Piso aqui para mais uma criação ambígua,
dessas que farão mentes erradas concluírem certo e mentes certas concluírem
errado. Desço aqui para mais um produto dos olhos, que tangenciam uma existência
quase divina. Quase. Mas para homens
como eu, o perfeito e o divino estão mais próximos do qualquer senso comum de
ciência e concretude, a linha entre eles é tão tênue quanto um liso fio de
cabelo teu que eu desejo apalpar na ponta das mãos. Sabe, aquele mesmo fio de
cabelo que você deixou na minha cama naquele fim de tarde, correndo para sair
antes que minha mãe chegasse em casa. O teu perfume ficou encravado no travesseiro
e no lençol, teu hálito ficou pela minha boca, num tom sincero de despedida
que, no fundo, eu não sei se amanhã vai voltar. Eu deito nesta mesma cama em
que estivemos juntos, mesmo que por umas horas vadias, beirando a consumação da
carne – às vezes até acontece, às vezes não, afinal, ei, você tem um medo
imenso da minha genitora. Contemplo esse meu teto de forro claro, vagando entre
a curva evidente dos teus lábios, contemplando a delineação característica
deles e bolando mil apelidos para te irritar. São lindos, mas juro que se
pudesse mudar algo, você o faria justo com eles. Eu penso em você, quase toda
hora, e meu coração palpita com tantas fotos intencionalmente falsadas por uma
inocência modesta. Faz isso para provocar Deus e o mundo, dos mais jovens aos
mais maduros; dos mais lindos aos mais feios; dos mais espertos e aos mais
idiotas, como eu. Queria eu que você
me pertencesse, no sentido literal, no sentido do tato, da pele e do beijo.
Queria eu que as linhas que te dediquei aqui, deitada na minha cama com esses
cabelos escuros e lisos fossem, de fato, apenas realidade ao invés de desejo.
Queria eu que você estivesse aqui com todo esse pudor, com a magia do teu corpo
e o volume dos seios. Queria eu que sua voz me soasse aqui nos ouvidos, e a
risada irônica me fizesse parecer um menino ante a magistral manipulação do poder.
Perfeito. Divino. Tão tênues, tão próximos
e tão distantes, mas não me pertencem - nem um, nem outro.
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