas.
Por sempre te atrasar – nos mais complexos e pragmáticos sentidos da palavra.
Ela desce e me flagra com as mãos dobradas sob o queixo, divagando sobre o que diabos farei agora com a cafeteira que tem esquentado cada vez menos, como ela. É o que me faz lembrar, pela bronca que levo em seguida, que por mais vazias que minha conta corrente e carteira estejam, há sempre um modo de arrumar alguns trocados para situações emergenciais, como no caso da cafeteira, que pouco consegue esquentar com eficácia o nosso café da manhã. Apesar disso, nem todo o dinheiro do mundo consertaria o que realmente importa ser consertado. Levo uma típica bronca que começa com um “porra” bem eloquente aliado àquele olhar de decepção e irritação que ela tem me pousado com certa frequência e que eu, falho, tento sublimar. Meus sapatos já estão nos pés e meu cinto apertado. Só me falta a camisa, enquanto ela tem as havaianas surradas nos pés e o cabelo enrolado na toalha. Mais uma vez, o ânimo dela nem sequer amanheceu dos melhores, não que o meu sempre amanheça, mas não era a hipocrisia falando, era apenas o fato de me obrigar a saltar da cama com um empurrão no ombro, infelizmente não pelo celular despertando pela centésima vez. Tendia ela a odiar, inclusive, meu toque de despertador, embora fosse familiarmente parecido ao de seu celular. A diferença, claro, é que ela acorda de imediato, enquanto eu peço mais dois minutos – dois minutinhos. Então levanto da cadeira e ponho seu café na xícara, exprimindo aquele sorrisinho que anda cada vez mais desanimado, que sonha em demasiado aumentar os minutinhos de dois para cinco, de cinco para dez e de dez para sempre.
Engulo em seco, mas não com drama, embora os maxilares já se contraiam e os olhos marejem (patético). Engulo em seco, de uma forma que a saliva já me desce a garganta com um crescente gosto de substância biliar, liberada por esse sentimento pútrido de ingratidão do qual tem estragado meu bom humor das manhãs, sempre quando acho que ela vai me sorrir por servi-la o café (quase não mais) quente na mesa e tudo o que recebo de volta é um suspiro pesado e irritadiço. Em alguns minutos, quando ambos ajeitamos os botões de nossos respectivos uniformes, o mundo parece ter girado e ela agora é toda sorrisos. À essa altura, já fui longe demais no abismo e agora sou eu quem tem o matinal e estressante ânimo às migalhas. Aí ela reclama das minhas reações e eu contraio ainda mais os dentes, uns contra os outros, tentando não explodir dentro de um ônibus lotado. Abro um sorriso, mas não consigo olhá-la nos olhos, tento evitá-la por irritação severa ou talvez para evitar napalm, narizes sangrando e bombas atômicas – acho que o segundo caso.
Abro a mochila e prolongo nosso silêncio ao retirar de lá um livro do Bukowski. Eu só preciso de um conto sacana ou desastrado enquanto não abraçamos nossa rotina massacrante e diária. Eu só preciso relaxar um pouquinho, e juro, juro que tudo vai voltar ao normal e nem sequer tantos coices haverei de devolver na mesma moeda.
Mas ela não entende, e de certa forma eu não a culpo. Encara meu ato como um ofício de afronta, digníssima declaração de guerra. Cruza os braços e me diz que “eu não acredito que tu tá fazendo isso”. Fecho o livro ainda no terceiro parágrafo do conto. Tentava lê-lo em paz há semanas, mas aparentemente não possuía sorte nem paz suficiente.
Então eu lembro: desde o instante despertado até o último segundo de consciência antes do sono, ela repugnava uma porção de coisas que de mim partiam. Quando eu tentava consertar, quando eu tentava ser bom ou quando eu jogava tudo para o alto e entrava no jogo do bate-e-volta, ela igualmente me repugnava.
Então eu lembro: era, de fato, um oficial gesto de afronta.
Lembro agora que uma vez ela me disse, com aquela amável e corriqueira tonalidade de nojo, menosprezo e repulsa,
que odiava Bukowski.
Ora, não era de se surpreender.






Nenhum comentário:

Postar um comentário