19 de junho de 2011

MF2019 - #01

01.
Look Alive, Sunshine


Prólogo


9 de Novembro de 2019, UNIT SCARECROW, Distrito 5, Battery City

As chamas ainda se acendiam na sala de controles da unidade SCARECROW. A imensa e arrendondada sala tinha por suas paredes em volta todos os painés e computadores destruidos, e um por um eles explodiam e arremessavam consigo faíscas de fogo e estilhaços de vidro. O ambiente era iluminado pela luz constante de alerta, que, em tons de vermelho, anunciava a auto detonação em poucos minutos. A voz feminina berrava em um idioma oriental, mas não era preciso ser influente naquela língua para entender a essência de sua mensagem.  
No centro do lugar, quatro figuras olhavam atentamente para o brilhante objeto que irradiava luzes douradas e cada vez mais crescentes. Envolto por um sofisticado equipamento de sustentação e acoplado a um sistema cilindrico de material transparente, o monitor da máquina mostrava algo muito parecido a um relógio que em seus trinta pontos de carregamento, exibia um processo ainda inacabado. As luzes azuis do monitor anunciavam que apenas dezessete daqueles trinta pontos estavam completos. E eles precisavam estar completos antes da auto destruição do lugar. 

- Não vai dar tempo! – Jet Star gritou.
Ele revezava o olhar entre a parte superior da sala e o equipamento no centro, bem como os outros três. Sentado no chão e com Fun Ghoul entre os braços, Jet mantinha o rosto tenso e apreensivo. Um grande rastro de sangue descia do topo de sua cabeça e pela lateral esquerda do rosto, mas naquele momento tal detalhe pouco importava.
- Cala a boca, Jet. – Fun Ghoul resmungou baixo e com extremo esforço. Ao dizer tais palavras, uma vontade estúpida de vomitar algo subiu por sua garganta, mas tudo o que conseguiu pôr para fora foi uma pequena quantidade de sangue. Os cabelos negros cobriam-no a lateral do rosto, além da cicatriz ao lado do lábio e todos os ferimentos que se dispunham pelas bochechas, testa e envolta dos olhos. Mal conseguia enxergar naquelas condições, tudo parecia claro e forte demais, de modo que amaldiçoava o maldito explosivo que detonara diante de seu rosto há alguns minutos. Também sabia o quão pouco tempo lhe restava por conta de todos aqueles ferimentos, mas, assim como Jet Star, ele sabia que aquilo era apenas um detalhe irrelevante dali para frente. Dali a poucos minutos. – Você sempre foi um pé no saco com esse lance de otimismo. – Resmungou novamente, com um sorrisinho debochado e avermelhado devido ao sangue que banhava o interior de sua boca.
Jet estreitou os olhos na direção do amigo com uma expressão estranha ao ver o sangue saindo de sua boca. Engoliu em seco, e tentou ignorar a ideia da dor que o outro estava sentindo, embora tentasse não demonstrar aquilo.
- Cala a boca você! – Respondeu, com um meio sorrisinho no rosto e na intenção de consolar Fun Ghoul naquele momento.
Ele voltou a olhar para o equipamento e durante todo aquele tempo que se passara, apenas mais um ponto fora completado no contador. A voz feminina japonesa continuava a alertar a auto destruição. As luzes vermelhas continuavam a piscar. O tempo estava acabando.
- Parem! Os dois! – Party Poison repreendeu, olhando para eles com impaciência. – Mais parecem duas velhinhas esclerosadas brigando.
- E nós somos... – Fun Ghoul conseguiu dizer com dificuldade. 
- Cala a boca! – Party Poison repreendeu novamente, agora se aproximando do equipamento e pairando as mãos sobre ele como um curandeiro faria sobre um doente. O rosto também se mostrava com vários filetes de sangue descendo do topo da cabeça, diversos arranhões pelo queixo e pelas maçãs demonstravam que a batalha também não havia sido fácil para ele. Os cabelos vermelhos eram acentuados por todas as luzes de alerta. Ele aproximou a face ainda mais do equipamento e viu mais um ponto ser completado. Agora o processamento estava em 19, faltavam apenas 11 para a finalização. – Nós vamos esperar aqui, e guardar essa merda dos infernos. – Girou o corpo e apertou o revólver laser na mão direita. – Vamos guardar este lugar. – Repetiu, convencendo a si mesmo daquilo. – E esperar a finalização. Vamos esperar. – Havia firmeza na sua voz.
Saiu do centro e passou pelos dois no chão. Percebeu o quão moribundo o estado de Fun Ghoul se apresentava, e sabia que não restaria muito tempo a ele. Mais uma vez, os conhecidos Killjoys de Battery City contemplariam a excitação da morte, mas daquela vez não haveria chances de retorno. Era o último trabalho. A última missão.
Se distanciou do centro e seguiu em direção à uma das extremidades da sala, onde Kobra Kid fazia a guarda da porta. Pôs-se ao lado dele e segurou agora a arma com as duas mãos, fixou os olhos na porta e os manteve tensos. Ambos sabiam que a qualquer momento ela seria derrubada pelo lado de fora, e torciam para que isso não acontecesse até que o precesso estivesse completo.
- Está com medo? – Party Poison perguntou.
Kobra Kid mexeu a cabeça, negando tal sensação.
- Sabe o que vai ser de nós, daqui pra frente?
Ele assentiu.
Party Poison baixou os olhos. Sabia que aquela era a última vez que desejava que Kobra Kid pudesse falar, mas dava-se conta que seu silêncio era tudo o que os traziam paz e compreensão. Todos desabafavam com ele e então ficavam aliviados de seus problemas. Talvez, ser mudo naquelas situações representaria o único ponto de equilíbrio daqueles quatro.
- Fizemos o que era para ser feito. – Continuou a falar. – Certo ou – e muitas vezes foi o que mais fizemos – errado, é preciso. E nós vamos conseguir dest...
- Àbaixo à Better Living! – Fun Ghoul gritou vitorioso, e aquilo lhe exigiu um esforço tremendo e quase fatal.
Party Poison e Kobra Kid se sobressaltaram com a excitação de Fun Ghoul e olharam em sua direção. O espanto os pegou de surpresa ao constatar o largo sorriso em seu rosto, sobretudo a alegria explícita de Jet Star. Seguiram o olhar dos dois e mal acreditaram ao perceber de onde vinha toda aquela empolgação: o monitor exibia um contador quase cheio, de modo que o processo dera um salto de cinco pontos em menos de quinze segundos – o que antes levaria cerca de dez minutos.   
- Eu não acredito... – Party Poison sussurrou. Olhou para Kobra Kid e ambos compartilharam o mesmo ceticismo saudável.
Voltou então a caminhar em direção ao equipamento, e seus olhos brilhavam ao perceber que os pontos se enchiam com mais rapidez. Também olhou para cima, notando que o teto começava a se abrir e a luz do sol – que estava exatamente no alto do céu, alinhado quase que milagrosamente na direção central da sala – entrava ali eliminando o vermelho do alerta de auto destruição e trazendo aos quatro uma nova esperança: o precesso estava prestes a acontecer, e a guerra terminaria ali.
Poison se aproximou novamente e conforme sua esperança crescia, a pressão que fazia na arma diminuia. Ele chegou perto o suficiente para constar que pouco faltava, o monitor revelava um tempo menor de espera, o teto já completamente aberto releva um sol libertador e – dali a pouquíssimo tempo – impiedoso. Nesse intervalo de tempo,  tudo o que se mostrara como um “fim presumível e esperado” converteu-se numa surpresa ainda maior e desoladora.
Kobra Kid voltou a atenção na direção da porta, e apontou a arma numa reação instântanea de reflexo ao ver dois Draculoids tentando abrir a porta de vidro. Se pudesse, ou se tivesse voz suficiente para aquilo, daria o maior de seus gritos como forma de alarde, mas só dispunha de suas habilidades para impedir que houvesse invasores naquela sala. Nada poderia sair errado, não naquela última e fatídica tentativa. De repente, notou que mais um Draculoid surgiu no cenário lá fora e em seguida outro, e mais outro. Aos poucos eles chegavam, e exatamente como pragas de insetos estavam mais dispostos a tomar o lugar. Ele entãou jogou a arma no chão e pulou na direção da porta, colou as costas contra ela e forçou toda sua capacidade corporal na tentativa de impedir que eles entrassem.
Os gritos de alerta de Jet Star acometeram Party Poison num choque intenso. Ele se virou e ignorou o equipamento diante de si para contemplar a imagem de desespero de Kobra Kid tentando proteger a porta ao colocar todo o peso do corpo contra ela. Lá fora, os “reforços” chegavam num ritmo acelarado e tentavam derrubar e passar pela única entrada que dava acesso àquela sala. Era impossível vencer toda aquela quantidade de Draculoids que começava a forçar a porta com mais intensidade. Party Poison correu até lá, mas, antes de se posicionar ao lado de Kobra Kid, presenciou àquilo que jamais – nem em seus pesadelos mais reais – esperaria para aquele momento: Korse. Entre todos os rostos de Draculoids tentando entrar, apenas um se destacava dentre todos eles. E embora seu rosto estivesse da mesma maneira que os Killjoys – especialmente Party Poison – haviam destruido e desfigurado, Korse ainda olhava para dentro daquela sala com a mesma força e maldade de sempre.
Ele ainda estava vivo.
- Korse! – Jet Star gritou de novo. – Ainda está vivo! Está vivo!
- Aquele filho da puta... – Fun Ghoul disse baixo, com as forças já decaindo em direção à morte.
- Eu vou matar você... – Party Poison disse entredentes.
Lembrou de tudo o que passaram até ali: a luta contra a Better Living; as fugas; as milhares de tentativas de acabar com eles; a procura implacável pela sobrevivência naquele mundo pós-apocalíptico e pós-bomba. Como um filme que passava diante de seus olhos, não deixaria de ignorar o grande show quando morreram pela primeira vez ao resgatar a Garota das mãos da organização. E, mais que todas essas coisas, imaginou como seria o mundo ideal ao qual todos os oprimidos de Battery City sempre sonharam. Sabia que aquela missão estava em suas mãos, e nada, nada ou ninguém os impediria daquela vez.
- Viemos para foder. – Finalizou.
E antes que chegasse à porta, notou o brilho profundo e obscuramente maestral nos olhos de Korse. Ele estava sorrindo por trás daquela porta, e Party Poison só entendeu a razão disso ao perceber que ele acoplava algo na porta de vidro – um objeto redondo e mirabolante em todos os seus contadores e brilhos. Era um bomba.
- Kobra! – Gritou, gesticulando para que o outro saisse da porta.
A resposta que obteve o encheu de dor: Kobra Kid renegou o pedido, e prendeu-se ainda mais contra a porta. Lá atrás, Korse e todos os Draculoids se afastavam aos pulos e sob desespero. Party Poison estancou no chão, os olhos arregalados na direção de Kobra. Não estava assim tão perto dele, mas no fundo também sabia que não tinha tempo para se afastar – os contadores na bomba indicavam que ela fora programada para um tempo curto demais – de modo que também seria atingido pela explosão.
Nesse ínterim, Jet Star segurou Fun Ghoul mais firme entre os braços ao notar o amigo se desvenciliando de vida. Mas o motivo maior de sua agonia era perceber que o equipamento diante deles exibia seus últimos pontos restantes. Eram apenas 5, e dali em diante tudo estaria terminado... Isso é claro, caso Korse e os Draculoids não entrassem na sala, ou o sistema de auto destruição da unidade SCARECROW não terminasse sua contagem regressiva para a – precoce - morte.   
- Party!! – Jet Star gritou. – Vai terminar! Vai terminar! O equipamento vai ficar pronto! – O jeito como gritava não soava animador, mas sim desesperado e frenético. A euforia era visível no modo como ele estourava as cordas vocais. Party Poison era o único que sabia ativar o sistema final do equipamento. – Saia daí...
E apesar de todo o seu aviso, tudo foi em vão.
Poison teve apenas o aproveitamento de um milésimo de segundo para olhar na direção do equipamento e voltar a visualizar a bomba acoplada à porta. Em seguida, ouviu um som agudo emitido pelo armamento seguido da grande explosão, mandando tudo pelos ares – uma pequena parte da parede, a porta, e com ela, Kobra Kid. Os fragmentos do impacto voaram sobre ele, bem como as chamas provocadas. Sentiu o corpo viajar pelo espaço como se nada fosse a não ser um pequeno saco de areia.
Foi arremessado para o outro lado da sala, e ao cair, abriu os olhos com o máximo de força que reuniu – o que não era muito. Observou a imagem impotente de Jet Star e Fun Ghoul no chão, se protegendo da explosão – com sorte os dois não sofreram danos. Seus olhos varreram o lugar à procura de Kobra Kid, mas não conseguia encontrá-lo em parte alguma. Talvez seus pedaços estivessem espalhados por toda a sala. Tentou se erguer, forçou os braços contra o chão na tentativa frustrada de levantar o tronco, mas logo caiu. E logo depois forçou a visão para tentar convencer a mente que aquilo era uma ilusão – já que tal cena se repetira duas vezes antes daquela -, embora soubesse que estava totalmente errado.
Aos poucos – e exatamente como pragas – os Draculoids tomaram a sala feito uma epidemia congênita de baratas ou um câncer maligno. E na visão turva de Party Poison – aquilo o tragava para um passado muito recente, quando o próprio Korse e seus Draculoids venceram um duelo direto e sequestraram a Garota – ele podia notar aquela presença se aproximar com cautela e tranquilidade. Os passos ecoavam como a própria anunciação do fracasso e da derrota. Observou, pouco a pouco, aquele indivíduo se aproximar e parar diante dele. Abaixou-se e se apoiou na ponta dos pés, ficando visível diante dos olhos de Party Poison.
Era Korse. E ele sorria vitorioso. O mesmo sorriso presunçoso que completara a mente de Poison antes de ser morto da outra vez.
Eu morri uma vez. O próprio Korse me matou. E agora que voltei, agora que voltamos... Eu falhei... Nós falhamos... Nós...
Korse não desfez de seu rosto aquele sorriso. Sem delongas ou hesitações, ele encostou o cano de seu revólver laser contra a cabeça de Party Poison e sentiu a excitação por ter a oportunidade de matá-lo novamente, e do mesmo jeito. Ele prendeu o dedo no gatilho, e suspirou fundo. Escutou o alerta de auto destruição da unidade SCARECROW. Faltava tão pouco, mas ainda tinha tempo o suficiente para um último tiro.
No fim, os Killjoys decepcionavam Battery City e falhavam mais uma vez. No fim, os Killjoys perdiam.
Ele pressionou o dedo no gatilho e...
BUM.  
O disparo ecoou pela sala. Mas, dessa vez, não saiu da arma de Korse.

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