Já faz um tempo que
esses olhos castanhos pousam em mim de maneira turbulenta e ao mesmo tempo
apática, não sei o que fazer.
Faço.
Refaço.
E me perco nos
esforços.
Encontro raiva,
rancor,
a cólera escaldante
de saber que nesse jogo as cartas não mais me são favoráveis.
Esquento o café
preto sobre a pia, mesmo achando que a cafeteira já deu tudo de si: o botão
vermelho continua aceso, mas o café já não está tão quente assim. Estou sentado
sobre a mesa com as mãos cruzadas embaixo do queixo, encarando a cafeteira do
mesmo modo que me encaro no espelho em alguns dias da semana, perguntando-me o
que diabos aconteceu e o que farei agora. É um problema complexo esse, já que
minha conta corrente e carteira andam um tanto quanto vazias e encarecidas de
futuras esperanças.
Todos precisamos de café: eles, eu e você.
É então que ela
desce as escadas, quase completamente vestida e com perfume exalando, porém com
as Havaianas surradas enfiadas nos pés de longos e esbeltos dedinhos. Por sorte
já estou quase inteiramente arrumado, mas isso não a impede de me despejar uma
bronca daquelas que têm sido frequentes demais às seis e vinte e quatro da
manhã, todas as manhãs, porque estou
sempre fazendo algo errado: passando a roupa deveras amassada, enrolando dois
minutos para levantar ou correndo aqui por baixo para prepará-la ou preocupado
demais em fazê-la tomar café antes de sair. Em suma, estou sempre levando uma
bronca e um coice por sempre atrasar nossa saída – por sempre atrasar qualquer
mínimo detalhe em nossas vidas.
Por sempre te atrasar – nos mais complexos e
pragmáticos sentidos da palavra.
Ela desce e me
flagra com as mãos dobradas sob o queixo, divagando sobre o que diabos farei
agora com a cafeteira que tem esquentado cada vez menos, como ela. É o que me
faz lembrar, pela bronca que levo em seguida, que por mais vazias que minha
conta corrente e carteira estejam, há sempre um modo de arrumar alguns trocados
para situações emergenciais, como no caso da cafeteira, que pouco consegue
esquentar com eficácia o nosso café da manhã. Apesar disso, nem todo o dinheiro
do mundo consertaria o que realmente importa ser consertado. Levo uma típica
bronca que começa com um “porra” bem
eloquente aliado àquele olhar de decepção e irritação que ela tem me pousado
com certa frequência e que eu, falho, tento sublimar. Meus sapatos já estão nos
pés e meu cinto apertado. Só me falta a camisa, enquanto ela tem as havaianas
surradas nos pés e o cabelo enrolado na toalha. Mais uma vez, o ânimo dela nem
sequer amanheceu dos melhores, não que o meu sempre amanheça, mas não era a
hipocrisia falando, era apenas o fato de me obrigar a saltar da cama com um
empurrão no ombro, infelizmente não pelo celular despertando pela centésima
vez. Tendia ela a odiar, inclusive, meu toque de despertador, embora fosse familiarmente
parecido ao de seu celular. A diferença, claro, é que ela acorda de imediato,
enquanto eu peço mais dois minutos – dois minutinhos. Então levanto da cadeira
e ponho seu café na xícara, exprimindo aquele sorrisinho que anda cada vez mais
desanimado, que sonha em demasiado aumentar os minutinhos de dois para cinco,
de cinco para dez e de dez para sempre.
Engulo em seco, mas
não com drama, embora os maxilares já se contraiam e os olhos marejem
(patético). Engulo em seco, de uma forma que a saliva já me desce a garganta
com um crescente gosto de substância biliar, liberada por esse sentimento
pútrido de ingratidão do qual tem estragado meu bom humor das manhãs, sempre
quando acho que ela vai me sorrir por servi-la o café (quase não mais) quente na mesa e tudo o que recebo de volta é um
suspiro pesado e irritadiço. Em alguns minutos, quando ambos ajeitamos os
botões de nossos respectivos uniformes, o mundo parece ter girado e ela agora é
toda sorrisos. À essa altura, já fui longe demais no abismo e agora sou eu quem
tem o matinal e estressante ânimo às migalhas. Aí ela reclama das minhas
reações e eu contraio ainda mais os dentes, uns contra os outros, tentando não
explodir dentro de um ônibus lotado. Abro um sorriso, mas não consigo olhá-la
nos olhos, tento evitá-la por irritação severa ou talvez para evitar napalm,
narizes sangrando e bombas atômicas – acho que o segundo caso.
Abro a mochila e
prolongo nosso silêncio ao retirar de lá um livro do Bukowski. Eu só preciso de
um conto sacana ou desastrado enquanto não abraçamos nossa rotina massacrante e
diária. Eu só preciso relaxar um pouquinho, e juro, juro que tudo vai voltar ao
normal e nem sequer tantos coices haverei de devolver na mesma moeda.
Mas ela não entende,
e de certa forma eu não a culpo. Encara meu ato como um ofício de afronta,
digníssima declaração de guerra. Cruza os braços e me diz que “eu não acredito que tu tá fazendo isso”.
Fecho o livro ainda no terceiro parágrafo do conto. Tentava lê-lo em paz há
semanas, mas aparentemente não possuía sorte nem paz suficiente.
Então eu lembro:
desde o instante despertado até o último segundo de consciência antes do sono,
ela repugnava uma porção de coisas que de mim partiam. Quando eu tentava
consertar, quando eu tentava ser bom ou quando eu jogava tudo para o alto e
entrava no jogo do bate-e-volta, ela igualmente me repugnava.
Então eu lembro:
era, de fato, um oficial gesto de afronta.
Lembro agora que uma
vez ela me disse, com aquela amável e corriqueira tonalidade de nojo,
menosprezo e repulsa,
que odiava Bukowski.
Ora, não era de se
surpreender.
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